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O percurso da pulsão e a constituição do sujeito psíquico

Capítulo 3 – Linguagem e alienação ao Outro

3.2 O percurso da pulsão e a constituição do sujeito psíquico

Laznik (2000), em seu artigo “A voz como primeiro objeto da pulsão oral”, afirma que o investimento dos pais é fundamental para a montagem de um circuito pulsional, que, segundo Lacan, se dá em três tempos e se fecha em seu ponto de partida. O percurso a ser realizado pela pulsão do infans configura-se desde que haja um objeto que a instaure, ou seja, ela é histórica e não inata. No recém-nascido, o primeiro tempo da pulsão oral é ativo: a criança vai na direção do objeto externo, ela busca o seio, o objeto de satisfação capaz de aliviar a tensão da necessidade, e descobre aí um prazer sexual que procurará reeditar alucinando tal objeto. O segundo tempo é reflexivo: na ausência do objeto perdido, a criança toma como objeto uma parte do seu próprio corpo, tornando-se autossuficiente na busca pelo prazer, um prazer autoerótico que tem como protótipo a sucção do dedo. O terceiro tempo é quando o infans coloca-se como objeto para o outro, no ponto em que começa a vislumbrar

sua dependência em relação àquele ser em especial, que já reconhece como familiar, iniciando, assim, e ainda que de forma incipiente, o processo de diferenciação e de constituição egoica, que possibilitará também distinguir o outro como um indivíduo.

O bebê não é passivo nessa situação, ele a suscita, procura ser olhado e ouvido, oferece seu pezinho para ser comido, antecipando a voluptuosidade oral materna. Fernald (1982 apud Laznik, 2000), um dos fundadores da psicolinguística, constatou que os recém- nascidos apresentavam apetência oral exacerbada para uma forma particular de palavra materna, o “mamanhês”, com uma prosódia especial, carregada de afeto. Os bebês demonstram apetência pelo gozo que a visão de sua presença desencadeia no Outro como objeto causa de seu gozo, procuram o rosto que corresponde a essa voz particular, fazendo-se objeto desse olhar, tomando-se como objeto causa dessa surpresa e dessa alegria que a prosódia da voz e os traços do rosto materno refletem para ele. Terá então amarrado com ela um circuito pulsional. O olhar e a voz, portanto, são centrais nos primeiros tempos da vida psíquica.

É nesse terceiro tempo que os traços mnêmicos deste Outro, de seu gozo, são inscritos no psiquismo nascente e podem ser ativados no polo alucinatório, reinvestindo as marcas do Outro em si mesmo na sua ausência. Como aponta Laznik (2000), para Lacan, este é o “tempo do fazer-se”. A alegria no rosto e no olhar da mãe, para quem ele é “bom de morder”, é vivida de forma gozante pelo bebê. Porém, é preciso que a mãe, além de saborear esse gozo, possa privar-se rapidamente dele dando limite à excitação do bebê, desde que exista um terceiro que impeça esse gozo ilimitado. A mãe coloca-se sob a lei, barrada, castrada, marcada pela falta, pelo campo do Outro, e permite à criança separar-se para se constituir como sujeito desejante. Conforme vimos no segundo capítulo, é a partir desse processo de incorporação que o eu engendra-se, primeiro, como objeto do Outro e para o Outro, para então “apropriar-se” de si mesmo como sujeito faltante e alienado. É a partir desse jogo pulsional do olhar e ser olhado que um objeto imaginário se constitui no psiquismo, originando a instância egoica. Nesse sentido, a instauração de uma imago do eu através da relação especular ao Outro consiste na transposição do caos pulsional em que o sujeito se encontra no início da vida à ordem psíquica proveniente da amarração da energia pulsional. Segundo Birman (1993), a inscrição pulsional é o momento mítico em que a energia corporal se inscreve no universo da representação, através de um representante que pode ser interpretado, que adquire materialidade semântica, conferindo ao Outro um lugar primordial na constituição do sujeito, no sentido de suas identificações e de seu estatuto fundamentalmente subjetivo.

vista que é a maturação precoce das funções visuais em relação às demais que possibilita a identificação e a alienação à imagem especular a partir da relação com o outro, segundo a teoria do estádio do espelho desenvolvida por Lacan (1949/1998). A título de esclarecimento e maior aprofundamento, abordaremos esta dinâmica pulsional – que se constitui pela função do olhar, tão importante para a constituição do psiquismo humano, dos polos da atividade e da passividade, explicitando o circuito da pulsão escopofílica – como um importante exemplo de circuito pulsional na obra de Freud.

Com relação à teoria freudiana apresentada no artigo metapsicológico de 1915, “A Pulsão e os Destinos da Pulsão”, o circuito pulsional estabelecido pela pulsão escopofílica apresenta uma primeira fase ativa – o olhar como atividade dirigida a um objeto estranho – e uma segunda fase passiva – o sujeito desiste do objeto e passa a dirigir o olhar para uma parte do seu próprio corpo. Essa transformação da atividade em passividade, que implica também numa reversão da pulsão em direção ao eu, instaura uma nova finalidade, mobilizada pela introdução de um novo sujeito: ser olhado, ser objeto do olhar do outro, exibir-se para o outro. No entanto, o exibicionista participa da visão de sua exibição e, nesse sentido, a essência do processo é a mudança do objeto, ao passo que a finalidade nesta fase permanece inalterada, pois o exibicionismo também abrange o olhar para o próprio corpo. Assim, a finalidade ativa surge antes da passiva, o olhar precede o ser olhado e o retorno em direção ao eu e a transformação da atividade em passividade coincidem.

A mudança da atividade para a passividade, que configura o par escopofilia- exibicionismo, também se aplica ao par sadismo-masoquismo – o masoquismo é o sadismo que retorna em direção ao próprio ego. Porém, o percurso da pulsão escopofílica, uma das primeiras a se constituir no bebê, apresenta uma diferença com relação ao de outras pulsões parciais, como a pulsão sádica, por exemplo, pois, antes do primeiro tempo ativo, há uma fase preliminar da pulsão escopofílica na qual o próprio corpo do sujeito é o objeto da escopofilia. Nas palavras de Freud:

Para o início de sua atividade, o instinto escopofílico é autoerótico; ele possui na realidade um objeto, mas esse objeto é parte do próprio corpo do sujeito. Só mais tarde é que o instinto é levado, por um processo de comparação, a trocar esse objeto por uma parte análoga do corpo de outrem – fase (a). (Freud, 1915/1976, p. 151).

Embora sem travar um debate sobre a relação entre o autoerotismo e o narcisismo, Freud (1915/1976) assimila esta fase preliminar da pulsão escopofílica a um tempo narcísico, ou seja, ela corresponde à fase inicial do desenvolvimento do ego, durante a qual as pulsões

sexuais encontram satisfação autoerótica – presumimos que ainda não há aqui um ego unificado, mas sim a iminência deste processo. O narcisismo de que se trata neste momento remete mais do que a uma totalidade do ego, a uma estase da libido em que predomina uma atitude de fechamento em si mesmo, de ausência de relações com o meio, o que, segundo Laplanche & Pontalis (1970), configuraria uma definição estrutural de narcisismo. Neste contexto, Freud claramente se refere a uma situação primordial: “Originalmente, no próprio começo da vida mental, o ego é catexizado com os instintos [as pulsões], sendo, até certo ponto, capaz de satisfazê-los em si mesmo. Denominamos essa condição de “narcisismo”, e essa forma de obter satisfação, de ‘autoerótica’.” (1915/1976, p. 156).

Essa situação na qual o ego ama somente a si próprio sendo indiferente ao mundo externo ilustra o primeiro par de opostos do amor a surgir no desenvolvimento: amor- indiferença em relação ao mundo externo. A capacidade do ego de satisfazer-se autoeroticamente é originária do sentimento de amor que nasce, assim, do narcisismo, do amar-se a si mesmo. Então, na fase da incorporação, a primeira das finalidades pulsionais, o amor é compatível com a abolição da existência separada do objeto, incorporado ao ego ampliado e, por isso, pode ser descrito como ambivalente. Nesse sentido, a pulsão se inscreve no mundo da representação – constituindo o objeto narcísico – através da perda do outro (Birman, 1993).

No entanto, desde o início, a pulsão exige um objeto de satisfação, assim como as necessidades, que jamais são capazes de satisfação autoerótica. Isso naturalmente perturba o narcisismo primordial e, dessa forma, prepara o caminho para um avanço a partir dele. Assim, após o primeiro tempo autoerótico, em que o sujeito narcisista se constitui ao olhar para um órgão sexual em seu próprio corpo, o narcisismo é deixado para trás, numa posição de atividade do sujeito, que se volta para um objeto externo. “Quando, durante a fase do narcisismo primário, o objeto faz a sua aparição, o segundo oposto ao amar, a saber, o odiar, atinge seu desenvolvimento.” (Freud, 1915/1976, p. 158). Dessa forma, a fase narcísica cede lugar à fase objetal, estando as atitudes de amor e ódio atreladas às relações entre o ego total e os objetos. A transformação do amor em ódio, o único exemplo de mudança do conteúdo pulsional em seu oposto, faz com que seja comum ambos os sentimentos serem dirigidos simultaneamente ao mesmo objeto e sua coexistência fornece o exemplo mais consistente de ambivalência de sentimento.

Então, num terceiro tempo do percurso da pulsão escopofílica, nosso exemplo privilegiado de circuito pulsional, o sujeito é substituído por outro ego, estranho, através da identificação, para quem torna-se objeto da pulsão escopofílica. Ao oferecer-se ao olhar do

outro, o sujeito aferra-se ao objeto narcisista, situação que poderíamos identificar como o narcisismo secundário, um retorno da libido ao eu. Da mesma forma, esse retorno ao objeto narcisista também ocorre na transformação do sadismo em masoquismo, na medida em que a finalidade sádica de causar dor é fruída masoquisticamente pelo sujeito que, pela identificação com o objeto sofredor, o substitui por seu próprio eu, convocando o outro como seu algoz, transformando a finalidade sádica em masoquista – sentir dor –, e conferindo-lhe, assim, o papel que era originalmente o seu, enquanto sujeito sádico.

Se levarmos em conta a fase do sadismo preliminar e narcisista que construímos, estaremos nos aproximando de uma compreensão mais geral – a saber, que as vicissitudes instintuais, que consistem no fato de o instinto retornar em direção ao próprio ego do sujeito e sofrer reversão da atividade para a passividade, se acham na dependência da organização narcisista do ego e trazem o cunho dessa fase. (Freud, 1915/1976, p. 153).

As vicissitudes pulsionais são, portanto, configuradas conforme as relações que se estabelecem entre o sujeito e a alteridade, construindo e reconstruindo, assim, a cada movimento pulsional, a cadeia representacional. “Enfim, as identificações do sujeito vão ser os traços interpretantes marcados no seu ego desse circuito pulsional, que passou desde sempre pelo Outro, situado como intértprete da insistência pulsional.” (Birman, 1993, p. 20- 21). Nessa transposição da pulsão para a representação, da qual o Outro é o agente fundamental, há uma perda da coisa em si, uma perda do ser pulsional do qual só se pode ter uma representação; representação essa que nada mais é do que o sujeito psíquico, uma entidade que só pode ser apreendida no registro do sentido.

3.3 O Outro como intérprete: o grito como apelo e a antecipação do desejo do