• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 4 – O sujeito e a dupla face do outro: o processo de constituição psíquica

4.2 O excessivo, o estranho, o hostil

O complexo de Nebenmensch é composto, como vimos no tópico anterior, por uma parte percebida e assimilada, e por outra incognoscível e ameaçadora que eleva as tensões no psiquismo, pois não é passível de captura e elaboração. Invariavelmente e ao mesmo tempo, a alteridade se apresenta sob estas duas formas – semelhante e estranha. Assim, é importante ressaltar que, quando o mesmo objeto, que outrora tinha aspecto amistoso, converte-se em objeto de horror, apresenta-se como estranho para a criança, que se defende do próximo assustador projetando para fora de si as marcas do encontro com a face terrível do outro como algo estranho a si mesma. Afasta de si isso que não pôde ser elaborado, mas que permanece nela, inacessível e oculto, como algo perigoso que pode um dia retornar.

Em “O Estranho” (1919/1976), Freud afirma que “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (p. 277). O estranho, embora absolutamente familiar, é algo que não se sabe abordar e que, por isso, provoca medo e horror, repulsa e aflição. Para investigar este tema, Freud se apoia em Jentsch, estudioso do fenômeno do estranho, que considera que o fator essencial na origem do sentimento de estranheza circunscreve-se à ordem de uma incerteza intelectual, e afirma que é uma questão de orientação para a realidade preservar-se da impressão de estranheza. Nesse sentido, a sensibilidade das pessoas ao estranho seria algo variável e relativo à capacidade intelectual de cada um em sua relação com os objetos que os circundam. Não satisfeito com esta concepção,

Freud acredita existir uma dimensão do estranho que não é possível controlar ou evitar pela intelectualidade, salientando a dimensão propriamente afetiva do sentimento de estranheza e justapondo-o, assim, ao sentimento de desamparo.

Enveredando pelo estudo etimológico da palavra “estranho” em diversos idiomas, Freud analisa que heimlich, a palavra alemã para “doméstico”, é ambígua: por um lado, significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista, chegando a ter um significado que é idêntico ao seu oposto, unheimlich, a saber: tudo o que deveria ter permanecido oculto e secreto, mas veio à luz – conforme a definição de Schelling, adotada por Freud. Essa ambiguidade que faz a significação destes dois termos opostos heimlich e unheimlich coincidirem – sendo unheimlich uma subespécie de heimlich – já traz em si, de fato, certa impressão de estranheza. Isto se relaciona justamente com a concepção psicanalítica do estranho adotada por Freud após o estudo de suas diversas formas de ocorrência, tanto na vida real como na ficção: o unheimlich é o que uma vez foi heimlich, familiar, mas sofreu recalcamento, sendo o prefixo “un” o sinal do recalque. Ou seja, toda estranheza reside no fato de que algo antigo, familiar, que deveria ter permanecido afastado da consciência, ao ultrapassar certa barreira, que é precisamente a do recalque, transforma-se em seu oposto, em algo estranho, isto é, algo que se apresenta sob uma dupla face.

O estranho, neste sentido, corresponde ao aspecto inassimilável do outro, a parte do complexo de Nebenmensch que não pode ser analisada, decomposta em seus elementos, permanecendo, assim, como coisa, no domínio inconsciente, que, em sua dinâmica, nunca cessa de tentar acessar a consciência. Ao analisar os diversos fenômenos de estranheza, Freud pôde inferir que “esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo de repressão [recalcamento]” (Freud, 1919/1976, p. 301).

Vejamos então como de fato o estranho se apresenta na nossa experiência. Dentre as pessoas, coisas, impressões sensoriais, experiências e situações que têm a propriedade de causar um sentimento de estranheza, elegeremos algumas circunstâncias para ilustrar como se produz tal efeito. A figura do estranho foi inicialmente identificada e explorada no campo literário. Segundo Freud (1919/1976), Jentsch identificou o estranho à questão de saber se, numa história, a aparência de determinado ser ou objeto está de acordo com seu estado real. Assim, uma boneca de cera pode parecer estranhamente animada, visto que tal impressão não é algo que se espere em um objeto inanimado. Fazer pairar uma incerteza quanto ao estatuto de determinada figura, seja um ser vivo ou um autômato, é, para ele, um dos melhores recursos para provocar a estranheza.

Reportamo-nos aqui aos Contos de Hoffmann e, especificamente, à história de O Homem de Areia, amplamente trabalhada por Freud neste artigo de 1919. Nele, podemos observar este tipo de efeito no que diz respeito à bela Olímpia, que o estudante Nataniel podia enxergar da sua janela. Filha do professor Spalanzani, ela morava na casa da frente e impressionava pela quietude. Estranhamente silenciosa, ela estava sempre parada e fechada em seu quarto de onde quase não saía. Aquela perfeição num corpo sem convulsões faz o rapaz apaixonar-se pela belíssima e atônita Olímpia, mas, no decorrer do enredo, descobre que ela não passa de uma boneca de cera com olhos dados por Coppola, uma figura estranha.

Sem dúvida, provoca uma sensação estranha o tema deste autômato que parece muito, mas não é, um humano. Porém, o grande fator de estranheza neste conto recai sobre o personagem de Coppola, conforme este se apresenta na vida atual de Nataniel, que parece ter reavivado o fantasma de horror de seus tempos de criança. O choque do episódio em que Spalanzani arremessa ao peito do rapaz os olhos sangrentos de Olímpia, que estavam no chão, dizendo que aqueles olhos eram dele, faz Nataniel sucumbir a um ataque de loucura, que o remete a um evento similar de sua infância. Em seu delírio, recordações infantis e, em especial, a recordação da morte misteriosa do seu pai voltam à tona, evocadas e misturadas a esta nova experiência desestruturante.

Grande fonte de terror em sua infância era a figura do homem de areia, segundo lhe contava sua babá nas noites em que seu pai recebia a visita do Dr. Copélio, por quem as crianças não nutriam bons sentimentos: o homem de areia joga areia nos olhos das crianças desobedientes que não vão dormir; os olhos saltam do rosto sangrando e o homem então os coloca em um saco para levar para seus filhos comerem. Apesar do medo, Nataniel, que não era tão novo, decide-se a descobrir a aparência do tal homem de areia, mantendo-se acordado e à espreita quando de uma nova visita do Dr. Copélio.Assim Freud se refere à passagem:

O pequeno intrometido ouve Copélio invocar: ‘Aqui os olhos! Aqui os olhos!’, e trai-se ao soltar um alto grito. Copélio apanha-o e está prestes a lançar brasas tiradas do fogo em seus olhos, jogando estes depois no braseiro, mas o pai lhe implora que solte o menino e salva-lhe os olhos. Depois disso, o rapaz cai em profundo desfalecimento; e uma longa enfermidade põe fim à sua experiência. (Freud, 1919/1976, p. 286).

O menino, a pedido do pai, é salvo, mas os pedaços de carvão em brasa de fato destinavam a fazer seus olhos pularem para fora, sendo algo análogo à areia do personagem que a baba descrevera. O pai, que por algum motivo que não fica claro, não pode evitar essas visitas, acaba, um ano depois, sendo morto por uma explosão no escritório onde se

encontravam. Estas experiências absurdamente dolorosas para ele imprimem um excesso indomável ao psíquico, sendo, portanto, essas marcas, reativadas em outros momentos da vida, a despeito de sua felicidade atual, pois elas clamam por elaboração.

O novo ataque de loucura com o episódio dos olhos de Olímpia fez com que ele revivesse todo esse terror infantil em torno da figura do homem de areia, uma vez que ele reconheceu Coppola, o vendedor de barômetros que também dizia ter “ótimos olhos”, como sendo o terrível Dr. Copélio, responsável pela morte de seu pai, confirmando sua suspeita. A estranha reaparição de tamanha ameaça à sua integridade física e mental é algo que ele não pode superar. Mesmo depois de recuperar-se deste ataque de loucura e reatar os laços com sua noiva, Nataniel chega ao suicídio tomado por um novo acesso de loucura ao ver, do alto de uma torre, em meio à multidão, ressurgir a figura do advogado Copélio, e de onde, após a tentativa frustrada de jogar a noiva, ele mesmo salta com um grito selvagem: “Sim, ótimos olhos!”. Seu corpo jaz despedaçado no chão enquanto o homem de areia some na multidão.

O sentimento de estranheza nessa história, referido ao homem de areia, está ligado ao medo de ter os olhos feridos ou roubados, um típico temor infantil, recalcado pelo protagonista Nataniel, mas que em certo estágio de sua vida ressurgiu dos confins do psiquismo, instaurando com toda a força o efeito estranho. Por isso, Freud (1919/1976) arrisca relacionar a ansiedade relativa ao homem de areia à ansiedade do complexo de castração na infância, substituindo o terrível homem de areia pelo pai em sua função castradora, perturbadora do amor. Freud aponta, entretanto, que essa fantasia assustadora do complexo de castração é apenas a transformação de uma outra fantasia que, originalmente, nada tinha de assustador, a fantasia da existência intrauterina.

Esta categoria do estranho, privilegiada em nossa abordagem, relaciona-se, portanto, à realidade psíquica, ao retorno de um conteúdo recalcado. Não nos deteremos aqui, pelos objetivos deste trabalho, no estranho que advém, por exemplo, da onipotência de pensamentos dos primórdios da vida. Esta fora há muito abandonada em prol da realidade material, fazendo cessar as crenças animistas das pessoas civilizadas, para as quais, em geral, estas crenças já estão superadas – e não exatamente recalcadas. Uma experiência estranha ocorre, no entanto, quando a realidade material parece por alguma circunstância confirmar uma crença primitiva. Porém, caso a pessoa tenha se livrado de modo completo e irredutível de tais crenças, será insensível ao efeito de estranheza, aferrando-se à questão do teste de realidade. O mesmo não acontece quando o estranho deriva do retorno de conteúdos recalcados da realidade psíquica. Mas estas duas categorias do estranho, Freud nos alerta, não são nitidamente distinguíveis.

seu conteúdo não é submetido ao teste de realidade, sendo possível criar todos esses tipos de efeito estranhos, mas deles pouco se experimenta na vida real. Assim, reiteramos a argumentação geral de Freud, que concebe o estranho como sendo proveniente de algo familiar que foi recalcado e que retorna. Vemos, então, que o tema do estranho pode ser facilmente atribuído a causas infantis, e estas estão diretamente relacionadas com o fenômeno do duplo, na medida em que este é:

uma criação que data de um estádio mental muito primitivo, há muito superado – incidentalmente, um estádio em que o ‘duplo’ tinha um aspecto mais amistoso. O ‘duplo’ converteu-se num objeto de terror, tal como, após o colapso da religião, os deuses se transformam em demônios. (Freud, 1919/1976, p. 295).

Num estado psíquico muito primitivo, quando ainda não há distinção entre mundo interno e externo, pode-se observar o fenômeno do duplo, que ilustra com propriedade esta dupla face do outro. Conforme define Freud (1919/1976), o duplo consiste em dois personagens que deveriam ser considerados idênticos, iguais, uma vez que, por meio da atividade perceptiva, como vimos no tópico anterior, ocorre uma sintonia entre as vivências de ambos: certos movimentos do outro reavivam no sujeito os traços de experiência similar outrora vivida por ele, de forma que, ao ver o outro, o sujeito experimenta o outro em si, confundindo-se com ele, o que facilmente se observa nos fenômenos de transitivismo infantil, explanados por nós no segundo capítulo.

A criança identifica-se com o outro – ou com a parte semelhante do outro – de forma a perder-se nele, pois, como não há limites entre eles, os processos mentais saltam de um para o outro, podendo-se estabelecer uma comunhão de conhecimentos, sentimentos e experiências entre os dois. Nesta identificação primordial, o sujeito fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um estranho, na medida em que ocorre uma duplicação, e então a divisão e o intercâmbio do eu (self). Como resultado, temos no sujeito o retorno constante da mesma coisa — a repetição dos mesmos aspectos, características ou vicissitudes, através das gerações (Freud, 1919/1976).

Inicialmente abordado por Otto Rank, o tema do ‘duplo’ foi relacionado a reflexos em espelhos, sombras, espíritos guardiões, sendo também associado à crença na alma e ao medo da morte. É conceituado como uma defesa contra a destruição do ego, uma “enérgica negação do poder da morte”, como afirma Rank (apud Freud, 1919/1976, p. 293). Para Rank, provavelmente a alma ‘imortal’ foi o primeiro ‘duplo’ do corpo. O anseio por segurança é o que mobiliza esse recurso ao duplicar, como defesa contra a extinção do eu. A força para

erigir esta defesa não é outra senão aquela que brota do amor-próprio ilimitado, e não nega a sua estreita ligação com o narcisismo primário.

Entretanto, quando essa etapa está superada, o ‘duplo’ inverte seu aspecto. Depois de haver sido uma garantia da imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte, uma vez que aniquila a possibilidade da diferenciação e mortifica o desejo. Nesse sentido, a duplicação que faz do sujeito alguém, a partir do reflexo que o outro lhe dá de si mesmo, serve ao propósito da subjetivação ao possibilitar o processo de alienação ao Outro que, como vimos anteriormente, funda o campo do imaginário e a instância egoica. Porém, um sujeito não emerge senão pela via da falta, que é o que viabiliza a diferenciação eu-outro, exigindo para a superação do narcisismo primário que se abra mão do duplo e da relação diádica exclusivista, para que, assim, se possa abrir caminho para as relações de objeto. Por essa razão, o fenômeno do duplo, imprescindível à constituição do sujeito, passa a ser uma fonte de estranheza, na medida em que precisou ser recalcado no decorrer do desenvolvimento do indivíduo.