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Estádio do espelho e unificação do eu: a fundação do imaginário

Capítulo 2 – Narcisismo: a constituição imaginária do eu

2.2 Estádio do espelho e unificação do eu: a fundação do imaginário

No texto O estádio do espelho como formador da função do eu, de 1949, Lacan nos orienta a compreender este estádio como uma identificação, ou seja, uma “transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem – cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago” (Lacan, 1949/1998, p. 97). O estádio do espelho ilustra um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade, por intermédio da instauração, no psiquismo da criança, do objeto imaginário que virá a constituir seu eu, a partir de um estado primário de insuficiência psicomotora da criança, tendo como preço a alienação ao outro.

Com a noção de estádio do espelho, Lacan descreve um tempo de subjetivação em que a criança começa a se identificar com o objeto total que seu reflexo no espelho constitui para ela e, assim, efetua a integração do eu. Esse processo já acontece de forma parcial desde o primeiro contato com seus outros, até mesmo nos últimos meses antes do nascimento, quando já se sabe que há, no feto, por exemplo, percepção acústica. Tal “modo primitivo de constituição do indivíduo segundo o modelo do outro” com quem se estabelece uma “relação de incorporação oral” é denominado, na teoria freudiana, identificação primária (Laplanche & Pontallis, 1970, p. 301).

Nesse momento anterior à constituição do eu, sujeito e objeto estão fusionados, não havendo propriamente relação de objeto. É o investimento no corpo erógeno e no eu da criança, dispensado por seu cuidador, que faz com que ambos surjam, para a criança, como objetos singulares e separados. O narcisismo, portanto, surge e permanece dirigido por aquilo que, no corpo ou no psiquismo, é percebido como objeto de desejo do outro. O sujeito se institui, então, após viver a experiência de apreensão dessa imagem desejada pelo outro. Nesse sentido, o eu que aí se produz é um outro, uma alteridade na experiência do sujeito, que o antecipa.

Como vimos com Freud, do autoerotismo ao narcisismo há de se efetuar um trabalho de unificação pulsional em torno da constituição de um primeiro núcleo egoico. Essa construção, entretanto, é fruto de um processo complexo durante o qual está presente, o tempo todo, a tensão entre o corpo fragmentado e o corpo unificado, uma vez que a perfeição do corpo que se vê projetado no espelho não coincide com a descoordenação psicomotora que se

experimenta subjetivamente. Por isso, a unificação corporal e egoica depende da palavra do adulto, que assegura, à criança, que aquela é a sua imagem e que é semelhante às imagens dos outros seres humanos.

Na leitura lacaniana, as imagens dos corpos no espelho, na medida em que são empregadas como significantes e entram em relação, representam algo que adquire valor substancializante, orientador, penetrando na criança. Esta é a forma mais originária de laço afetivo com um objeto e inaugura a vida pulsional do sujeito. A função formadora das imagens no sujeito determina quais inflexões individuais das tendências irão se produzir, numa condição de variabilidade de suas matrizes. O eu se estrutura, assim, como um “objeto no qual o sujeito se reflete como coordenado à realidade que ele reconhece como exterior a si mesmo, compreende[ndo] a totalidade das relações que determinam o psiquismo do sujeito” (Lacan, 1938/1998, p. 77).

Segundo Julien (1990), o eu é exteroceptivo, fazendo-se por fora, a partir do momento decisivo em que a criança se reconhece no espelho. Existe aí uma representação de seu corpo distinta de sensações internas de sua motricidade – representação esta que só se tornou possível pelo caráter de exterioridade da imagem. A criança tem dela mesma uma imagem semelhante àquela que ela tinha de outros corpos em volta dela no mundo: situa-se como um corpo entre os outros. A este eu proprioceptivo aplica-se seu nome, desde que ele seja pronunciado pelo outro: é a imagem exteroceptiva que lhe dá, dele mesmo, o espelho. O autor ressalta que, para Lacan, não existe formação do eu por sua exteriorização, um movimento do interior ao exterior, uma projeção, mas o inverso: o eu é eminentemente exteroceptivo ou ele não é.

A instância psíquica que aí se inaugura está, portanto, relacionada à consciência, ao “sistema percepção-consciência” freudiano (Lacan, 1949/1998), de caráter essencialmente fenomenológico, aos comportamentos voluntários, ao comando da psicomotricidade. Nesse sentido, as condições cognitivas para a constituição do eu e de seu mundo por meio das identificações primordiais, sobre as quais irão se sedimentar todas as identificações ulteriores, dependem dos atributos de permanência, identidade e substancialidade que, segundo Lacan (1948/1998), formam a estrutura mais geral do conhecimento humano.

O estádio do espelho que, obviamente, não está indissociado da experiência de mirar- se no instrumento do espelho, indica essencialmente o reconhecimento da forma do outro humano e a precipitação correlativa no indivíduo de um primeiro esboço dessa forma (Laplanche, 1985). Os sinais de jubilação triunfante e ludismo de discernimento caracterizam esse fenômeno de reconhecimento de si mesmo, o encontro, pelo criança, com sua imagem no

espelho. Lacan reconhece, nos trabalhos de Wallon, o mérito de perceber, na relação da criança com o espelho, uma experiência fundadora, a ilustração de um fenômeno universal que surge entre seis e doze meses em todos os lugares, mesmo onde não existe o objeto material espelho (Julien, 1990). Com efeito, é o outro que faz a função de espelho. O estádio do espelho, então, não é senão o paradigma pelo qual o observador nomeia, nessa revelação, aquele que é executado alheiamente ao outro: o nascimento do eu.

Esta assunção jubilatória da imagem especular de um ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência manifesta a matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua sua função de sujeito. Assim, a forma total do corpo que se vê refletida no espelho e nomeada pelo outro é mais constituinte que constituída. “Mas, antes que o eu afirme sua identidade, ele se confunde com essa imagem que o forma, mas o aliena primordialmente.” (Lacan, 1938/1987, p. 38).

Esse desenvolvimento é vivido como uma dialética temporal que projeta decisivamente na história a formação do indivíduo: o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica no sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. (Lacan, 1949/1998, p. 100).

Nesta projeção, no entanto, há um certo mal-estar por conta do desajustamento entre a imagem unificada e totalizante e as sensações de despedaçamento por falta de coordenação motora e inacabamento anatômico, que evidenciam uma prematuração específica do nascimento no homem. As imagos de desmembramento, mutilação, emasculação, desagregação, eventração, devoração, explosão do corpo, que são imagos do corpo despedaçado (Lacan, 1948/1998), anterior à instauração do narcisismo, contrariam a impressão de harmonia e integração que a imagem especular do corpo próprio evoca. Essa discordância primordial é efeito do que Lacan chama de deiscência – a alteração na relação do homem com a natureza por conta de uma insuficiência orgânica de sua realidade natural.

Assim, o sujeito antecipa, numa miragem, a maturação de sua potência, uma gestalt capaz de efeitos formadores sobre o organismo, possibilitando a simbolização da permanência mental do eu na estátua em que o homem se projeta. Para o olhar, este corpo é todo inteiro exteriormente. E isso é essencial, pois essa imagem tem um poder morfogênico: ela não é

puro reflexo passivo, mas engendramento do eu da criança. “A tendência pela qual o sujeito restaura a unidade perdida de si mesmo toma lugar, desde a origem, no centro da consciência. Ela é a fonte de energia de seu progresso mental, progresso cuja estrutura é determinada pela predominância das funções visuais.” (Lacan, 1938/1987, p. 37).

Segundo Julien (1990), Wallon, desde 1934, assinala que, na imagem especular, a criança se vê pela primeira vez em totalidade e não parcialmente. O espelho opera a vitória sobre o desmembramento ou a fragmentação dos membros disjuntos e assegura a coordenação motora: unitária, superior e liberta da estatura. A visão do outro como imagem total exposta sem sombra, a duas dimensões – o corpo do outro contanto que visto como gestalt – é a fonte da sensação unificada do corpo próprio em uma continuidade espaço-temporal, a mesma de todo objeto do mundo. Nesse sentido, isso que chamamos de sentimento do corpo próprio ou sensação interoceptiva do corpo vem dessa matriz que é a imagem do outro. Ela é constituída conforme e pela imagem, segundo o processo de transmissão por identificação, isto é, pela passagem de um exterior a um interior.

Desse modo, Wallon aborda a imagem especular em termos cognitivos de representação: a criança se reconhece e existe um progresso na ordem de conhecimento de seu corpo como objeto no mundo. Sem negar esse fato, Lacan, por sua vez, colocou o acento alhures: sobre o “Ah!”, o júbilo da criança. A novidade da invenção de Lacan tem a ver com o colocar em evidência o investimento libidinal do estádio do espelho (Julien, 1990). A imagem do semelhante alegra, regozija a criança, porque ele a ama. É o transitivismo do amor do próximo que permite ao sujeito identificar-se em seu sentimento de ser à imagem do outro, ao mesmo tempo em que a imagem do outro vem suscitar nele tal sentimento. A criança procura, então, nessa imagem, aquilo que lhe falta: unidade, dominação pulsional, controle, liberdade motora.

Nesse sentido, o “espelho” a que Lacan se refere na denominação desse estádio nada mais é do que o desenvolvimento das capacidades sensoriais humanas ligadas à percepção visual, que permitem ao pequeno homem enxergar a projeção do seu corpo como uma gestalt. Ou seja, o espelho remete a uma totalidade que é propiciada pelo olhar. Na teoria da Gestalt, a visão unifica as partes da percepção, deseja formar um todo. Para a psicanálise, no entanto, esse olhar tem um remetente específico, que é o outro, nomeadamente: o olhar materno. Então, o fechamento da gestalt que produz o eu enquanto objeto para o sujeito através de uma captação pela imagem marca o processo de incorporação do desejo do outro, na medida em que a criança se identifica como objeto do desejo do outro e, assim, se reconhece enquanto indivíduo. O que oferece essa formação totalizadora da gestalt é o olhar da mãe direcionado à

imagem do filho que gostaria de ter, uma imagem ideal que antecipa um sujeito ainda por constituir-se. É o investimento afetivo da mãe que se manifesta em sua expressão facial, em seus gestos e palavras dirigidos à criança que propicia essa tendência à unificação corporal e psíquica.

O que chamei de estádio do espelho tem o interesse de manifestar o dinamismo afetivo pelo qual o sujeito se identifica primordialmente com a Gestalt visual de seu próprio corpo: ela é, em relação à descoordenação ainda muito profunda de sua própria motricidade, uma unidade ideal, uma imago salutar; é valorizada por todo o desamparo original, ligado à discordância intraorgânica e relacional do filhote do homem durante os primeiros seis meses de vida, nos quais ele traz os sinais, neurológicos e humorais, de uma prematuração natal fisiológica. (Lacan, 1948/1998, p. 116). Dessa forma, a criança antecipa mentalmente a conquista de uma unidade funcional de seu próprio corpo, ainda precário no plano da motricidade voluntária. A formação especular instaura o eu antes de sua determinação social, numa linha de ficção para sempre irredutível para o indivíduo. Assim, ao mesmo tempo em que simboliza a permanência mental do eu, essa gestalt aponta para sua destinação alienante. O processo de constituição do eu, por ser necessariamente mediado pelo desejo do outro, se funda num desconhecimento de si que estrutura o infans como sujeito psíquico, que o constitui como indivíduo perante a si mesmo, engendrando a ilusão de autonomia em que ele se fia, “uma liberdade que nunca se afirma tão autêntica quanto dentro dos muros de uma prisão” (Lacan, 1949/1998, p. 102). A alienação do eu relaciona-se, assim, com o investimento lidibinal próprio ao narcisismo primário, na medida em que é o investimento prévio do outro que torna possível investir no si mesmo. “Essa relação erótica em que o indivíduo humano se fixa em uma imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar de seu eu.” (Lacan, 1948/1998, p. 116).

O eu configura-se, portanto, como um núcleo de servidão imaginária que liga a criança à mãe nas origens e que se conserva como uma estrutura intrassubjetiva no narcisismo. “Assim, ponto essencial, o primeiro efeito que aparece da imago no ser humano é um efeito de alienação do sujeito. É no outro que o sujeito se identifica e até se experimenta a princípio.” (Lacan, 1946/1998, p. 182). Essa captação identificatória pela imago, que é a forma definível no complexo espaço-temporal imaginário, tem a função de realizar a identificação resolutiva de uma fase psíquica, a qual representa uma metamorfose das relações do indivíduo com seu semelhante. O sentido existencial desse fenômeno relaciona-se com a prematuração do nascimento do homem, com a incompletude e o “atraso” do

desenvolvimento do neuro-eixo durante os primeiros seis meses de vida, os quais se manifestam pela descoordenação motora e equilibratória do lactante. “É em função desse atraso do desenvolvimento que a maturação precoce da percepção visual adquire seu valor de antecipação funcional” (Lacan, 1946/1998, p. 187), constituindo, no homem, o nó imaginário e absolutamente essencial que a psicanálise chama de narcisismo.

O mundo próprio a esse estádio é um mundo narcísico, no sentido econômico: de investimento da libido no corpo próprio (Lacan, 1938/1987). Lacan aponta, desse modo, uma correspondência entre o estádio do espelho e o narcisismo, fase do desenvolvimento libidinal em que se dá o nascimento do eu a partir da identificação primária com o outro. Julien (1990) afirma que o eu (moi) que aí se institui não é, na leitura de Lacan, o sujeito do conhecimento objetivo, mas um objeto libidinal dito narcísico. Nesse sentido, por estádio do espelho Lacan designa o fundamento do eu freudiano, mas também coloca em questão a natureza do narcisismo segundo Freud: não o concebe como sendo um dentro fechado sobre si, mas como um exterior constitutivo de um interior, uma alienação originária.

Assim, ainda que se possa traçar uma correlação entre o estádio do espelho e o narcisismo primário, na medida em que ambos designam a fase do desenvolvimento libidinal que dá origem ao eu, Lacan subverte a natureza do narcisismo primário. Diferenciando-se do enfoque freudiano, assume a posição de que a criança não é um ser originalmente fechado em si mesmo, que pouco a pouco se abriria para o mundo exterior e sairia do narcisismo. Este período caracterizaria, para ele, o surgimento de um ser todo exteriormente, a totalização do ser de fora para dentro a partir da função do espelho. Daí a especificidade e a pertinência da construção teórica do estádio do espelho empreendida por Lacan, que salienta justamente a dimensão imaginária e alienante que funda o eu, identificado com a imagem que o outro lhe reflete dele mesmo. Nesse sentido, o registro imaginário que aí se constitui é essencialmente aberto, evasivo, comportando uma experiência de novidade, de abertura ao outro.

Assim, o estádio do espelho consiste na manifestação das tendências psíquicas que visam um recolamento do corpo próprio. As formas imaginárias do corpo sobre o domínio do corpo próprio, as quais precedem a gênese do objeto narcísico, adquirem valor de defesa contra a angústia do dilaceramento vital. Nesse sentido, é extremamente relevante perceber que é justamente dessa precariedade biológica que o eu ideal do narcisismo primário retira sua riqueza e onipotência; é justamente nesse hiato entre a imagem e a experiência de si mesmo que o sujeito se projeta e se antecipa a partir da dimensão da alteridade.

Esse eu que se origina a partir do investimento do outro e se configura como objeto de amor para o próprio sujeito não deve ser confundido com o ser do sujeito, pois o eu

imaginário que surge no narcisismo permite que o sujeito se reconheça como indivíduo, mas ao preço de apartar-se da sua verdade, daquilo que o causou e que está no campo da alteridade. Ao dizer “Eu sou um homem”, o que na verdade se quer dizer é “sou semelhante àquele em quem, ao reconhecê-lo como homem, baseio-me para me reconhecer como tal. Essas diversas fórmulas só são compreensíveis, no final das contas, em referência à verdade do ‘Eu é um outro’.” (Lacan, 1948/1998, p. 120). Nesse sentido, o homem constitui seu mundo através de seu suicídio6.