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O tratamento jurídico cível da loucura em Fortaleza na primeira república

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

ANA LUIZA FERREIRA GOMES SILVA

O TRATAMENTO JURÍDICO CÍVEL DA LOUCURA EM FORTALEZA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

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ANA LUIZA FERREIRA GOMES SILVA

O TRATAMENTO JURÍDICO CÍVEL DA LOUCURA EM FORTALEZA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito.

Orientador: Professor Dr. Gustavo César Machado Cabral.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito

S587t Silva, Ana Luiza Ferreira Gomes.

O tratamento jurídico cível da loucura em Fortaleza na primeira república / Ana Luiza Ferreira Gomes da Silva. – 2015.

55 f.: il. color. ; 30 cm.

Monografia (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2015.

Área de Concentração: História do Direito.

Orientação: Prof. Dr. Gustavo César Machado Cabral.

1. Direito - História – Fortaleza (CE). 2. Insanidade – Fortaleza (CE). 3. Loucura. 4. República Velha – Fortaleza (CE). 5. Direito civil – Fortaleza (CE). 6. Processo civil – Fortaleza (CE). 7. Doentes mentais – Fortaleza (CE). I. Cabral, Gustavo César Machado (orient.). II. Universidade Federal do Ceará – Graduação em Direito. III. Título.

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ANA LUIZA FERREIRA GOMES SILVA

O TRATAMENTO JURÍDICO CÍVEL DA LOUCURA EM FORTALEZA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito.

Orientador: Professor Dr. Gustavo César Machado Cabral.

Aprovada em ___/___/____.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Prof. Dr. Gustavo César Machado Cabral (Orientador).

Universidade Federal do Ceará – UFC

_________________________________________________ Profa. Dra. Gretha Leite Maia de Messias

Universidade Federal do Ceará - UFC

_________________________________________________ Profa. Dra. Juliana Cristine Diniz Campos

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, inicialmente, ao meu orientador, Gustavo César Machado Cabral, que me apresentou à História do Direito e muito me apoiou e auxiliou na realização deste trabalho. Às professoras Gretha Leite Maia de Messias e Juliana Cristine Diniz Campos, que prontamente aceitaram participar da Banca Examinadora.

À minha família. Aos meus pais, Luiz Carlos e Luiza de Marillac, que me ensinaram a importância do estudo e que me ajudaram, com o que puderam, na realização deste trabalho. Aos meus irmãos Renan e Rafael, pelo apoio. Às minhas cunhadas e à Ana Paula. A todos que acreditaram em mim.

Aos meus amigos da faculdade, todos eles, sejam colegas de turma, ou de semestres anteriores ou posteriores, que estiveram ao meu lado. Aos membros do Porteiras Abertas, muitos dos quais fizeram falta neste último ano de faculdade. Aos meus Queridinhos, que, nesses cinco anos, só se tornaram mais próximos e mais importantes na minha vida. Destes, em especial, agradeço à Marina Costa, que me apoiou bastante nos momentos de insegurança, em que achei que não fosse aguentar e que o trabalho jamais iria se realizar.

Aos membros do Coletivo de Circo Quintal, que me ensinaram a confiar em mim mesma e nos outros a mais de quatro metros do chão. Aos meus amigos da Varanda, sempre um porto seguro de amor para voltar. Aos meus amigos do Canarinho, que levam as mesmas ideologias em seus corações e que, depois de todos esses anos, ainda sempre se fazem presentes nas ocasiões importantes. Aos meus amigos que não estão incluídos nesses grupos, mas que muito me apoiaram nesse ano difícil.

Aos funcionários do Arquivo Público de Fortaleza, da Biblioteca do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará e da Biblioteca da Faculdade de Direito, que procuraram muitos documentos e livros, pacientemente, para mim.

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“Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam

com as diferenças que a gente inventa.”

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RESUMO

Este estudo aborda o tratamento jurídico civil da loucura na cidade de Fortaleza da Primeira República. Objetiva investigar, principalmente, como e em que medida se deu a proteção jurídica civil dos alienados no período e local delimitados. Fundamenta-se em pesquisa bibliográfica para apresentar o contexto-histórico no qual o tema se insere, tratando-se do surgimento da psiquiatria na Europa, dos principais conceitos da ciência psiquiátrica da época, da psiquiatria no Brasil ao final do século XIX e começo do século XX, e do contexto da cidade de Fortaleza, com a criação do Asilo São Vicente de Paula. Utiliza análise legislativa e bibliográfica da doutrina acerca dos institutos legais, para listar e comentar as leis relevantes sobre o assunto, como: a Constituição de 1891, as Ordenações Filipinas, as Consolidações das Leis Civis e o Esboço de Teixeira de Freitas, o Projeto de Clóvis Beviláqua, o Código Civil de 1916, a Lei de Assistência aos Alienados de 1903, os Decretos de nº 4.294 e nº 14.969 de 1921 e o Código de Processo Civil e Commercial do Estado do Ceará. A pesquisa empírica constituiu-se na busca no Arquivo Público de Fortaleza por

processos cíveis relativos à temática da loucura. Analisa os dados coletados, examinando um caso administrativo interno do Asilo São Vicente de Paula e cinco processos judiciais do

Cartório de “Orphãos” de Fortaleza, relativos à “Exame de Sanidade/ Interdicção”. Conclui que foram vários os institutos legais do período que trataram da temática da loucura, sendo criados diversos mecanismos para proteção dos ditos loucos, ainda que alguns tenham sido criticados como falhos ou insuficientes por doutrinadores da época. Ademais, compreende que, nos casos concretos, surgem dúvidas quando à efetividade dos mecanismos de proteção na cidade de Fortaleza.

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ABSTRACT

This study addresses the civil legal treatment of madness in the city of Fortaleza in the time of The First Republic. It aims to investigate, particularly, how and to what extent legal protection was given to the mentally ill people in the period and location defined. Using bibliographic reaseach, it presents the historical context in which the theme is inserted, analysing the development of psychiatry in Europe, the main concepts of psychiatric science of the time, the rise of psychiatry in Brazil (in the late nineteenth century and early XX century) and the context of the city of Fortaleza, with the creation of the Asylum of São Vicente de Paula.

Using legislative and bibliographical analysis, specially the doctrine of legal institutes, it lists and presents the relevant laws on the subject, such as theConstitution of 1891, the Philippine Ordinances, the Consolidation of Civil Laws and the Civil Code Draft written by Teixeira de Freitas, the Civil Code Project written by Clovis Bevilaqua, the Civil Code of 1916, the Act of Assistence to the Mentally Ill of 1903,the Acts nº 4294 and nº. 14.969 of 1921 and the Code of Civil and Trade Procedure of the State of Ceará. The empirical research consisted in searching the Public Archives of Fortaleza for civil proceedings related to the theme of madness. This paper analyzes the data collected, examining an internal administrative case of the Asylum of São Vicente de Paula and five court cases registered in the Notary’s office of

Orphans in Fortaleza, all classified as "Sanity Examination/ Interdiction". This study then concludes that there were indeed several legal institutes in the period that addressed the theme of madness, developing various means to protect the so-called mad, even if some institutes have been criticized as flawed or insufficient by scholars of the time. In addition, it concludes that, in concrete cases, questions arise regarding the effectiveness of the protection mechanisms in the city of Fortaleza.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 10

2 O ESTIGMA DO LOUCO, AS CONCEPÇÕES DE LOUCURA E O CONTEXTO DA PRIMEIRA REPÚBLICA ... 12

2.1 A LOUCURA COMO DOENÇA E O SURGIMENTO DA PSIQUIATRIA NA EUROPA ... 13

2.2 OS CONCEITOS BÁSICOS NAS TEORIAS ALIENISTAS EUROPEIAS E A CLASSIFICAÇÃO TRADICIONAL DAS DOENÇAS MENTAIS ... 18

2.3 O ESTUDO DA PSIQUIATRIA E AS POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL ... 22

2.3.1 Faculdades de Medicina... 24

2.3.2 Os guias populares de medicina ... 26

2.4 OS ALIENADOS NA CIDADE DE FORTALEZA DA PRIMEIRA REPÚBLICA .. 29

2.4.1 A Santa Casa de Misericórdia e a cadeia pública ... 29

2.4.2 O asilo São Vicente de Paula ... 31

3 LEGISLAÇÃO E CRÍTICA DOUTRINÁRIA ACERCA DA INCAPACIDADE E PROTEÇÃO DOS DOENTES MENTAIS ... 36

3.1 CONSTITUIÇÃO DE 1891 ... 36

3.2 ORDENAÇÕES FILIPINAS ... 38

3.3 PROJETOS DE CÓDIGO CIVIL ... 44

3.3.1 As Consolidações das Leis Civis e o Esboço de Teixeira de Freitas ... 45

3.3.2 Projeto Clóvis Beviláqua ... 47

3.4 CÓDIGO CIVIL DE 1916 ... 50

3.5 LEI DE ASSISTÊNCIA AOS ALIENADOS (DECRETO DE Nº 1.132 DE 22 DE DEZEMBRO DE 1903) ... 56

3.6 DECRETOS DE Nº 4.294 DE 6 DE JULHO DE 1921 E Nº 14.969 DE 2 DE SETEMBRO DE 1921 ... 59

3.7 CODIGO DO PROCESSO CIVIL E COMMERCIAL DO ESTADO DO CEARÁ ... 60

4 O TRATAMENTO REAL DO LOUCO: CASOS CONCRETOS DE FORTALEZA DA PRIMEIRA REPÚBLICA ... 64

4.1 CASO LÍDIA DE AZEVEDO (1890) ... 64

4.2 CASO LUIZ LOPES DA CUNHA (1908) ... 67

4.3 CASO LUIZA PEREIRA DA CUNHA BEZERRA (1912) ... 71

(11)

4.5 CASO MARIA JOSÉ BEZERRA (1923) ... 77

4.6 CASO CARMEM SILVA LOPES (1935) ... 81

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 84

REFERÊNCIAS ... 86

APÊNDICE A – Considerações sobre o projeto de Felício dos Santos ... 91

APÊNDICE B – Texto do tópico “Tutela dos incapazes e curatela dos interdictos” no Projecto de Codigo Civil Brazileiro de Coelho Rodrigues (1893) ... 97

ANEXO A – Curatela dos maiores – Projeto Beviláqua ... 99

ANEXO B – Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921 ... 102

(12)

1 INTRODUÇÃO

O estigma em torno das doenças mentais é antigo. Palavras como "loucura" e "alienação" tiveram diferentes acepções, em distintos lugares e contextos históricos. São frequentes as representações na mídia, por exemplo, de narrativas, de ficção ou não, sobre pessoas sãs que foram injustamente trancafiadas em asilos, ou sobre doentes mentais que foram submetidos a condições indignas em instituições.

Neste trabalho, busca-se analisar o tratamento jurídico dos ditos loucos na cidade de Fortaleza, no período da Primeira República, o qual, formalmente, vai de 1891 até 1930. Questiona-se, sobretudo, como e em que medida se dava a proteção civil aos alienados pelos meios jurídicos, nesta época, em que a situação social, política e jurídica era completamente diferente da atual.

O assunto é pouco pesquisado. Há trabalhos de historiadores sobre temática similar como, por exemplo, sobre o Asilo São Vicente de Paula, a Vila da Parangaba, assim como publicações de ordem psiquiátrica no período, na cidade de Fortaleza. Contudo, na esfera do direito não se encontra qualquer trabalho sobre a temática da "loucura" no espaço de tempo e local delimitados, o que torna a pesquisa ainda mais relevante.

O campo do direito não deve se isolar das demais ciências sociais. A construção do pensamento jurídico brasileiro está diretamente relacionada às tensões sociais históricas.

Especialmente ao final do século XIX e no começo do século XX, ocorreram mudanças drásticas na estrutura política, social e jurídica do país, visto que, com o advento da República, criou-se uma série de novas leis. Além disso, a ciência psiquiátrica, por sua vez, teve desenvolvimento maior no país a partir dessa época. Importada e propagada por meio das Faculdades de Medicina, a psiaquiatria brasileira dividiu-se entre correntes francesas e alemãs. Nesse contexto, a adaptação do conhecimento psquiatrico no contexto jurídico ocorreu de modo cauteloso e foi abordado de modos diferenciados nas novas leis do Brasil republicano, o que gerou diversas discussões entre os doutrinadores da época.

(13)

Desse modo, no capítulo inicial, são acordados os aspectos relativos ao contexto histórico-social. Apresenta-se a evolução do estigma da loucura e do surgimento da psiquiatria até o momento em estudo. Abordam-se as diferentes acepções do termo “louco“, na qual o

doente mental algumas vezes é visto como um “miserável“, de quem se deve ter pena e a

quem se deve ajudar; outras, é tido como um degenerado. Inicia-se com Pinel e Esquirol, no contexto do surgimento da psiquiatria francesa, e do crescimento da noção da loucura como doença. Apresentam-se os conceitos fundamentais da psiquiatria do fim do século XIX e trata-se da importação brasileira das ideias alienistas, tanto francesas como alemãs. Comenta-trata-se acerca das faculdades de medicina no Brasil e sobre os guias populares de medicina. Trata-se, ainda, da cidade de Fortaleza, em específico, do Asilo São Vicente de Paula, na Vila da Parangaba, o qual foi a única instituição de internação de alienados na capital à época.

Em um segundo capítulo, busca-se enumerar as leis que, durante o período delimitado, trataram do tema, predominantemente no aspecto cível. Além disso, analisa-se quais ferrementas jurídicas estas estabeleceram para a proteção dos alienados. Aborda-se, principalmente, a Constituição de 1891, as Ordenações Filipinas, as Consolidações das Leis Civis e o Esboço de Teixeira de Freitas, assim como o próprio Projeto de Clóvis Beviláqua, que veio a se tornar o Código Civil de 1916. Comenta-se também acerca da Lei de Assistência aos Alienados de 1903, dos decretos de nº 4.294 e nº 14.969 de 1921 e do Código de Processo Civil e Commercial do Estado. São apresentadas as críticas doutrinárias acerca das

disposições legais, sobretudo dos doutrinadores do período, como Tobias Barreto, Clóvis Beviláqua, Teixeira de Freitas, Nina Rodrigues e Pontes de Miranda.

Em seguida, no terceiro capítulo, são analisados seis casos, sendo o primeiro uma questão administrativa do Asilo São Vicente de Paula, e os outros cinco processos judiciais da competência do Cartório de “Órphãos” de Fortaleza, sob a designação Exame de

Sanidade/“Interdicção“. Assim, com o arcabouço teórico dos capítulos anteriores, examinam -se os casos, em suas nuances, ponderando--se acerca da efetividade das ferramentas de proteção aos alienados nas situações concretas.

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2 O ESTIGMA DO LOUCO, AS CONCEPÇÕES DE LOUCURA E O CONTEXTO DA PRIMEIRA REPÚBLICA

Atualmente, entende-se que utilizar palavras como loucura, loucos, ou até mesmo alienados, para se referir a doenças mentais e a seus portadores, possui um teor pejorativo e

reprovável. Contudo, quando se aborda o tratamento de doenças mentais na Primeira República, é imprescindível retornar a estes termos, sobretudo à concepção de loucura.

Afinal, esta palavra deixa diferentes impressões em diversos contextos e a teia de significados atrelados a ela é maior e mais complexa do que se pode conceber com expressões hoje talvez consideradas mais apropriadas, mas que não trazem a mesma carga de significado.

“Loucura”, por exemplo, é o termo escolhido por Michel Foucault para o título de seu livro História da Loucura na Idade Clássica. A expressão “loucos de todo o gênero”, por

sua vez, predomina na legislação brasileira, no final do século XIX e começo do século XX, tendo sido bastante criticada por doutrinadores do período, como será posteriormente abordado. Nina Rodrigues traz um livro intitulado O Alienado no Direito Civil Brasileiro, já

Clovis Beviláqua chega a utilizar em seu livro Direito de Família a expressão “alienados e

fracos de espírito” para designar toda a variedade de doentes mentais. Tanto na esfera jurídica, quanto nas esferas histórica e psiquiátrica, são utilizados diversos termos: loucos, alienados, mentecaptos, doidos, insanos, dementes, furiosos, etc.

As nuances de cada nomenclatura e as suas implicações são abordadas, neste trabalho, de acordo com a sua relevância ao se tratar do aspecto jurídico. O conflito doutrinário no Brasil da época, acerca da melhor nomenclatura, é intenso e será abordado no segundo capítulo.

Neste primeiro momento, analisa-se uma ideia mais ampla da concepção de loucura, dos conceitos europeus herdados, sobretudo os provenientes da França e dos trabalhos dos médicos Pinel1 e Esquirol2.

Após a análise inicial da formação europeia da psiquiatria, são apresentados conceitos básicos da divisão de doenças, os quais são constantemente reproduzidos em toda a literatura sobre o tema, seja ela médica ou jurídica.

1

Conforme aduz Facchinetti (2008, p. 502-505), Philippe Pinel (1745-1826) foi médico do Hospital Bicêtre, em

Pa is, te do p oposto t ata e to o al dos alie ados. “eu li o ais fa oso é o denominado Traité

médico-philosophi ue su l’alié atio e tale, ou la a ie.

2

(15)

Posteriormente, aborda-se a recepção brasileira das teorias sobre a loucura, além políticas públicas no Brasil quanto ao assunto. Caminha-se para as formas de propagação do saber psiquiátrico no Brasil, com uma breve análise das faculdades de medicina e dos guias populares de medicina. Por fim, aproxima-se a análise da cidade de Fortaleza na Primeira República e do tratamento dos alienados na cidade, destacando-se aa importância de instituições como a Santa Casa de Misericórdia, a cadeia pública e o Asilo São Vicente de Paula.

2.1 A LOUCURA COMO DOENÇA E O SURGIMENTO DA PSIQUIATRIA NA EUROPA

Michel Foucault, em seu livro História da Loucura na Idade Clássica (1978), faz

um detalhado levantamento histórico das mudanças na concepção de loucura na Europa.

Relaciona a internação de leprosos e a criação de diversos hospitais para estes doentes, com a posterior “grande internação” de outros segmentos flagelados da sociedade, havendo o enclausuramento de pobres, doentes e loucos em situação precária. Relata os casos das chamadas Naus de loucos, nas quais os doentes mentais eram colocados em navios e enviados

para lugares afastados. Aborda tipos de tratamentos como: os medievais, nos quais se utilizava a água para a purificação; ou, até mesmo, os baseados em uma mutante moralidade, com castigos físicos, como chicotadas, havendo notória intenção de punir.

Foucault examina a mudança na visão social da loucura, acompanhando os pensamentos emergentes com as viradas dos séculos e o surgimento de ideias racionalistas. Acompanha as mudanças políticas na França e o advento da psiquiatria como especialidade médica.

Abordar, neste trabalho, todos estes aspectos, seria inviável e destoante dos objetivos delimitados. Apesar de todo o histórico ser relevante no processo de formação das concepções do período em estudo, escolhe-se fazer uma delimitação a partir do momento de

“gênese” da medicina psiquiátrica. Afinal, os discursos dos primeiros médicos alienistas franceses modificaram de modo intenso e mais direto a abordagem do tema da loucura, e muito influenciaram a forma de pensar dos estudiosos do Brasil ao final do século XIX.

(16)

No final do século XVIII a loucura é objeto de uma dupla percepção contraditória. O louco é a figura generalizada da associabilidade. Ele não transgride uma lei precisa como um criminoso, pode violá-las todas. O louco reativa a imagem do nômade que vagueia numa espécie de no man’s land 3social e ameaça todas as regras que presidem a organização da sociedade. [...] Mas essas imagens evocadoras de medos fantasmáticos ou reais o são também de irresponsabilidade. Ao mesmo tempo em que é perigoso, o louco também é lastimável. É um miserável. Um “desafortunado”, que perdeu o atributo mais precioso do homem, a razão. (CASTEL, 1978, p. 44).

Desse modo, Castel (1978, p. 45) demonstra ter havido uma ambivalência de horror e piedade atribuída à figura do louco. Enquanto se compreendia que o louco seria, ao mesmo tempo, perigoso e inocente, escapando de categorizações jurídicas de uma sociedade "contratual", a benevolência e a filantropia deveriam encarregar-se dele. Castel coloca que essa espécie de humanismo filantrópico nada mais era do que um auxiliar do juridicismo, como um último recurso nas situações onde a universalidade formal do direito de punir estaria em um impasse.

Ressalta ainda que a ideia de "compaixão" foi a atitude constante do movimento alienista. Somente após Morel, com o surgimento das noções de degenerescência4, é que foi trazida a ideia de uma "perversidade" inerente ao doente mental, trazendo uma política higienista e de racismo antilouco.

Brito (2004, p. 20) assevera ter sido com Pinel, ao final do século XVIII, que se constituiu a psiquiatria enquanto especialidade médica. Nesse momento, a loucura ganhou

status de doença, tendo sido a internação psiquiátrica adotada como a principal estratégia de

tratamento. Brito aduz que tal modificação foi fruto do contexto de transformações socioculturais da França no período, com a ocorrência da Revolução de 1789 e o surgimento das ideias liberais.

Pereira (2004, p. 114-116) comenta o fato de Pinel ter ficado conhecido como

“libertador de correntes” dos loucos do Hospital Bicêtre em Paris, mencionando o famoso quadro de Charles Muller o qual ilustraria o ato (FIGURA1). Ressalta, porém, que o fato ali

retratado jamais ocorreu historicamente, ainda que uma espécie de “mito pineliano” tenha

prevalecido por muitos anos.

3 Te a de i gu . T adução li e.

4

(17)

Figura 1- Quadro “Pinel libertando das correntes os alienados de Bicêtre”, Charles Muller.

Atualmente localizado na sala de recepção da Academia Nacional de Medicina, na Rue Bonaparte em Paris.

Fonte: WIKIMEDIA -

(https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5d/Pinel_fait_enlever_les_fers_aux_ali%C3%A9n%C3%A 9s_de_Bicetre-Charles-Louis_Mullet.jpg.)

Pereira aduz que, atualmente, sabe-se, por relatos do próprio Pinel, que este sequer esteve presente, ou atribuiu significação especial aos esforços de seu ajudante Pussin, para criar uma técnica hospitalar de manejo da relação com os pacientes que permitisse

“libertar” literalmente os doentes das correntes, as quais eram muito presentes em

estabelecimentos de internação. Ainda assim, é notório que Pinel e suas ações constituíram um marco decisivo no processo de introdução da loucura no campo médico, possibilitando uma abertura para um tratamento mais humano dos pacientes.

Castel (1978, p.80-81) adverte que não se deve atribuir apenas a Pinel o mérito da revolução dos princípios da tecnologia alienista, questionando se sequer realmente ocorreu uma revolução. Ele comenta que o gesto de Pinel foi superestimado e que médicos como Willis, Cullen (o qual Pinel teria inclusive traduzido em 1785) e Haslam na Inglaterra, Tenon na França, Daquin na Sabóia, Chiarrugi na Itália, dentre outros, participaram de contexto semelhante de reformas, alguns chegando a preceder Pinel na concepção de um “tratamento moral”.

Castel concorda, porém, que Pinel apresenta, claramente, uma delimitação no assunto em estudo, a qual qualificaria propriamente o alienismo, ainda que chegue a afirmar que Esquirol é quem seria o primeiro especialistapropriamente dito, visto que “a partir dele,

abre-se toda uma carreira consagrada à alienação mental” (CASTEL, 1978, p. 98).

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hospitalar que ele operou. Foram separadas e afastadas, em prédios distintos, as categorias de pessoas enclausuradas, de acordo com as razões para se tornarem assistidas (abandono, doenças, pobreza). Desse modo, foi possível dar destaque a categoria da loucura, agora passível à análise quando separada de outros contextos. Foi assim que a loucura passou a ser enquadrada como doença.

Castel ressalta que a novidade da qual Pinel se orgulhou de introduzir, no que concerne ao estudo da alienação mental, foi a técnica de observar minuciosamente os sintomas da doença na ordem em que apareciam, em seu desenvolvimento e em seu término natural. Em síntese, para Castel (1978, p. 81), Pinel teria reunido três dimensões que resumiam as ideias alienistas: uma classificação do espaço institucional do hospital, a imposição de uma relação de poder entre médico e paciente, em um tratamento moral, e uma

nova nosologia das doenças mentais.

Quanto à nosologia, Foucault (1978, p. 223/224) ressalta que o quadro relativo a loucura tinha uma considerável estabilidade, até o século XVIII vir a modifica-lo. Ele afirma que Pinel passa a enumerar entre os distúrbios mentais: a melancolia, o idiotismo, a mania e a demência. Adiciona ao rol também a hipocondria, o sonambulismo e a hidrofobia. Esquirol, por sua vez, acrescenta a monomania ao rol tradicional, formando em sua classificação: mania, melancolia, demência e imbecilidade.

Já o tratamento moral, segundo Pereira (2004, p.114), era baseado na ideia de que

se poderia introduzir mudanças no comportamento dos pacientes, utilizando-se de atitudes

humanas, porém firmes, dos cuidadores. Palavras como repressão, doçura e intimidação

passaram a fazer parte do vocabulário técnico. Como ressalta Castel (1978, p. 90), continuaram a ser utilizadas técnicas de aprendizado baseadas em disciplina, sendo, por exemplo, ensinados valores de obediência e trabalho aos pacientes.

A nova forma de perceber a loucura, desse modo, não modificou a ideia existente de que o enclausuramento era necessário. A psiquiatria, na verdade, passou a fornecer uma justificação erudita, para uma “exigência administrativo-policial de sequestração” dos alienados (CASTEL, 1978, p.86). Em realidade, o paradigma da internação dominou a psiquiatria por mais de um século e meio.

Sobre o assunto Foucault tece forte crítica:

(19)

A psiquiatria dos séculos XVIII, XIX e até do começo do século XX, assim, ressaltou a necessidade de rompimento dos alienados com o mundo exterior. Observa-se que a segregação, nesse caso, não seria o mesmo que a simples mudança de um lugar para o outro, ou até a impossibilidade de se comunicar com o exterior da instituição. Era, na verdade, a proposta de uma mudança de meio, na qual ocorreria uma inversão de valores. O mundo normal seria o lugar da reprodução do caos e da desordem; no asilo, os loucos viveriam “na

transparência da lei, reapropriando-se dela” (Castel, 1978, p. 87).

Como aduz Brito (2004, p.20), na França, no século XVIII, o hospital funcionava como uma instituição de caridade e assistência aos flagelados, de modo que o seu objetivo não era diretamente proporcionar cura. Muitas vezes, era apenas concedido abrigo e um ambiente acolhedor para os que esperavam a morte. Segundo Brito, o hospital não era uma instituição médica e não havia somente doentes ali internados, mas também pobres, prostitutas, desabrigados e outras pessoas em situação de necessidade.

Foucault chega a se referir ao Hospital Geral de Paris como uma terceira ordem de repressão. In verbis:

De saída, um fato é evidente: o Hospital Geral não é um estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e executa [...] Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito de execução contra o qual nada pode prevalecer o Hospital Geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: é a terceira ordem da repressão. Os alienados que Pinel encontrou em Bicêtre e na Salpêtrière pertenciam a esse universo. (FOUCAULT, 1978, p. 57).

Com a maior medicalização e o surgimento da medicina psiquiátrica, ao final do século XVIII, surge uma noção, como indica Castel (1978, p.84-85), de que o caráter vicioso do hospital não seria decorrente da segregação social que ele causa, mas à promiscuidade dentro do ambiente. Entendeu-se que a mistura das diversas categorias de pessoas, com problemas distintos, causava confusão e inviabilizava a possibilidade de um conhecimento (observações exatas e precisas), de um tratamento (domínio específico sobre a doença) e de uma regeneração moral (moralização). Esta última seria impossibilitada devido a um contágio

por “influências suspeitas”, ou seja, a transmissão dos vícios das doenças pela promiscuidade. Assim, para resolver esses problemas, supostamente se instituiria um saber (as classificações nosográficas) e o tratamento moral (como prática eficaz).

(20)

palavras, buscava-se proporcionar uma melhor organização do espaço para que o trabalho com os alienados pudesse ser mais criterioso e específico, surgindo possibilidades de estudos sobre as doenças e maior probabilidade de cura.

Essa mudança dos paradigmas da medicina alienista francesa do final do século XVIII, a qual trouxe preceitos que duraram mais de um século e meio, foi também fundamental para uma evolução no campo jurídico. Como afirma Foucault (1978, p. 147), constituiu-se lentamente a noção de que o internamento do “homem social” deveria ser

associado à ideia de “interdição do sujeito jurídico”, ou seja, o reconhecimento do alienado não apenas como louco socialmente, mas como incapaz de um ponto de vista jurídico.

2.2 OS CONCEITOS BÁSICOS NAS TEORIAS ALIENISTAS EUROPEIAS E A CLASSIFICAÇÃO TRADICIONAL DAS DOENÇAS MENTAIS

Como abordado no tópico anterior, Pinel e Esquirol levantaram conceitos básicos que integraram a nosologia das doenças mentais. Como anteriormente demonstrado, Foucault (1978, p. 223/224) afirma que Pinel teria enumerado as doenças mentais principalmente como: melancolia, idiotismo, mania e demência.

Pinel (1801, p.135-136), em seu livro Traité médico-philosophique sur

l’aliénation mentale, ou la manie ressalta, de fato, a necessidade de uma nova divisão da alienação mental em espécies. Comenta cada uma delas na Seção IV do livro, nas

subdivisões: “Mélancolie ou délire exclusif”, “Manie sans délire”, “Manie avec délire”, “Deménce ou abolition de la pensée” e “Idiotisme ou oblitération des facultes intellectuales et affectives”.

Esquirol, por sua vez, acrescentou a monomania ao rol tradicional, formando em sua classificação: mania, melancolia, demência e imbecilidade.

Assim, como, para a melhor compreensão do assunto e da legislação relacionada, é preciso a explanação dos significados de termos-chave para a época, neste tópico conceitua-se termos considerados esconceitua-senciais para a psiquiatria no período em estudo. No caso, como alguns passam a englobar os outros, são selecionados como necessários os termos: mania, monomania, demência e idiotismo.

Para a exposição dos conceitos é usada, sobretudo, a análise de Foucault em seu livro a História da Loucura na Idade Clássica, e a conceituação realizada por Antônio Luiz

(21)

apresentada e sustentada em 1837, perante a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e republicada pela Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental em 2013.

2.2.1 Mania

Peixoto (2013, p. 647-655) define mania como um “delírio geral, com agitação, irascibilidade e furor”. Afirma que a doença pode variar, sendo os delírios os mais diversos. Cita exemplos de doentes que, sem motivo, falam em verso, cantam, riem, choram, confundem a realidade, falam em línguas, dão gritos ameaçadores etc. Comenta sobre doentes que acreditam serem príncipes e princesas, reis e até deuses.

Ressalta que, no caso dos maníacos, o delírio é geral e é comum haver agitação. Afirma que, muitas vezes, os pacientes gritam bastante à noite e tem o costume de repetir gestos e discursos.

Foucault (1978, p. 222) comenta que Willis, no século XVII, estabelece relação entre a mania e o frenesi, aduzindo que a primeira seria um “furor” sem febre, enquanto o segundo seria um “furor” acompanhado de febre. Foucault (1978, p. 305- 306) afirma, ainda, que a mania passa a ser tratada como semelhante à melancolia, sendo a sequência natural da

outra. Ressalta que o termo “ciclo maníaco-depressivo” é usado no texto do Dictionnaire de

James, um dos primeiros autores a tratar do assunto.

2.2.2 Monomania

Peixoto (2013, p. 647) define monomania como uma espécie de “delírio parcial, com abatimento, morosidade e inclinação à desesperação”. Ele aduz que a monomania é

subdividida em amenomania (delírio alegre) e em tristimania (delírio triste), este último

sendo também conhecido por melancolia, ou lipemania, como trata Esquirol. Afirma,

contudo, que as monomanias são raras, tendo em vista ser difícil que a alienação se refira a apenas um objeto.

Foucault (1978, p. 572) aduz que a noção de monomania seria completamente construída ao redor do alvoroço que representa um indivíduo o qual se mostra louco quanto a um ponto, mas permanece são quanto aos outros.

(22)

semelhantes (misantropia), além de pessoas que acreditam serem cães (zoontropia, licantropia). Inclui também no quadro das monomanias pessoas que passam a ter desejos de acabar com a própria vida (monomania suicida), assim como a vontade de matar outra pessoa (monomania homicida), dentre outros.

Quanto à origem, Peixoto cita uma educação viciosa, mencionando também os

“prazeres venéreos” e o celibato como causas para a loucura em geral e as monomanias. Versa:

Os costumes também influem muito no desenvolvimento desta enfermidade. Por exemplo, o uso imoderado do vinho e das bebidas alcoólicas predispõe à loucura, enfraquecendo as faculdades intelectuais; [...]Os prazeres venéreos, levados a excesso e sem escolha, degradam e enfraquecem a razão do homem: o celibato, sobretudo quando forçado, também concorre para aliená-la. Não há quem não tenha experimentado que as senhoras que envelhecem sem se casarem, tornam-se rabugentas, e depois muitas vezes monomaníacas e assim sua imaginação enfraquecida lhes afigura fogo, ladrões, fantasmas, inundações etc. etc., e com tais visões incomodam durante a noite as pessoas da família (PEIXOTO, 2013, p. 650-651).

O tema das monomanias, como aponta Freitas (2011, p. 17), foi também mencionado pelo médico cearense Dr. Francisco Ribeiro Delfino Montezuma, nas intituladas

Cartas sobre a loucura, publicadas no jornal Gazeta do Norte, em 1882, na cidade de

Fortaleza.

As teorias discutiam o que o médico considerou como manias que afetavam a sociedade moderna, como o amor, o assassinato e a possessão demoníaca. Cita, na publicação, as seguintes monomanias: ambiciosa, humilde, hypermania, panophobia, lypemania, hiypocondria, monomania alegre, do amor, religiosa, vaidosa, erótica, satyriaisis e a nynphomania.

2.2.3 Demência

Foucault (1978, p. 279) afirma que a demência, conhecida por diversos nomes (dementia, amentia, fatuitas, stupiditas) já era tratada pelos médicos dos séculos XVII e

XVIII, sendo considerada a doença de espírito mais próxima à essência da loucura. No geral,

ela não possuiria sintomas propriamente ditos, seria uma “possibilidade aberta” a vários

sintomas da loucura.

(23)

primitiva (demência senil). A sua principal característica seria o que chamou de

“enfraquecimento das faculdades intelectuais”. Descreve:

Os dementes parecem não ter nem ideias, nem necessidades, nem desejos. Seus traços fisionômicos são inteiramente decompostos, os músculos da face relaxados, e seu olhar é incerto; não escutam nem falam; riem-se ou choram sem motivo; sua pele parece pouco sensível. Eles permaneceriam dia e noite expostos ao tempo, se os não tirassem desse estado de apatia. Em suma, estes doentes vivem concentrados em si mesmos, sem proferir uma só palavra, por diferentes motivos: um pensa que morre se falar, outro recebe ordens secretas de calar-se etc. (PEIXOTO, 2013, p. 661)

Foucault (1978, p. 228) ressalta também a diferença entre demência e imbecilidade. Enquanto a última agiria na esfera do domínio da sensação, tendo o doente problemas para captar estímulos externos (luz e ruídos, por exemplo), o demente seria

simplesmente indiferente a estes, pois o seu problema residiria não em uma deficiência da sensação, mas em uma “perturbação do juízo”.

2.2.4 Idiotismo

Quanto ao idiotismo, Peixoto (2013, p. 647) comenta a subdivisão realizada por Esquirol, em idiotismo propriamente dito e imbecilidade. A divisão é feita de acordo com o

grau de comprometimento intelectual. Peixoto faz referência à Dubois, em seu livro Tratado de Patologia Geral, e aos doentes que o autor chamou de “idiotas automáticos”, os quais

estariam em um grau vegetativo. Comenta que, em alguns doentes, os danos às faculdades mentais não seriam completos, porém intensos, de modo que são denominados por Dubois

como “idiotas indistintos”.

Aduz que Esquirol, todavia, denominou como imbecis aqueles que, apesar de não

terem capacidade intelectual para exercer funções ordinárias na sociedade, são passíveis de algum fundo de educação.

Foucault comenta que, para Pinel, no caso do idiota, haveria uma paralisia, ou

sonolência, de todas as funções do entendimento e das afetações morais, na qual o espírito permaneceria em um estado de imobilidade e estupor.

(24)

ladrões, libidinosos e imorais” e que teriam “bastante sagacidade para enganar e iludir qualquer pessoa”.

2.3 O ESTUDO DA PSIQUIATRIA E AS POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL

O marco institucional da psiquiatria no Brasil, segundo Brito (2004, p. 34), foi a inauguração do Hospício de Pedro II em 1852. A sua criação adveio da luta de um grupo de médicos da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (SMRJ), a qual seguia o modelo do movimento higienista europeu do final do século XVIII. O asilo sofreu fortes críticas da classe médica, pois não conseguia exercer seus objetivos de cura dos alienados. Foi apontada falta de supervisão médica e de um real poder médico sobre a instituição.

Brito (2004, p. 33) demonstra que a constituição de colônias longe de centros urbanos era característica da assistência psiquiátrica no Brasil do século XIX. O argumento para a construção de tais estabelecimentos longe dos centros urbanos era o de que deveria ser fornecido ao alienado o afastamento das influências negativas do ambiente em que estava inserido, proporcionando condições necessárias para uma reeducação moral. Eram, assim, observados o princípio do isolamento e o trabalho da psiquiatria francesa de Pinel, abordados no tópico anterior.

Sobre a organização das políticas de saúde no Brasil do século XIX, Brito (2004, p. 35-36) distingue duas áreas de concentração: a Saúde Pública de cunho preventivo e coletivo, e a Assistência Médica, de aspecto curativo e ligada à Previdência Social. Aduz que até 1899 não haveria uma política de saúde estatal e a assistência era realizada especialmente por instituições como as Santas Casas. Ainda, comenta o tatear das primeiras políticas de saúde no período da Primeira República:

Durante o período da República Velha (1889 – 1930) houve a implementação da primeira política de saúde que se deu na área da Saúde Pública através de um modelo de ação denominado de Campanhas Sanitárias. A motivação para a implementação desta política de saúde teve como primeiro aspecto a razão econômica. Como a população era atingida por vários tipos de doença, como a peste e epidemias, o comércio, principal fonte econômica da época sofria prejuízos. O segundo fator pode ser considerado um certo grau de consciência social já que a doença atingia a todos, independentemente da classe social. (BRITO, 2004, p. 35)

(25)

cátedra psiquiátrica na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro), Carlos Eiras e Henrique de Brito Belfort Roxo (1877-1969). A segunda, por sua vez, era formada por aqueles que se baseavam no alienismo germânico, como Odilon Pereira Gallotti e Juliano Moreira (1873-1933).

Brito (2004, p. 35-36) comenta sobre a contribuição de Juliano Moreira no campo psiquiátrico. O médico participou da direção de Assistência Médico-Legal aos Alienados até 1930 e foi propagador de uma mudança na prática psiquiátrica brasileira, de modo que a escola alemã de Kraepelin passou a ser mais influente do que a francesa de Pinel. Foi apenas a partir de 1912, porém, que a psiquiatria passou a ser considerada especialidade médica no Brasil, e houve um crescimento no número de estabelecimentos psiquiátricos decorrente disto. Outro aspecto relevante, ressaltado por Brito foi a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), fundada em 1923 por Gustavo Reidel. O objetivo da Liga era proporcionar uma melhora na assistência aos doentes mentais. O foco, contudo, desviou-se,

passando para a pessoa considerada “normal”, e sendo utilizados meios de “prevenção” das

doenças, através da eugenia. Buscava-se evitar, por exemplo, a reprodução de pessoas que apresentassem quadro de doença mental, assim como alcóolatras e pessoas de raças

consideradas “mais propícias” a problemas. Havia notório caráter racista e moralista.

Costa (2007, p. 102) comenta que a LBHM fez de sua tarefa fundamental a

correção de hábitos sociais das pessoas, em uma espécie de “saneamento social” do país. O

moralismo teria sofrido grande influência do catolicismo da época, chegando a um ponto em que psiquiatras chegaram a se dizer “apóstolos da higiene mental” e a referir-se às suas

campanhas eugênicas como “cruzadas”.

Costa também ressalta o papel de Juliano Moreira e seus discípulos na psiquiatria brasileira, tentando superar o discurso repetido francês e visar uma psiquiatria de fundamentos teóricos que constituíssem um sistema coerente. Essa linha de pensamento veio da psiquiatria

“organicista” alemã, e acabou por incorporar um biologismo, o qual supostamente

possibilitaria explicar toda a estrutura psíquica e cultural da sociedade, a partir da organização das instituições, da família e do Estado.

Esse “biologismo” aqui falado, como ressalta Costa (2007, 102) não é o científico,

(26)

Por fim, para compreender melhor as acepções do conhecimento psiquiátrico no Brasil, diante desse contexto mais geral apresentado, devem-se observar, ainda, alguns meios de propagação do saber psiquiátrico, sendo a seguir abordados: as faculdades de medicina e os guias populares de medicina.

2.3.1 Faculdades de Medicina

Segundo Freitas (2011, p. 61), o interesse, no Brasil, em estudar a medicina mental surgiu apenas durante o período do segundo reinado, com a criação do Hospício Psiquiátrico Dom Pedro II, no Rio de Janeiro.

Freitas relata que, por decreto de 19 de abril de 1879, foi incluído o estudo de psiquiatria no sétimo ano do curso de medicina, tanto da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, quanto na da Bahia, demonstrando existir interesse pela Academia Imperial de Medicina de que o ramo fosse estudado pelos brasileiros. Assim, foi por meio dessas faculdades, que os textos alienistas, sobretudo franceses, chegaram ao Brasil.

No que se refere à Faculdade de Medicina do estado da Bahia, Rocha (2004, 113-116) apresenta uma pesquisa em relação as teses voltadas para os aspectos da saúde mental, entre os anos de 1840 e 1900. No ano de 1840 teria surgido o primeiro trabalho brasileiro com referência a psiquiatria, e entre este e o ano de 1900 foram defendas 42 teses que tratavam de psicologia.

Rocha indica haver uma grande influência de alienistas franceses nas obras, citando Morel, Féré, Esquirol, Hipócrates, Luys e Charcot. Afirma que, ainda que na Faculdade do Rio de Janeiro a maioria dos trabalhos tratava de temas de neuropsiquiatria pura, na Faculdade da Bahia voltava-se mais para o ramo da criminologia e, em decorrência disto, explorava-se a psicofisiologia, a neurologia psiquiátrica forense, a higiene mental e a psicologia social e pedagógica.

Rocha (2004, p. 109) afirma que, nas teses, no final do século XIX e começo do século XX, era notória a preocupação com temas de discussão de âmbito internacional. Assuntos como histeria, loucura circular, paranoia e sonhos, por exemplo, eram temas mundialmente populares, que foram abordados nas teses brasileiras.

(27)

assim, que já se manifestava preocupação com fatores outros que não de caráter apenas biológicos no trato do paciente.

Outro aspecto interessante eram os motivos indicados como fatores associados ao desequilíbrio mental, variando deste o celibato até o uso de espartilhos apertados. Isto é demonstrado na Tabela 1 a seguir:

Tabela 1 – Fatores de desequilíbrio mental

Fonte: http://www.gmbahia.ufba.br/adm/arquivos/art_rev_20042.pdf Pág. 16.

(28)

2.3.2 Os guias populares de medicina

No período do império, até o fim do século XIX, mostrou-se bem reduzido o número de médicos no Brasil, sendo estes profissionais de difícil acesso para grande parte da população. Como aduz Guimarães (2005, p. 502), a corporação médica se concentrava na Corte do Rio de Janeiro e em Salvador, com expressão apenas secundária nas capitais de algumas províncias. Nesse contexto, foram bastante utilizados os chamados manuais de medicina popular, os quais indicavam como as pessoas poderiam diagnosticar doenças e elaborar medicamentos para cura.

Os manuais de autoria do médico polonês Pedro Luiz Napoleão Chernoviz fizeram particular sucesso na época. Guimarães (2008, p.1) aponta que os diversos livros produzidos pelo autor possuíam um caráter acadêmico, pedagógico, civilizador e higienista, buscando que as pessoas no interior do país pudessem aprender a realizar primeiros socorros e a formular medicamentos. Ressalta Guimarães que o livro Formulário ou guia médico

(primeira obra de Chernoviz), em sua primeira edição, em 1841, chegou a vender, apenas no dia de seu lançamento, trezentos exemplares, número alto para a época. O livro Dicionário de medicina popular do autor, por sua vez, foi editado seis vezes e, apenas a primeira edição,

vendeu cerca de três mil exemplares, entre 1842 e 1890.

Freitas (2012, p. 16) relata que o livro intitulado Guia de Medicina Popular

chegou a Fortaleza da época, de modo que entender o seu conteúdo é importante para a compreensão médica local. O livro já tratava do tema da alienação mental, citando causas, sintomas e tratamentos para transtornos psíquicos. Tratou a loucura, portanto, como doença.

Chernoviz apontou loucura, alienação mental e doudice como sinônimos e

apresentou a seguinte definição:

Loucura: Doudice ou alienação mental. Perturbação das faculdades intellectuaes. Causas: o sexo feminino, o temperamento nervoso, uma educação viciosa, o celibato, as profissões que exigem um grande esforço de espírito, que agitam fortemente e põe em lida a vaidade, a ambição e etc, as grandes revoluções políticas, a superstição, os terrores religiosos, a saciedade de todos os gozos, os excessos venéreos, os licores fortes, a leitura dos romances e dos máos livros, o ócio, a congestão frequente, são as causas que predispõe a loucura. Mas as causas que a determinam ordinariamente consistem quase todas nas afecções moraes vivas ou continuas, taes como a cólera, o susto, uma perda súbita de fortuna, uma felicidade inesperada, um pezar violento, os excessos de estudos, a ambição mallograda, o amor próprio humilhado, o ciúme, os acontecimentos políticos, os pesares domésticos, o amor contrariado, fanatismo, etc. (CHERNOVIZ, 1890, p. 331)

(29)

mulher, na maioria das vezes, como infantil, de fácil convencimento e com predisposição a histeria. Demonstra que tal visão sobre uma natureza supostamente frágil e inocente das mulheres foi bastante explorada em tribunais para justificar fugas de moças do seio familiar.

De fato, a visão feminina como frágil e tendente a histeria reflete no pensamento jurídico, principalmente no que remete a capacidade. Mostra-se claramente essa noção nas considerações do jurista Tobias Barreto:

O que no homem é passageiro e ocasional, o predomínio da paixão, na mulher é permanente, constitue a sua própria essência. A roupa da festa das grandes emoções, dos sentimentos elevados, ella não espera os momentos solemnes e dramáticos para vestil-a; veste diariamente. O homem, quando ama ainda tem tempo de trabalhar, ou de dar o seu passeio, ou de fumar o seu cigarro; não assim porém a mulher, que nesse estado, não tem o tempo de pensar em outra cousa senão no seu amor. [...]E por quem afinal é o bello sexo julgado? Pergunto eu com o velho Schaumann. Por juízes, que podem mergulhar no golphão insondável da Psyché feminina, que sabem por si mesmos quão terno, quão fraco e mobil é o coração das mulheres? Não de certo; ellas não são julgadas por seus pares, mas por homens, que muitas vezes não podem colocar-se no ponto de vista psychologico, do qual somente é que o delicto em questão lhe apareceria como realmente é. (BARRETO, 2003, p. 37-38)

Outro aspecto interessante trazido por Chernoviz (1890, p. 331-332) são os

sintomas identificadores dos distúrbios psicológicos. Ele elenca o que entende ser ‘sintomas gerais da loucura’, afirmando que a invasão da loucura poderia ser lenta ou súbita. Descreve uma série de sinais e situações, como a de loucos que percebem vivamente e com desagrado cheiros e sabores, ou que escutam vozes que não existem. Cita loucos que acreditam ser reis, príncipes e princesas, que imaginam serem as pessoas ao redor inimigas e espiãs. Aduz que os indivíduos podem apresentar pontos de perfeita razão e outros de completo delírio, assim como passar a mostrar aversão ou indiferença a entes queridos, além de inclinação ao suicídio, ou ao homicídio.

Como tratamento, traz uma série de opções, desde a utilização de compressas frias até a aplicação de sangrias e a realização de trabalhos e exercícios:

(30)

cura. Se se pudesse obter dos doudos um trabalho mecânico quotidiano de muitas horas e ao ar livre, as curas seriam muito mais numerosas. O maior obstáculo no tratamento da loucura é a exaltação do pensamento: ora, não ha cousa melhor para refrear a actividade das idéias do que os exercícios physicos prolongados, e até cançarem, como a agricultura, as artes mecânicas, a caça, etc. A gymnastica reúne muitas vantagens no tratamento da loucura. Primeiramente, o doudo que faz muito exercício pensa menos e sente menos; depois, o trabalho imprime ás suas idéias uma direcção vantajosa [...] A dieta é raramente útil, e podem-se permittir sem receio os alimentos que os doentes desejam. As insomnias são mui communs no começo da loucura; combatem-se pelo exercício, por banhos mornos prolongados tomados no momento de se deitar, abstinência do café e das bebidas espirituosas. Se isto não fôr sufficiente, póde-se dar á noite uma chicara de amendoada com vinte gottas de laudano, ou uma pilula de ópio de 5 centigrammas ou 1 gramma de chloral hydratado ou bromuretado. Convem combater a prisão do ventre com clysteres de linhaça, limonada de tamarindos ou alguns purgantes. (CHERNOVIZ, 1890 p. 333)

Freitas (2012, p.71-73) ressalta que o tipo de tratamento proposto relaciona-se com o modelo da ciência positivista, o qual encarava a loucura como um problema hereditário. Comenta também como tanto o trabalho quanto o ócio são colocados como possíveis causadores da loucura, mas que o trabalho também é utilizado como fator de terapia e cura para a insanidade, na ideia de que a ocupação da mente e o esforço físico produziriam uma moralidade.

Por fim, outro aspecto trabalhado a que se vale ressaltar é a questão do alcoolismo. Chernoviz trata o alcoolismo como causa imediata para alguns casos de loucura, levantando explicitamente a ideia de hereditariedade. Afirma:

Muitos casos de loucura, de demência e de epilepsia tem por causa immediata o alcoolismo. Os indivíduos acommettidos de delírio proveniente d'este" envenenamento são perigosos tanto para elles próprios como para as pessoas que vivem com elles. Com o corpo todo tremulo, agitados, os olhos arregalados, elles ameaçam, esbordoam e comettem crimes sem terem consciência do que fazem. Muitas e muitas vezes nos alcoólicos, principalmente nas mulheres que abusam dos licores espirituosos, apparecem paralysias nos quatro membros que se não são tratadas a tempo, tornam-se incuráveis. Não é raro vêr-se esta moléstia, assim constituída, transmittir-se, modificando-se, dos parentes aos filhos. O alcoólico engendra epilépticos, tuberculosos ou degenerados. (CHERNOVIZ, 1890 p. 95-96)

(31)

2.4 OS ALIENADOS NA CIDADE DE FORTALEZA DA PRIMEIRA REPÚBLICA

Para que se possa compreender o tratamento jurídico da loucura no período, é preciso também abordar o contexto histórico ao qual este esteve atrelado, associado à cidade de Fortaleza.

Como indicado, trata-se do período da Primeira República, indo desde a Proclamação da República em 1889, até a chamada Revolução de 1930. Este intervalo foi marcado por eventos fundamentais para o crescimento da cidade de Fortaleza, com o surgimento de diversas instituições e mudanças no cenário político, mas também por momentos de crise, como as secas (1888-1889 e 1915) e a epidemia de varíola.

Em especial, quanto à abordagem e à visibilidade da questão dos alienados, Fortaleza passou por grandes mudanças, sobretudo ao final do século XIX, quando foram importadas as supramencionadas ideias alienistas europeias.

Como aduz Pimentel Filho (1998, p. 13-23), neste período, a classe mais abastada era formada por ricos coronéis, bacharéis coronéis e estrangeiros casados com moças de famílias tradicionais. A classe média era composta por jornalistas, médicos, bacharéis, funcionários públicos e todos aqueles que vivam de salários contados. Em contraste com estes, havia os mendigos, os escravos urbanos ainda restantes (no período de transição com o fim da escravidão) e os pobres.

Nesta última classe parecia se enquadrar a noção social de “alienados”, cuja

concepção era diretamente associada à de miséria. A ideia de semelhança entre pobreza e loucura se ampliou com a ocorrência das secas e impulsionou a obra do asilo de alienados São Vicente de Paula, como é tratado nos tópicos seguintes.

No período em destaque, convém abordar três instituições que abrigaram alienados em Fortaleza: a Cadeia Pública, a Santa Casa de Misericórdia e o Asilo São Vicente de Paula, vinculado à última.

2.4.1 A Santa Casa de Misericórdia e a cadeia pública

(32)

A Santa Casa de Misericórdia, localizada entre a Praça dos Mártires, as ruas da Misericórdia e Senador Pompeu, tendo ao lado norte o mar, estava muito próxima da cadeia pública, como aponta Oliveira (2011, p. 20-30).

Como comenta Oliveira, ainda que estas fossem instituições que tradicionalmente abrigassem insanos, havia geralmente silêncio nos documentos oficiais acerca dos mesmos, o que ajuda a compreender as redes sociais e os estigmas que envolviam a loucura no Ceará, na época. Sobre isto versa:

A inexistência dos termos “alienação” e “alienado” nos relatórios das autoridades públicas e da Santa Casa de Misericórdia representou mais que uma simples omissão de vocabulário. Representou uma invisibilidade social da loucura nos espaços institucionais de Fortaleza, onde a linguagem de sua existência foi silenciada. (OLIVEIRA, 2011, p 30)

Relata Oliveira que não há qualquer menção a classificação de presos loucos no regulamento da cadeia pública, mas que estas teriam aparecido em ofícios posteriores, após a inauguração do Asilo São Vicente de Paula. Alguns documentos, contudo, confirmam a existência de alienados no local, na década de 1870.

Indica Oliveira (2011, p. 20-30) que, no relatório do presidente da Província, João Wikens de Mattos, em 1872, afirmou-se que, na cadeia, constavam duzentos e vinte e cinco presos, sendo três alienados.5 Além disso, o jornal O Libertador noticiou que, no primeiro

mês de funcionamento do Asilo São Vicente de Paula, foram transferidos quatorze alienados advindos da cadeia da capital.6

Quanto à Santa Casa de Misericórdia, Oliveira relatou que, desde a segunda reforma estatutária da instituição, em 1875, passou-se a constar que o asilo São Vicente de Paula pertencia à irmandade, mesmo que este só viesse a ser inaugurado mais de dez anos depois. Fora isso, também não se referia especificamente aos alienados no estatuto da Santa Casa, tratando-se de forma genérica acerca de prestar assistência aos pobres e desvalidos.

Apesar da lacuna, era notória a presença de alienados na instituição, principalmente considerando-se que a irmandade não recebia apenas doentes, mas uma grande massa de pessoas a qual denominava de indigentes.

Na República, com o Asilo São Vicente de Paula funcionando, os alienados passaram a ser encaminhados para lá, tirando-se, em parte, o foco nas duas instituições tratadas nesse tópico.

5 Relatório do Presidente da Província, Senhor Comendador João Wikens de Mattos à Assembleia Provincial do

Ceará, 20 de outubro de 1872, item Cadeias, p.16. 6

(33)

Diz-se em parte, porque, como afirma Freitas (2012, p. 38), a administração do

hospital psiquiátrico continuou atrelada a Santa Casa de Misericórdia, diferentemente do que aconteceu em hospícios de outros estados, como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo.

A cadeia pública, por sua vez, ainda continuou exercendo um papel relevante, visto que, como explicita Oliveira (2011, p. 137-138) apesar de terem sido recebidos no asilo São Vicente de Paula criminosos loucos, encaminhados a pedido de chefes de polícia, os doentes transferidos eram os considerados menos perigosos7.

No caso de João da Cunha, por exemplo, que cometeu crime de homicídio e, segundo relatado, sofria de furor sanguinário e monomania suicida, a mesa administrativa

negou a transferência, alegando que o asilo não teria estrutura de segurança suficiente para conter este tipo de criminoso, e que o tratamento deveria ser realizado na cadeia8.

2.4.2 O asilo São Vicente de Paula

O asilo São Vicente de Paula foi a principal instituição voltada para tratamento de alienados na cidade de Fortaleza, no período da Primeira República. Todo contexto em torno da sua criação e efetivo funcionamento, relaciona-se com a concepção social do louco na cidade, assim como se vincula a eventos históricos, tais como as secas (1888-1889 e 1915) e a epidemia de varíola. Para entender como efetivamente eram tratados os doentes mentais é fundamental investigar a própria instituição e o seu papel na cidade de Fortaleza, indo desde a sua construção, até os anos de funcionamento na Primeira República.

2.4.2.1 Construção e inauguração

O asilo São Vicente de Paula, localizado nas proximidades da Vila da Porangaba foi inaugurado em 1º de março de 1886. Barão de Studart, em seu livro Datas e Factos pata a História do Ceará, relata a pomposa inauguração da instituição, transcrevendo a seguinte ata:

Ao 1º do mez de março do anno do Nascimento de N.S.J.C. de 1886, 65º da Independência e do Império, às 10 horas da manhã, em uma das salas do edifício que tem de servir de asylo dos alienados, sito nas vizinhanças da povoação de Arronches, freguezia do Senhor Bom Jesus dos Afflictos, termo e camarca da cidade da Fortaleza, da província do Ceará, presentes o Exm. Sr. Desembargador Miguel

7

Sessões 22.08.1889, p.57; 5.9.1889, p. 66; 14.11.1889, p.68; 5.12.1889, p.71; 2.1.1890, p 73; 30.1.1890, p.76, do Livro de Atas de 17 de novembro de 1887 (Acervo: SCM)

8

(34)

Calmon du Pin e Almeida, presidente da provincia, o Exm. Bispo Diocesano, D. Joaquim José Viera, recebido pela Irmandade do SS. Sacramento da referida freguesia, que se achava reunida no edifício, tenente Coronel José Francisco da Silva Albano, vice-provedor da Santa Casa de Misericórdia, e mais membros da respetiva, mesa administrativa, o Dr. Chefe de policia, Monsenhor vigário geral, membros da relação e da câmara municipal, funcionários publicos e oficiaes militares, e grande numero de pessoas gradas e do povo, para o fim de inaugurar-se o azylo de elienados, estando postada à frente do edifício uma guarda de honra e a musica de 11 batalhão de enfantaria. [...] Do que para constar se lavrou a presente acta, que vai assinado pela mesa administrativa e pessoas presentes. Eu, João Barbosa Lima Pinagé, escrivão da Santa Casa, a escrevi. (STUDART, 2001, p.341-342)

A obra do asilo foi idealizada na década de 1870, tendo passado mais de dez anos até a sua conclusão. Como indica Oliveira (2011, p.65), Victoriano Augusto Borges, o vice provedor interino da Santa Casa de Misericórdia, em uma sessão ordinária de 1871, chegou a mencionar ser urgente a construção de um estabelecimento que recolhesse os loucos, alegando que estes incomodavam e ofendiam a moral e os bons costumes, visto que ficavam expostos pelas ruas da capital, importunando os transeuntes.9 No discurso do vice provedor, os valores

morais utilizados para justificar a obra seriam os princípios de civilização e caridade.

Oliveira (2011, p.67) ressalta ainda que a construção do asilo foi tratada como um importante passo para o processo de civilização da cidade de Fortaleza, aduzindo que o Visconde de Cauhipe, tido como idealizador do projeto, foi congratulado por seus conterrâneos por buscar resolver a problemática da circulação de loucos nas ruas.

Barão de Studart enaltece a atitude do Visconde: “O Asylo de S. Vicente de Paulo é produto de sua creação, e a sua iniciativa veio do facto de ter contemplado, errante e

perseguida, andrajosa e faminta, uma pobre louca nas ruas d’esta cidade”. (STUDART, 2001, p. 229)

De fato, a situação dos doentes mentais em Fortaleza era tratada como preocupante. Como aduz Oliveira (2011, p. 65), em artigo publicado na revista do Instituto do Ceará, em 1872, verifica-se a realização de um recenseamento demográfico, o qual constatou que, em toda a Província, existiam 610 dementes e 672 alienados, numa população de 721.686 habitantes, número considerável. 10

Entretanto, apesar dos clamores de que a instituição seria necessária e da mobilização para a angariação de recursos para a realização da obra, esta avançou bem lentamente. Como ressaltam Freitas (2012, p.50-51) e Oliveira (2011, p. 109-110) foi com a seca dos três anos (1877-1879) que ocasionou uma aceleração nas obras do asilo.

9

Sessão de 9 de julho de 1871, p.168, do livro de Atas de 15 de março de 1861 (Acervo: Santa Casa de Misericórdia).

10

(35)

Com a forte seca, a província passou por uma situação bastante atípica, havendo grande crescimento da população de Fortaleza, além de uma alta taxa de mortalidade, decorrente da fome e de doenças. Sobre o assunto aduziu Girão:

Cedo Fortaleza converteu-se na metrópole da fome, capital de um pavoroso reino, o reino macilento do martírio coletivo duma raça em penúria. Em dezembro já estavam aí, a mais, 85.00 pessoas, que em março de 1878 eram 100.000 e setembro 111.000. A sua população normal, pelo censo de 1872, orçava em 21.000. Agora podia ser de 25.000 [...] Paralelo ao desfalque oriundo do deslocamento emigratório, outro fator de redução trabalhava o aniquilamento, retratando-se impressionantemente nos obituários. O de Fortaleza, que em 1876 fora de 811, cresceu alucinantemente para 57.580 em 1878. Em toda a Província, no mesmo ano morreram 119.999. A varíola chegou a infectar 80.000 indivíduos e dela, num único dia (10 de dezembro de 78) entraram para os cemitérios da cidade 1.004 vítimas. (GIRÃO, 1962, p.321-324)

Com estes eventos, como aponta Oliveira (2011, p. 85-88), a questão da loucura passou a ocupar um lugar de maior notoriedade, como um problema social. Os retirantes passaram a se aglomerar nas ruas da cidade em críticas condições, podendo ser considerados

esmoleres, pedintes, vagabundos e como alienados ou insanos”. Surgiu uma maior pressão social para lidar com o problema, agora incômodo e mais visível.

Como aduz Oliveira, ocorreu a aproximação entre os termos “indigência” e

“insanidade”. No jornal O Retirante11, por exemplo, chegou-se a utilizar o termo “

infelizes

retirantes” para indicar os beneficiados pela construção do asilo, e não a palavra “loucos” ou

outras sinônimas. A nova visão do problema, assumindo a característica de urgência, impulsionou as autoridades da província para agilizar a obra do asilo, o qual era uma promessa de mudança social.

Freitas (2011, p. 48-49) aponta, contudo, que a construção e posterior inauguração do asilo São Vicente de Paula não ocorreram sem críticas, principalmente àquelas de cunho político direcionadas ao presidente da província, Sr. Miguel Calmon Du Pin Almeida. Dentre estas, como demonstrado pela autora em recorte de um trecho do jornal O Libertador12,

destaca-se o argumento de que haveria outras necessidades mais urgentes na Província, como a criação de um asilo específico para a mendicidade, e a crítica de que não haveria na cidade nem alienados e nem alienistas para integrarem o asilo de loucos.

11

Jornal, O Retirante, 09.09.1877,p.1. (Acervo da Biblioteca Pública Menezes Pimentel)

12

Imagem

Figura 1-   Quadro “Pinel libertando das correntes os alienados de Bicêtre”, Charles Muller
Tabela 1  –  Fatores de desequilíbrio mental

Referências

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