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Em nota de apresentação à edição de 1985 do Livro I das Ordenações Filipinas de Cândido Mendes de Almeida (orginalmente de 1870), Mário Júlio de Almeida Costa contextualiza historicamente as Ordenações Filipinas e a sua influência no direito brasileiro.

Relata que as Ordenações Filipinas surgiram da necessidade de reforma das Ordenações Manuelinas, em Portugal, tendo sido criticadas por não reformularem adequadamente as normas, mas apenas aditarem às mesmas, mantendo preceitos já em desuso.

As Ordenações Filipinas, conforme afirma Didone (2003, p. 25-28), foram aprovadas pelo rei Felipe I em 05 de junho de 1595. Apesar disso, entraram plenamente em vigor apenas em 1603, sob o reinado de Felipe II. Em Portugal, vigoraram até o Código Civil de 1867; já no Brasil, tiveram a sua vigência prolongada até o Código Civil de 1916.

Almeida (1985, p. 5-12) aponta que as Ordenações, devido ao longo período de vigência, tiveram múltiplas edições. Assevera que a última destas teria sido a chamada “Edição Vicentina”, sendo da época de Dom João V.

A edição de Cândido Mendes Almeida, em 1870, foi a 14ª tiragem, mas a primeira impressa no Brasil. Alegou o aludido organizador que teria fixado o texto de acordo com a primeira tiragem, de 1603, e a nona, de 1824. Almeida relata também que apesar de, em termos de legislação civil, as Ordenações terem vigorado até 1916, no Brasil, o Código Penal de 1850 tornou obsoleto o Livro V do instituto legal.

Como enumera Didone (2003, p. 28), as Ordenações Filipinas eram, basicamente, divididas em cinco livros: Livro I (Direito Administrativo e Organização Judiciária); Livro II (Direito Eclesiástico, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros); Livro III (Processo Civil); Livro IV (Direito Civil e Direito Comercial) Livro V – Direito Penal e Processo Penal. Os livros, por sua vez, eram subdivididos em títulos e parágrafos.

É no Livro IV, sobretudo no título 103, denominado “Dos Curadores que se dão aos prodigos e mentecaptos”, que se trata da questão dos alienados. Há também referência a estes no título 81 do mesmo livro, denominado “Das pessoas, a que não he permitido fazer testamento”.

Inicialmente, trataremos do título 103, analisando separadamente os trechos relevantes:

Dos Curadores que se dão aos Pródigos e Mentecaptos

Porque além dos Curadores, que hão de ser dados aos menores de vinte e cinco annos, se devem também dar Curadores aos Desasisados e desmemoriados, e aos Prodigos, que mal gastarem as suas fazendas.

Mandamos que tanto que o Juiz de Orfãos souber que em sua jurisdicção há algum Sandeu, que por causa de sua sandice possa fazer mal, ou dano algum na pessoa, ou fazenda, o entregue a seu pai, se o tiver, e lhe mande de nossa parte, que dahi em diante ponha nelle boa guarda assi na pessoa, como na fazenda; e se cumprir o faça aprizoar, em maneira que não possa fazer mal a outrem.

E se depois que lhe assi fôr encarregada a guarda do dito seu filho, elle fizer algum mál, ou dano a outrem na pessoa ou fazenda, o dito seu pae será obrigado a emendar tudo, e satisfazer pelo corpo e bens, por a culpa e negligencia, que assi leve em não guardar o filho.

E os bens que o Sandeu tiver, serão entregues ao dito seu pai per inventariu feito pelo Scrivão dos Orfãos, e o Juiz ordenará certa cousa ao dito pai per que o haja de manter. (ALMEIDA, 1985, p. 1004)

Quanto aos termos utilizados para designar os doentes mentais neste trecho, Almeida apresenta algumas definições. Conceitua desasisado como “o falto de siso, e de juizo, um louco completo” e o desmemoriado como “o falto da memoria, esquecido, propriamente o idiota, o demente” (ALMEIDA, 1985, p. 1004).

Traz, ainda, uma distinção entre demência e loucura, com base na concepção de José da Fonseca, em seu livro Diccionario de Synonimos. Afirma, assim, que a demência seria a abolição total da capacidade de raciocínio, esvaecendo-se a inteligência, diminuindo a memória e surgindo ideias desconexas. A demência e a loucura se diferenciariam na medida em que a primeira “costuma nascer de fraqueza e debilidade”, enquanto a segunda “de excesso, de arrebatamento, de furor” (ALMEIDA, 1985, p.1004).

Sobre a questão das nomenclaturas, Nina Rodrigues ([1933?], p. 47), aduz que Teixeira de Freitas teve razão em chamar de variadas as terminologias das Ordenações sobre loucos, afirmando que, de fato, pode-se condená-las por serem antiquadas e errôneas. Comenta os termos utilizados nas Ordenações Filipinas para se designar os loucos, sendo estes “desasisados, sandeus, mentecaptos, furiosos”, além da forma especial de alienação sob a denominação de “desmemoriados”.

Esta última Nina Rodrigues acredita referir-se à demência senil, aduzindo que, assim como Ferreira Borges, defende que para o “desmemoriamento” de fato incidir nas disposições do L. IV, tit. 103 e tit.81 teria de ser sintoma de grave alteração mental. Versa Ferreira Borges sobre a questão:

A debilidade d’espirito nascida de muita edade chama-se tontice: ella torna o homem incapaz do manejo de seus negócios. A nossa lei o classifica como

desmemoriado. [...]

É pois, necessário que o desmemoriado una á falta de recordação a imbecillidade d’espírito, a perda da razão, a fatuidade. (BORGES, 1832, p. 330-336).

Nina Rodrigues ([1933?], p. 47) levanta também o questionamento acerca de se enquadrar ou não a embriaguez nas terminologias de alienação das Ordenações, indicando ser de mesmo entendimento que Ferreira Borges (1832, p. 329-330), o qual aponta que um homem “constantemente bêbado” se enquadraria no caso do pródigo da Ord. Liv. IV, tit. 103. Ferreira Borges, ainda, comenta que essa ideia estaria também presente na jurisprudência inglesa, sendo a opinião de Lord Eldon em Collinson17, além de haver um estatuto em Nova- York que trata os embriagados como os lunáticos.

Outra observação importante de Almeida (1985, p. 1004-1005), em relação a este trecho, é a ponderação acerca da necessidade de exame médico de sanidade para a designação de um curador. Este detalhe não é explicitamente demonstrado em momento algum no texto

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Acreditamos estar Ferreira Borges se referindo ao caso Ridgway v. Darwin de Collinson. I Ridg ay . Darwin, Lord Eldon cites a case where a commission of lunacy was supported against a person, who, when sober, was a very sensible man, but being in a constant state of intoxication, he was incapable of managing his p op e ty MACNI“H, Ro e t, p.

da legislação, mas Almeida aponta que a jurisprudência o trata como imprescindível, citando Acórdão da Relação do Rio de Janeiro de 22 de julho de 1851.

Tanto Almeida, quanto Teixeira de Freitas (1876, p. 217), que trata da curadoria dos alienados no art. 311 da sua Consolidação das Leis Civis, afirmam compactuar da tese de Borges Carneiro acerca dos sujeitos passíveis de curatela. Aduzem que, apesar de as Ordenações definirem o possível curatelado como “[..]Sandeu, que por causa de sua sandice possa fazer mal, ou dano algum na pessoa, ou fazenda”, a afirmação não é taxativa. Deve ser entendida como demonstrativa, tendo em vista que a curadoria também deve se dar aos loucos inocentes.

Teixeira de Freitas (1876, p.217) afirma, ainda, que o exame médico é a forma preliminar de reconhecimento da loucura e determinação da curadoria, mas que, mesmo não havendo o exame ou a interdição, outras provas poderão ser utilizadas para as partes interessadas demandarem a nulidade de negócios jurídicos realizados pelos loucos, como contratos e testamentos.

Outro aspecto a ressaltar é a previsão que o texto das Ordenações confere para que o juiz aja de ofício, como se infere do trecho “Mandamos que tanto que o Juiz de Orphãos souber que em sua jurisdicção há algum Sandeu [...] o entregue a seu pai [...]”.

Além disso, há também de se mencionar a responsabilidade que as Ordenações estabelecem diretamente à figura do pai do alienado, indicando-o primariamente como curador. Ressalta Felicio dos Santos (1885, p. 254) que a tutela do interdito é deferida só ao pai porque, nas Ordenações, não se considera que a mãe tenha pátrio poder, em uma “prevenção” contra a capacidade das mulheres.

As Ordenações, entretanto, versam sobre a possibilidade de a esposa ser curadora, no caso de o alienado ser casado, sendo esta “mulher honesta”18:

1. E sendo o Sandeu, ou Pródigo, ou desmemoriado casado, será entregue a seu pai, se o tiver, e será feito pelo Juiz e Scrivão dos Orfãõs inventario de todos os bens moveis e de raiz, e da renda delles, e assinará o Juiz á sua mulher o necessario para seu mantimento, e dos filhos se os tiver, e para vestir e calçar e alfaias de casa, e outras despezas necessarias, conforme a qualidade de sua pessoa, e da fazenda do dito seu marido; e ao pai, que he dado por seu Curador, se dará juramento, que bem e fielmente governe a fazenda e bens do filho, e faça delle curar com boa diligencia a Medicos, segundo lhe fôr necessario, e a qualidade de sua pessoa requerer.

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Conforme aduz Pereira (2000, p. 53-59), a expressão mulher honesta, para o direito do período, não se refere a uma mulher íntegra, que paga suas contas e cumpre seus deveres. Não é o mesmo sentido de honestidade que é atribuído ao homem. Honesta era considerada a mulher que tinha sua sexualidade controlada pelo

E o Juiz mandará screver ao Scrivão todas as despezas, que o dito seu Curador fizer, assi ácerca da cura e mantimento do dito seu filho, como do mantimento e despesas, que fizer com a mulher e filhos do dito seu filho para tudo vir a boa arrecadação. Porém, se sua mulher viver honestamente, e tiver entendimento e discrição, e quiser tomar carrego de seu marido, ser-lhe-hão entregues todos os seus bens, sem ser obrigada a fazer inventário. (ALMEIDA, 1985, p. 1005)

Outra questão relevante neste trecho é o fato de ser estabelecida uma necessidade de realização de inventário (exceto no caso de a esposa ser a curadora), além de haver determinação expressa de que se “fielmente governe a fazenda do filho, e faça delle curar com boa diligencia a Medicos”, vinculando o curador para que busque empregar esforços para a cura do doente. Inclusive, a ausência de dispositivo semelhante, que determine como supremo o interesse de cura, no Projeto Beviláqua é um dos pontos criticados por Nina Rodrigues ([1933?], p. 171-172), como é abordado em tópico posterior.

Sobre este trecho, Almeida (1985, p. 1005) ressalta que esta obrigação imposta ao pai também se estende aos outros possíveis curadores. Explana, ainda, que a mulher não pode ser obrigada a exercer curatela, tendo o texto das Ordenações sido claro neste sentido ao aduzir “[...] se quiser tomar carrego de seu marido [...]”, de modo que será curadora apenas se concordar.

Teixeira de Freitas (1876, p. 218-219) levanta a discussão acerca da possibilidade de a mulher ser curadora nas situações em que é menor de idade. Conclui, entretanto, que isto é vedado pela legislação, considerando os artigos 312, §§4º e 5º, e 262, §2º, da Consolidação das Leis Civis, os quais vedam a curatela a menores de vinte e um anos. Estes artigos são correspondentes, respectivamente, nas Ordenações, ao L. IV, tit. 103, §5º e aos L. IV, tit. 102 § 1, e tit. 104 §3º.

Almeida (1985, p. 1005) explana que as Ordenações também definem outros possíveis curadores para o alienado e, diferentemente da esposa, estes não poderão se escusar de exercer a curatela. Versa o §2º das Ordenações Filipinas:

4. E não tendo o Desasisado pai, nem mulher, e tendo algum avô da parte do pai, ou da mãi, o juiz lhe encarregará a Curadoria. E tendo ambos vivos, a encarregará ao que para isso fór mais pertencente, e o constrangerá que aceite o dito cargo.

5. E no caso que o Desasisado não tiver pai, nem mulher, nem avô, seja constrangido para ser seu Curador seu filho varão, se o tiver tal, que seja para isso idoneo, e maior de vinte cinco annos; e não tendo tal filho, seja constrangido seu irmão, para isso pertencente, e maior da dita idade, e que tenha casa manteúda, em que viva; e não havendo tal irmão, será constrangido seu parente mais chegado, assi da parte do pai, como da mai, que para isso fôr pertencente, e abonado em tantos bens, que abastem, segundo a fazenda e patrimonio do Desasisado. E não tendo parentes, seja constrangido qualquer estranho idoneo e abonado, como dito he. 8. E estes Curadores dados assi aos Desasisados, como aos Prodigos, não serão obrigados a servir mais em cada huma Curadoria, que dous annos cumpridos, segundo acima he ordenado ácerca do Curador dativo, que he dado ao menor de

vinte cinco annos, salvo no caso, onde lhe fór dado por Curador seu pai, ou sua mulher ou avó, porque cada hum deles terá curadoria, em quanto o Sandeu durar na sandice, ou o Prodigo em seu máo governo. (ALMEIDA, 1985, p. 1006-1008) Sobre ao retorno do alienado à razão e a cessação da curatela, também versaram as Ordenações:

2. E esta Curadoria administrará o pai ou a mulher, em quanto o filho ou marido durar na sandice. E tornando a seu perfeito siso e entendimento, ser-lhe-hão tornados e restituidos seus hens com toda livre administracão delles, como a tinha, antes que perdesse o entendimento. E o pai será obrigado dar conta como os regeo e administrou, em quanto foi seu Curador. E se alguma duvida houver entre elles sobre a dita conta, determine-a o Juiz como achar per Direito.

3. E sendo furioso per intervallos e interposições de tempo, não deixará seu pai, ou sua mulher de ser seu Curador no tempo, em que assi parecer sesudo, e tomado a seu entendimento. Porém em quanto elle stiver em seu siso e entendimento, poderá governar sua fazenda como se fosse de perfeito siso. E tanto que tornar á sandice, logo seu pai, ou sua mulher usará da Curadoria e regerá e administrará a pessoa e fazenda delle, como dantes. (ALMEIDA, 1985, p. 1005-1006)

Versaram também acerca da capacidade de testar, no Livro IV, título 81:

Das pessoas, a que não he permitido fazer testamento

O Varão menor de quatorze annos, ou a femea menor de 12, não podem fazer testamento nem o furioso. Porém se não tiver o valor continuo, mas por luas ou dillucidos intervalos, valerá o testamento, que o fez estando quieto, ou fora do furor, constando disso claramente: como tambem valera o testamento, que antes do furor tiver feito. E isto, que dizemos do furioso, se entenderá tambem no que nasceu mentecapto, ou que veio a carecer de juízo por doença, ou qualquer outra maneira. 1. E se o que está em continuo furor sem intervalo, e remissão alguma, fizer seu testamento tão ordenado como o faria hum homem de perfeito juízo, não valerá por isso o tal testamento.

2. E se o que tem dillucidos intervalos, fizer seu testamento, e se duvidar se o fez, stando em seu perfeito juízo, deve-se considerar a qualidade da disposição e testamento; porque se o que nelle se dispõem, eh tão razoado, e feito com tanta ordem, como o fizera hum homem de são juizo, deve-se presumir, e crer, que no tempo que o fez estava em seu perfeito juizo. E sendo feito em outro modo, se presumira o contrario. [...](ALMEIDA, 1985, p. 1006-1008)

As disposições do supracitado §2º do titulo 81 e do anteriormente mencionado §3º do título 103 trouxeram grande polêmica doutrinária no que disciplinaramsobre a capacidade do louco nos intervalos lúcidos. Teixeira de Freitas (1860, p. 76, apud Rodrigues, [1933?], p. 109-110), embora tenha tratado de modo contraditório os intervalos lúcidos em seu próprio Esboço (o qual será abordado em tópico posterior), como destacou Nina Rodrigues ([1933?], p. 110), criticou categoricamente o sistema das Ordenações que reconhece a capacidade aos loucos nesses momentos.

Aduz que conceder capacidade nos intervalos lúcidos seria incoerente e perigoso. Incoerente, porque tornaria inútil a declaração prévia da alienação mental, não resultando desta uma incapacidade absoluta, a qual serviria para alertar os terceiros de boa fé e excluiria a pureza dos atos jurídicos. Perigoso, por sua vez, porque designar o que seria um intervalo

lúcido é um problema resolvido pelos médicos alienistas e psicólogos, não sendo algo fácil de se apurar no caso concreto. Teixeira de Freitas chega a afirmar que a dificuldade de se determinar tais estados seria tão evidente que as próprias ordenações estariam reconhecendo este fato ao mandar decidir, no tit. 81, §2º, se o testamento é nulo ou não de acordo com a qualidade das disposições testamentárias.

Portanto, em resumo, observa-se que as Ordenações Filipinas oferecem proteção ao alienado, ainda que o façam de modo rudimentar, utilizando-se de termos reconhecidamente arcaicos até para a doutrina da época. Elas preveem curatela, a ser exercida preferencialmente pelo pai, mas também oferecem a possibilidade de a esposa ser curadora sob algumas condições (dentre estas a mulher querer de fato ser curadora e ser considerada “honesta”); apontam a necessidade de prestação de contas e propósito de cura, assim como estabelecem ordem de prioridade de curadores (os quais podem ser constrangidos à função) caso não haja possibilidade de ser este o pai ou a esposa; e, além disso, determinam competência para o Juiz de “Orphãos”, o qual pode agir de ofício para nomear curador ao alienado.

Ademais, preveem a capacidade dos alienados nos lúcidos intervalos e a possibilidade de realizarem testamento nesse estado, dependendo da qualidade das disposições testamentárias. Por fim, há de se ressaltar o detalhe da necessidade de exame médico para a concessão de curatela, o qual, mesmo não estando no texto da lei, parece ser reconhecido pela jurisprudência e a doutrina do período.