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Como explanado em tópico anterior, o Código Civil de 1916 adveio do Projeto de Clóvis Beviláqua, apresentado em 1899, o qual sofreu diversas modificações pela nomeada comissão revisora, até a sua aprovação em 1916. Conforme indica Zarias (2010, p. 61-76), entrou em vigor apenas em 1917, revogando as disposições reguladas pelo Livro IV das Ordenações Filipinas.

O Código Civil de 1916 muito incorporou de projetos antecedentes e seguiu a estrutura do Código Civil Alemão de 1896, ainda que tenham sido inseridas muitas ideias

francesas (como preceitos do Código Civil francês de 1804), além de princípios de Direito Romano. Muitos artigos, também, foram aproveitados das Ordenações Filipinas e, cerca de duzentos, do Esboço de Teixeira de Freitas.

Tendo as polêmicas acerca da nomenclatura e das disposições mais específicas de alguns artigos sido abordadas em tópico anterior, neste se limita a tratar das doutrinas acerca da curatela dos loucos, no Código de 1916 em si, ressaltando-se a doutrina de Pontes de Miranda e a sua crítica.

Clóvis Beviláqua apresentou a seguinte definição de curatela:

Curatela é o encargo publico conferido por lei a alguém, para dirigir a pessoa e administrar os bens dos maiores que por si não podem fazel-o. (BEVILÁQUA, 1903, p. 579).

Pontes de Miranda, por sua vez, define:

Curatela ou curadoria é o cargo conferido por lei a alguém, para reger a pessoa e os bens, ou somente os bens, de indivíduos menores, ou maiores, que por si não o podem fazer, devido a perturbações mentais, surdo-mudez, prodigalidade, ausência, ou por ainda não ter nascido. (MIRANDA, 1947, 273.)

Desse modo, Pontes de Miranda (1947, p. 273) explana estarem definidas no Código de 1916 seis espécies de curadoria para os incapazes não menores: a curatela de loucos (furiosi e mente capti); a curatela dos neuróticos e dos psicóticos; a curatela dos surdos-mudos (surdi, iidem et muti); a curatela dos pródigos (prodigi); a curatela dos ausentes (absentes) e a curatela do nascituro.

Segundo Pontes de Miranda (1947, p. 276) os fracos de espírito, os que sofrem de perturbações mentais não podem reger convenientemente sua pessoa e bens, de modo que lhes deve ser designado curador.

Sobre a curatela dos alienados especificamente, assevera Pontes de Miranda (1947, p. 277) que a possibilidade de interdição do louco, ainda que restrinja o exercício pessoal de seus direitos, é um benefício da lei. Desse modo, para que seja legítima a curatela, a finalidade deve ser a proteção do interdito (sua pessoa e bens), do contrário será condenável e opressiva.

Pontes de Miranda critica o Código Civil de 1916 também quanto à denominação simplista de “loucos”, como indicado no tópico anterior. Aduz que o relevante para a lei não são a etiologia e os sintomas da loucura, mas se há, ou não, incapacidade jurídica do indivíduo. Desse modo, ao fazer o exame do arguido de incapacidade, o médico responsável deveria focar-se em informar ao juiz se o estado mental do indivíduo exclui, ou não, a sua capacidade jurídica.

Muitas vezes, os médicos consideravam distúrbios simples, parciais e limitados como um estado de alienação mental, mas apenas isto não bastaria para a interdição de um indivíduo. Assim, mesmo havendo diagnóstico de doença mental, o juiz deveria informar-se acerca das condições psíquicas do indivíduo quanto ao fator da capacidade jurídica em específico.

Sobre aqueles que se enquadram na expressão “loucos de todo o gênero”, versou Pontes de Miranda:

Os loucos de todo gênero estão, legalmente, sujeitos à curatela, quer se trate de dementes, de fracos de espírito (imbecis), de dipsómanos (impulsão irresistível a beber), que se diagnostique a demência afásica, a fraqueza mental senil, degeneração, psicastenia, psicose tóxica (morfinismo, cocainismo, alcoolismo), psicose autotóxica (esgotamento, uremia, etc.) psicose infectuosa (delírios pós- infecciosos, etc.) paranoia, demência artèrioesclerótica, demência sifilítica, etc, uma vez que a moléstia altere o uso vulgar de suas faculdades, tornando-o incapaz de exercer normalmente os atos da vida civil (MIRANDA, 1947, p. 277-278)

Portanto, para Pontes de Miranda (1947, p. 278) apenas dois requisitos realmente importariam: a questão da finalidade da curatela (saber se a interdição seria necessária e benéfica para o arguido de incapacidade); e a razão legal da curadoria (se o indivíduo é o não capaz para reger a si mesmo e a seus bens). O segundo seria de caráter público, de modo que o primeiro fica dependente à resposta deste.

O exame médico, assim, não podia ser entregue apenas com considerações sobre a doença sem especificações sobre os assuntos, na medida em que o juiz, ainda que conheça a lei, pode não saber qual síndrome e qual grau seria suficiente para indicar a incapacidade do indivíduo para os atos da vida civil.

Pontes de Miranda critica o fato de o Código Civil de 1916 não aceitar a gradação da incapacidade civil para loucos. Ainda que o faça em relação aos surdos-mudos, quanto às doenças mentais ou nervosas só distingue os estados mentais de capacidade civil e incapacidade civil absoluta.

No caso dos pródigos, são admitidos, implicitamente, dois graus. Define-se que quando a prodigalidade chega a um ponto que atinge a loucura em suas manifestações, entendia-se que o indivíduo deveria ser submetido à curatela dos alienados, e não à dos pródigos. Contudo, sendo a síndrome da prodigalidade relativa exclusivamente à capacidade de administrar os bens, estaria o curador limitado ao gerenciamento dos mesmos.

Pontes de Miranda (1947, p. 279) ressalta que, sob a égide do Código Civil de 1916, qualquer obrigação contraída pelo interdito por motivo de loucura será nula. Mesmo que não tenha ainda havido a interdição, se o contraente da obrigação já estava afetado pelo

distúrbio mental à época, será nula a obrigação. Apesar disto, essas obrigações são afiançáveis, por exceção do artigo 1.488 do Código Civil de 1916, o qual versa:

Art. 1.488. As obrigações nulas não são suscetíveis de fiança, exceto se a nulidade resultar apenas de incapacidade pessoal do devedor.

Quanto à curatela dos que denomina como neuróticos e psicóticos, Pontes de Miranda (1947, p. 282) assevera que foi a Lei de n. 4.294 de julho de 1921 que cogitou da toxicomania, tendo sido completada pelo Decreto de nº 14. 969 de 03 de setembro de 1921, como será abordado em tópico posterior. Contudo, foi a Lei de nº 24.559 de 03 de julho de 1934 que estabeleceu incapacidade relativa, em seu art. 26:

Art. 26. Os psicopatas, assim declarados por perícia médica processada em forma regular, são absoluta ou relativamente incapazes de exercer os atos da vida civil. Parágrafo único: Supre-se a capacidade pelo modo instituído na legislação civil ou pelas alterações constantes do presente decreto”. (MIRANDA, 1947 p. 282).

Pontes de Miranda aduz ser essa uma modificação necessária de se ocorrer. Neste trabalho, porém, não será mais profundamente abordada, visto ser a referida lei de 1934, posterior à Primeira República.

Sobre a proteção legal da pessoa do interdito, Pontes de Miranda (1947, p. 294) critica, como mencionado anteriormente, o artigo 457:

Art. 457. Os loucos, sempre que parecer inconveniente conserva-los em casa, ou o exigir o seu tratamento, serão também recolhidos em estabelecimento adequado. Afirma que o Projeto do Código previa o internamento em estabelecimento adequado apenas quando fosse inconveniente manter os loucos em casa e que, devido à crítica de Nina Rodrigues, o artigo foi reformado para adicionar as palavras “ou a exigir seu tratamento”. Pontes de Miranda não julgou ser a alteração bastante e recorreu às disposições aplicadas à tutela para se prestar a uma interpretação mais ampla, já que segundo o próprio Código se permitiu aplicá-las à curatela.

Desse modo, entendeu como deveres do curador: a) Se menores, dirigir-lhes a educação.

b) Em qualquer caso: defende-los, dar-lhes o necessário a seu sustento, habitação, roupa e tratamento de moléstias, principalmente daquelas a que é devida a incapacidade do interdito (Código Civil argentino, art. 481; Ordenações Filipinas, Livro IV, Título 103, § 1º; Teixeira de Freitas, Consolidação das Leis Civis, art. 315: “Êstes curadores prestarão juramento de fielmente administrarem os bens do demente, e de aplicarem os necessários socorros médicos segundo a qualidade da sua pessoa”; Lafaiete Rodrigues Pereira, Direitos de Família, 307: “Compete ao curador tratar da pessoa demente, promover-lhe a cura”), conforme os seus haveres e condição.” (MIRANDA, 1947, p. 295)

Explanou Pontes de Miranda (1947, p. 295-296) que, se o interdito possui bens, suas despesas serão feitas por sua conta, devendo o juiz arbitrar o valor necessário para isto, sobretudo para que sejam utilizadas para o tratamento da loucura. Se o juiz não consentir com o valor apontado, por ser incurável a doença, ou se o tratamento poderia ter sido feito em estabelecimento público, ou até mesmo particular que envolvesse menos despesas (bastando as rendas do doente ou as quantias delimitadas para os seus gastos com alimentos), o curador será responsável pelo que gastou indevidamente. A responsabilidade do juiz, por sua vez, se dará nos mesmos termos do disposto a respeito da tutela.

Desse modo, Pontes de Miranda (1947, p. 296-297) enumera os motivos os quais legitimavam o recolhimento dos loucos a estabelecimentos “adequados”. Primeiro, a situação inicialmente citada no artigo 457, ou seja, “sempre que pareça inconveniente conservá-los em casa”. Para Pontes de Miranda, seriam estes os casos em que o internamento é de utilidade para o enfermo ou necessário para evitar prejuízos causados por seus atos, como demonstrações de violência. Ressalta que os estabelecimentos a que se refere não são somente os hospitais para alienados, mas casas de repouso, educação, terapia, etc.

Cita também situações em que a anormalidade não seria grave ao ponto de requerer a internação contra a vontade do paciente, de modo que configuraria crime de sequestração ilegal submetê-lo ao recinto:

A internação de degenerados, cujos sintomas de anormalidade, pelos quais foi interdito e não se agravaram, se limitam à irresolução, à aceitação absoluta das ideias estranhas e à anafrodisia (indiferença sexual, frigidez), salvo se o estabelecimento se incumbe do tratamento de tais doentes pacíficos, é caracteristicamente sequestração ilegal, punível pelas leis criminais. O desmemoriado inofensivo não deve ser entregue a hospício rudimentar, como soem ser o de vários Estados-membros do Brasil, em que os únicos misteres são a clausura, a alimentação escassa, e de quando em vez a inócua visita de médicos sem a necessária competência em psicologia contemporânea e psiquiatria,- os psico- clínicos das poções que tudo reduzem a causas anátomo-fisiológicas, às vezes rezadores, católicos e protestantes, que ignoram a alma, a psique. (MIRANDA, 1947, p. 296-297)

O segundo motivo enumerado para a internação do interdito é se exigir o tratamento do doente. O curador poderá entregar o doente a casas de saúde especiais e profissionais idôneos para este fim, quando o estado do interdito exigir e quando o estabelecimento for adequado para aquele tratamento específico.

Quanto a quem poderá exercer a curadoria, Pontes de Miranda (1947, p. 299-300) comenta os nomeados pelo artigo 477, são estes:

Art. 477. O descendente, ascendente, ou cônjuge, que for sucessor provisório do ausente fará seus todos os frutos e rendimentos dos bens que a este couberem. Os outros sucessores, porém, deverão capitalizar metade desses frutos e rendimentos, segundo o disposto no art. 472, de acordo com o representante do Ministério Público, e prestar anualmente contas ao juiz competente.

Aduz Pontes de Miranda que os ascendentes podem ser tanto naturais quanto adotivos, e que se a pessoa a quem se busca interditar por loucura já for interdito por prodigalidade, ou se ele já estava sob a autoridade de um curador de seu pai ou de sua mãe, poderá o curador atual interpor a ação de interdição. Quanto à expressão “parente próximo”, a qual critica por não ser técnica, a proximidade deve ser compreendida de modo restrito, a se estender até ascendente, descendente e irmão. Outros, ainda que próximos, não podiam fazê- lo, assim como não podia o próprio louco em um momento de lucidez. O desquitado também não possuía legitimidade para propor a ação.

Havia também a possibilidade do Ministério Público intervir no caso de loucura furiosa, ou se não havia nenhuma das pessoas designadas anteriormente, ou estivessem estas impedidas (por serem menores, ou incapazes etc.). Acerca deste trecho, Pontes de Miranda criticou contundentemente a utilização da expressão loucura furiosa.

A expressão “loucura furiosa” é imprópria; melhor seria que a lei tivesse empregado palavra que mais nitidamente significasse loucura violenta, etc. Furiosus, possuído das Fúrias, como os cerriti os eram de Ceres, os larvatti, das Larvas, e os lymphati, das Linfas. No direito romano, porém, a palavra “furiosi” adquiriu significado genérico, devido, principalmente, a só deles se ter ocupado a Lei das XII Tábuas [...] Entre nós ordinariamente, loucura furiosa quer dizer loucura violenta, em que o indivíduo pratica atos descomedidos, escoriações, pancadas em outros, ou em si próprio, força a prisão, rompe as roupas, se desnuda, etc. Acreditamos, contudo, que os legisladores mais quiseram atender à temibilidade do insano; não temibilidade possível, pelo agravar-se a moléstia, mas à temibilidade já evidenciada em atos anteriores ou presentes devidamente provados. (MIRANDA, 1947, p. 300).

Quanto à natureza da sentença de interdição, Pontes de Miranda (1947, p. 306- 307) considerou ser constitutiva, ainda que a mesma não crie a incapacidade do louco. A sua eficácia será ex tunc. A sentença desfavorável era, contudo, meramente declaratória.

Os atos anteriores à interdição poderiam ser julgados nulos quando se provasse que a causa da incapacidade já existia à época do negócio praticado. Já os atos praticados pelo interdito na constância da interdição se presumem nulos.

A exceção a esta regra é o casamento do louco o qual era apenas anulável por força do art. 183, IX, combinado com o art. 209, derrogando o princípio geral de que são nulos todos os atos praticado por pessoa considerada absolutamente incapaz.

Como medida de segurança, antes de assumir a curatela, o curador era obrigado a especializar em hipoteca legal os imóveis necessários que servissem para acautelar os bens do interdito, como destaca Pontes de Miranda (1947, p. 320)

Por fim, a curadoria se encerrava quando se tivesse findado o prazo em que o curador era obrigado a servir, sem prorrogação do dever; mediante alguma escusa legítima; ou quando o interdito era curado, recobrando a razão e a sua capacidade jurídica. Como indica Pontes de Miranda (1947, p. 327-328), no último caso, o curatelado voltava à livre administração de sua pessoa e seus bens, tendo todos os atos válidos a partir da sentença que levantou a interdição.

Desse modo, verifica-se que o Código Civil de 1916 ofereceu diversas maneiras de proteção aos alienados, mas, apesar de já ter passado por modificações para suprir as críticas recebidas ao projeto, ainda permaneceram, no texto, vários aspectos recriminados pela doutrina.

Dos defeitos demonstrados por Pontes de Miranda, destacam-se o uso da nomenclatura “loucos de todo o gênero” assim como o uso do termo “furiosos”; a ausência de distinção de graus de incapacidade para os loucos; e a determinação de que estes deverão ser internados nos casos em que mantê-los em casa for “inconveniente” para a família. A doutrina, assim, parece tentar suprir os vácuos do texto com as interpretações atribuídas, ressaltando a necessidade de tratamento para a proteção do doente e demonstrando cautela para evitar a ocorrência de internação de indivíduos capazes.

3.5 LEI DE ASSISTÊNCIA AOS ALIENADOS (DECRETO DE Nº 1.132 DE 22 DE