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Como supracitado, diferentemente dos demais analisados, o caso Lídia de Azevedo não se refere a um processo judicial. Na verdade, como aduz Oliveira (2011, p. 168- 171), a paciente é mencionada bem brevemente em Atas de Sessões da Santa Casa de

Misericórdia28, sendo seu caso uma questão administrativa interna do Asilo São Vicente de Paula. Relembra-se, como abordado em capítulo anterior, que a administração do Asilo era vinculada à da Santa Casa, e que, na Primeira República, a irmandade passou a funcionar com a sistemática de uma autarquia.

Lídia de Azevedo foi uma das pacientes internadas no Asilo São Vicente de Paula, mas, como aduz Oliveira (2011, p. 171), desconhecem-se informações mais precisas sobre a sua vida. Sabe-se apenas, considerando a repercussão gerada por sua internação, que esta não tem o perfil da maioria das mulheres as quais eram comumente internadas no Asilo, ou seja, indigentes desvalidas e loucas criminosas.

Oliveira, porém, aduz ser provável que Lídia de Azevedo não fosse abastada socialmente, considerando que em nenhum momento é mencionado o nome de algum responsável que por ela intercedesse, ou questionasse a sua permanência na instituição, nem mesmo o marido ou o pai. A falta de menção, contudo, não significa, necessariamente, a inexistência de familiares, e a ausência de questionamento por parentes pode ter se dado por vergonha do estado de “loucura” da paciente. Não há como determinar com certeza.

Ademais, além do que consta nas referidas atas, não é possível encontrar informações mais específicas acerca da internação de Lídia de Azevedo, ou a de qualquer paciente. Afinal, como indica Freitas (2011, p. 21), todos os prontuários médicos do Asilo foram incinerados a mando da direção da Santa Casa de Misericórdia.

Como relata Oliveira (2011, p. 169), o ocorrido foi o seguinte: no dia 6 de março de 1890 chegou a notícia, na mesa regedora da Santa Casa, de que havia sido internada uma mulher “no gozo de suas faculdades mentaes”, uma senhora casada de nome Lídia Azevedo. Inicialmente tratado como um boato, o caso acabou ganhando repercussão, chegando a ter sido considerado pelos membros da mesa como de “summa gravidade”.

A mesa acabou requerendo que fosse averiguado o boato, sendo chamado o médico do asilo, Meton de Alencar, para dar explicações com a máxima urgência. Na sessão seguinte, foi analisado ofício do referido médico, expedido um dia após a solicitação, o qual explicava que a paciente realmente sofria de suas faculdades mentais.

Oliveira aduz que os mordomos da Santa Casa, contudo, não se convenceram com o diagnóstico do médico, mesmo este representando, supostamente, a autoridade clínica

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As atas citadas por Oliveira (2011, p 169), sobre o caso, foram as seguintes: Sessão: 06 de março de 1890, p. 87, do Livro de 17 de novembro de 1889; Sessão: 13 de março de 1890, p. 87, do Livro de 17 de novembro de 1889 e Sessão: 27 de março de 1890, p. 93, do Livro de 17 de novembro de 1889 (Acervo: SCM).

máxima, pois Meton de Alencar, além de médico do Asilo, era clínico do próprio hospital da irmandade.

O mordomo Justiniano Serpa, então, propôs a nomeação de uma comissão de facultativos para emitir um parecer acerca do estado de saúde da paciente. A proposta, contudo, acabou causando desconforto na mesa corregedora, tendo em vista que contestava diretamente o diagnóstico e a autoridade do médico.

Em sessão do dia 27 de março29, Justiano Serpa justificou a sua pretensão:

À acta da sessão de 13 de Março necessito, a bem da verdade, que se faça uma rectificação. A acta declara, que em vista de officio do medico do Asylo, eu propuz a nomeação de uma comissão medica que estudasse o facto e emitisse parecer. A narração é verdadeira, mas deve ficar consignado, que fiz essa proposta em vista as informações trasidas à mesa pelos mordomos D. Virgílio e Antonio Domingues que consideraram o caso bastante grave para ficar em silêncio. Sala de sessões, 27 de março de 1890, J. da Serpa. (OLIVEIRA, 2011, p.170)

Posteriormente, após considerações feitas pelo procurador geral e pelo vice- provedor, a proposta foi colocada para votação. Segundo Oliveira, a proposta acabou sendo rejeitada. Votaram a favor somente o próprio Justiniano Serpa e Antônio Domingues. Restou, portanto, encerrado o caso, permanecendo a paciente Lídia de Azevedo internada no Asilo São Vicente de Paula.

Não é possível investigar o caso em maiores detalhes. Primeiro, por não se ter acesso aos documentos originais das atas, e segundo, porque, como ressaltado por Oliveira (2011, p. 170), não há mais informações disponíveis sobre a paciente.

Apesar disto, o relato se mostra bastante relevante por demonstrar o procedimento adotado em uma situação em que é questionada uma internação. Não fica claro o motivo da dúvida, ou a razão pela qual o diagnóstico de Meton de Alencar ter sido questionado. Mas, como supracitado, a situação chegou a ser referida como de “summa gravidade”, mesmo não havendo evidências de alguém que estivesse a intervir pela liberação da paciente. É relatado que a mesma era casada, mas Oliveira aponta expressamente não haver menção a qualquer atuação do marido.

Ademais, Justiniano Serpa, declaradamente aponta ser a gravidade do caso reconhecida tanto por ele quanto por outros mordomos (Dr. Virgilio e Antonio Domingues), no trecho citado, chegando ao ponto de sugerir a formação de uma comissão de facultativos.

Observa-se, assim, um dilema político interno, havendo aparente receio dos demais de contestar a autoridade de Meton de Alencar como médico do Asilo e do hospital da

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irmandade. Cumpre-se lembrar que, como aduzido em capítulo anterior, o mesmo atuava como clínico geral, não sendo um médico alienista.

Não se pode afirmar ser esta situação de sequestração ilegal, tendo em vista que não há como opinar acerca do real estado de sanidade mental da paciente com base nos documentos apresentados. Não é cabível fazer suposições acerca disto. Porém, é notório o caráter aparentemente político, mesmo que interno da decisão, mais voltado para a situação da mesa do que, parece, para o estado da paciente. Percebe-se também a dimensão dos poderes concedidos ao médico Meton de Alencar.

A situação remete ao comentado por Nina Rodrigues ([1933?], p. 181) em 1901, como citado no capítulo anterior, sobre o fato de que, sem lei nacional que as regulamentasse (a Lei de Assistência de Alienados é apenas de 1902), as formalidades no procedimento de internação seriam somente as que figuram nos regulamentos internos dos estabelecimentos, quando sequer existiam. Inclusive, quando cita o caso da tentativa indevida de internação de Luiza Alcover, Nina Rodrigues chega a criticar os poderes demasiados conferidos ao médico:

Do caso, se há de concluir, pois que, no Brasil, um medico director da Casa de Saude para alienados póde sequestrar impunemente a quem assim lhe aprouver, si as circunstancias fortuitas a isso não se opuserem. (RODRIGUES, [1933?], 181) Desse modo, é certo que não se pode supor acerca da razoabilidade da decisão final, mas pode-se concluir que a decisão de encerrar o caso sem demais perícias ou investigações, mesmo diante de tão reiterada gravidade da situação, mostra-se questionável. Conclui-se, assim, que, nesse sistema, certamente, havia margem para a ocorrência de internações irregulares.