RevBrasCiêncEsporte.2016;38(3):310---312
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Revista
Brasileira
de
CIÊNCIAS
DO
ESPORTE
RESENHA
Olhares
aparentemente
dispersos
para
a
história
da
educac
¸ão
corporal:
Sentidos
e
sensibilidades
Stares
apparently
scattered
toward
to
the
history
of
body
education:
Senses
and
sensibilities
Miradas
aparentemente
dispersas
hacia
la
historia
de
la
educación
corporal:
Sentidos
y
sensibilidades
Taborda
de
Oliveira
M.
(Org.).
Sentidos
e
sensibilidades
:
sua
educac
¸ão
na
história
.
Curitiba:
Editora
da
UFPR,
2012.
Sentidosesensibilidades: suaeducac¸ãonahistóriaé uma coletânea composta por nove capítulos que analisam a formac¸ãohistóricadapercepc¸ãohumana quesedá‘‘pela viadosnossos sentidosprimevos’’(p. 8).Olivrotem tex-tosredigidosporpesquisadoresdeBrasil,Argentina,Uruguai eColômbia,queuniramesforc¸osem tornoda‘‘indagac¸ão fundamental’’sobre‘‘comoforameducadosossentidoseas sensibilidadesemdeterminadostemposelugares’’(p.13). A introduc¸ão à obraé redigida por Marcus Tabordade Oliveira,organizadordacoletâneaeprofessordaFaculdade deEducac¸ãodaUFMG.Nelatomamoscontatocomasbalizas conceituaisearelevância doempreendimentointelectual levadoacabonasucessãodoscapítulos.Assumindoocorpo comoobjetodeestudo,sobretudoapartirdosreferenciais dahistória,asanálisesproblematizamosmoventes,porosos eincertoslimitesentreoqueénaturaleoqueéculturalno tocanteaesseobjetodasestruturas,dasinstituic¸ões,das ideiasedaspráticasformativas.Nesseínterim,Tabordade Oliveira(2012)afirmaquesetratadeleiturasoriundasdeum ‘‘projetomultidisciplinar’’cujoobjetivoé‘‘compreendero quepermanecedearcaiconanossahumanizac¸ãoeaquilo queamudanc¸ahistóricapermitevislumbrarcomosuperac¸ão doestadodenatureza’’(p.9).Oorganizador,assim,assume aexistênciadessadelimitac¸ãoentreodadoeoconstruído apartirdeumacríticaàs‘‘ênfasesnaturalistasou cienti-ficistas’’ (p.9) queolvidam a historicidadedaquilo que é
chamadode ‘‘segundanatureza’ dohomem’’(Tabordade Oliveira,2012,p.9).
Emboraessaconsiderac¸ãopermitaapossibilidadedese enxergar aproblemáticaem diferentestempos, orecorte temporal privilegiado é o período que cobre as décadas finaisdoséculoXIXeasiniciaisdoséculoXX.Escolha, sabi-damente, consagrada pela historiografia educacional que existeapartirdocampodaEducac¸ãoFísica.Agora,porém, essaopc¸ãoéabrac¸adacomumrenovadofôlego,trazidopela especificidadee aunidadetemática emtorno das‘‘novas sensibilidades’’(p.10)quesurgiramnoperíodoeque com-põeosdiferentesalvosdasatenc¸õesdosautoresdecadaum doscapítulos.
No capítulo 1, Kazumi Munakata aborda o apelo edu-cacional de ‘‘abandonar os livros e olhar as coisas para conhecê-las’’ (p.21), pensaa‘‘noc¸ão de‘coisa’’’(p. 22) em manuais espanhóis dedicados ao método intuitivo na virada do século XIX para o XX. Nesse apelo, visto como característico de toda a modernidade, ele verifica que essa ‘‘ida às coisas’’ esteve marcada pelo imperativo da utilidade. Afinal, nos livros estudados, ‘‘o mundoque se dá aos sentidos é, portanto, um mundo que deve cance-lar, paradoxalmente,ossabores,oscheirose o9ssons...’’ (p. 25).Interessantemente,oautor concluiseutextocom umapergunta cuja respostaé plena em implicac¸ões para pensarmosasensibilidadehumananahistória:‘‘...porque nãopensarnascondic¸õesdesubjetividadequesópode con-ceberarelac¸ãohomem/coisacomorelac¸ãodeutilidade?’’ (p.25)
O capítulo 2 é uma análise sobre as transformac¸ões dos sentidos humanos no processo de ampliac¸ão da vida urbana,apartirdecrônicasredigidasporMachadodeAssis e Alfredo Camarate. Olhar (p. 31), tocar (p. 42), ouvir (p. 43),comer(p.48), cheirar(p. 51)sãofocalizados por AndreaMorenoeVeronaCamposSegantini.Elasnotamque no mundo urbano do fim do século XIX construiu-se um ‘‘novoestadosensorial’’(p.55),‘‘inauguram-senovas sen-sibilidades’’(p.55),sustentadasemuma‘‘tensão’’(p.54) entreagrandesolicitac¸ãodos sentidosquese experimen-tava(experimenta-se)nascidades,conjuntamentecom‘‘o
http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2016.06.002
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riscodoembotamento’’(p.54)queera(é)geradonavida dosgrandescentros.
RaumarR.Giménezéoautordocapítulo3,voltadopara aatuac¸ãodeJoséPedroVarelanaeducac¸ãouruguaianofim doséculo XIX.A ‘‘reforma vareliana’’ (p. 61) é mostrada emsua‘‘matrizpositivista’(p.61)ecomoum‘‘programa civilizador’’(p. 61).Nela,aeducac¸ãodossentidosé assu-midacomouma‘‘afectaciónpsicologistayescuelanuevista’’ (p.66),éinferidoquenapassagemparaoséculoXXa soci-edadeuruguaiaconstruiuuma‘‘nuevasensibilidad’’(p.69) fortemente mediada pelas transformac¸ões no mundo escolar.
Aslutasentreuma‘‘estéticacivilizada’’euma‘‘estética bárbara’’(p. 74)naeducac¸ãoargentina éoalvodePablo Pineau. Eleé o responsável pelo capítulo4 e o redigiu a partirdoolharde analistasestrangeirosque estiveramna Argentina e que publicaram seus relatos em 1865 (Ama-deo Jacques)e 1931 (Jennie E. Howard).As décadasque separam os relatos são importantes para evidenciar que ‘‘LasensibilidadbárbarapresenteenRiodeLaPlataenel sigloXIXhablasidoderrotadaporlasensibilidadcivilizada’’ (p. 82). Pedagogicamente, a mudanc¸a materializou-se no novo uso do tempo escolar, na modernidade da arquite-tura das escolas e na condenac¸ão aos castigos corporais, mudanc¸as avaliadas como proporcionadoras de ‘‘saberes útiles’’(p.83),‘‘indispensablesparaelprogresodela edu-cacióndelpais’’(p.75).
Lanc¸ando mão de fontes primárias oriundas do Brasil e da Espanha, Taborda de Oliveira assina o capítulo 5 e investiga a educac¸ão dos sentidos nos marcos de um ‘‘retornoà natureza’’.Mostra-sequeosdebates educaci-onaistiveramumadesuassustentac¸õesna reflexãosobre asrelac¸õeshomem/natureza.Abuscada‘‘condic¸ãonatural dohomem’’ (p. 94),como ‘‘mistérioa sercontemplado’’ (p. 102), encetou uma nova educac¸ão dos sentidos, vis-tos como meios privilegiados para explorar ‘‘a coisa, a natureza, a realidade’’ (p. 94). Apoiado em Fernando de Azevedo,oautorponderaqueanaturezatem‘‘seuduplo’’ (p.99):ela éredenc¸ão,harmonia;mastambémé miséria (p.99),barbárie,‘‘brutalidadeindomada’’(p.100),oque demandou ‘‘novos marcos prescritivos para a educac¸ão’’ (p.93).
Focalizando a realidade colombiana tambémna virada do século XIX para o XX, Claudia X. H. Beltrán estuda representac¸õescirculantesnahistóriaeducacionaldaquele país sobre inquietac¸ões relativas aos hábitos alimentares dapopulac¸ão.Nasanálisesdosextocapítulo, evidenciam--se‘‘forc¸asdiscursivas’’(p. 110)queprocuraramtornaro corpo ‘‘um receptáculo adecuado para una alma buena’’ (p. 110),a partirdapassagem daconsiderac¸ão doatode comer como um pecado a um ato conveniente à saúde e ao desenvolvimento de forc¸as biológicas e morais. Os esforc¸osenvidadosporpolíticoseeducadorescolombianos noperíodoem tela visavama‘‘favorecerla regeneración delpueblocolombiano’’ (p.120), vistocomo ‘‘atrasadoy emviasdeextinción’’(p.120).Paratanto,proibic¸õesde ali-mentos,congressoseducacionaisemédicos,recomendac¸ões higiênicas detodaordem, entreoutrasestratégias,foram usadas para ‘‘regular la estimulación de los sentidos’’ (p.122).
No capítulo7 VictorA. deMeloconstata que a expan-sãodoautomóvelnoBrasildasprimeirasdécadasdoséculo
XX gerou ‘‘dimensões simbólicas’’ ligadas ao ‘‘desejo de sermoderno’’(p. 129).Por isso,eleestudaachegadado ‘‘novo artefatotecnológico’’ (p. 128) no Brasil, o desen-volvimentodoautomobilismo e a formacomo o aumento nofluxo de veículos alterou o ritmo das ruas, nas quais, antes,os‘‘transeuntespassavamsemgrandepreocupac¸ão, apassoslentos’’(p.134).Afinal,a‘‘ideiademodernidade desembacaranopaís,atodavelocidade’’(p.145),naquilo quesetornou‘‘novorei,causandosustocomseubarulhoe seupoder’’(p.134).
No capítulo seguinte, Alexandre F. Vaz e Caroline M. Momm também voltam seus olhares para a cidade, vista como ‘‘expressão da experiência’’ (p. 149), a partir dos escritosdeWalterBenjamin.SenavidaurbanaBenjaminvê uma‘‘pedagogiadosgestos’’(p.151)emqueos‘‘sentidos docorposão educados’’(p. 150), asreflexõesdofilósofo possibilitam a proposic¸ão de uma ‘‘pauta para o estudo daeducac¸ãodossentidosna cidade’’(p.160)baseadaem três pontos: 1) a cidade como ‘‘lugar da sexualidade’’ e daeducac¸ãosensorialcomobiopolítica;2)arememorac¸ão em que se sustenta a sensibilidade infantil e seu alhea-mento ao ‘‘trem do progresso’’ (p. 161) que dávida aos grandescentros;3)eaescolarizac¸ão,fenômeno originaria-mente urbano,como espac¸o,também, deresistência dos ‘‘sentidos, frente às tentativas de anulac¸ão do desejo’’ (p.161).
Fechando a obra, Belén Mercado se debruc¸a sobre a história da educac¸ão artística na Argentina, em que ‘‘La constructióndel buengusto’’ (p. 170) foi uma problemá-tica de grande valor. Afinal, a educac¸ão estética compôs a‘‘función escolar dedistribución de lósprincípios de la modernidade’’ (p. 174), o que impactou a ‘‘creación de la nacionalidad como imaginário’’ de uma novo cidadão: ‘‘cultoycivilizado’’(p.174).
A valia da coletânea, para além da riqueza de cada capítulo que a forma, ganha ainda mais evidência na estruturac¸ão do material feita na introduc¸ão redigida porTaborda de Oliveira. O organizadormanifesta alguma inquietac¸ãoquantoàpossibilidadedeasanálisesserem ape-nas‘‘umagregadodetextosdesconexosentresi’’(p.13). Aindainquieto,eleargumentaquea‘‘aparentedispersão’’ estrutura-se‘‘pelaindagac¸ãofundamentaldecomo foram educadosossentidose assensibilidadesem determinados temposelugares’’(p.13).Essasinquietac¸õese advertên-ciassãojustasenecessárias,principalmenteconsiderando osproblemas(mas,também,opotencial)geradosporuma tradic¸ãodedivulgac¸ãoacadêmicaqueencontrana coletâ-neaumdeseusprincipaisveículos.
A relevância dapreocupac¸ão teve suas consequências. É importante explicar que nesta resenha a opc¸ão de se apresentarcadaumdosnovecapítulosdeu-se,justamente, parasublinharapresenc¸adeduasqualidadesnolivrocomo um todo: 1) a riqueza documental e temática existente que poderá encetar ricas possibilidades de se pensar o corpo e sua educac¸ão história a partir de variados pon-tosde vista; e 2) a organicidade das discussões,voltadas para um único objetivo: mostrar que ‘‘a sensibilidade e a sua educac¸ão podem ser percorridas pelo historiador’’ (p.9).
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Alain Corbin (p. 8) e apenas mencionadopor Tabordade Oliveira.Opc¸ãojustificávelporseramultiplicidadede fon-tes,temposeespac¸osumdosdistintivosdaobra.Todavia, ajámencionadaunidadedasreflexõesdeverálevarauma reflexãomaisdetidasobreaquestãonofuturo.Ostermos dessanecessidadeanalíticapoderãoserdefinidosnão ape-naspelosdesdobramentosdaobraemtela,maspelodiálogo queelapoderáestabelecercomoutrascoletâneasdedicadas atemasrelacionadoseque,deigualmodo,foram publica-dasrecentementeereunirampesquisadoresdeváriospaíses (Tesche, 2011; Scharagrosdsky, 2011). Reside nesse possí-veldiálogoumcampoteórico deaprofundamentoparaas reflexõessobreahistóriadaeducac¸ãocorporal,aser esti-mulado por reflexões tão coesas na sua rica e desejada ‘‘dispersão’’. Com efeito, essa potencialidade é mais um endossoda importância de Sentidos e sensibilidades: sua educac¸ãonahistória.
Conflitos
de
interesse
Oautordeclaranãohaverconflitosdeinteresse.
Referências
Scharagrodsky P. (Org.) La inventión del ‘‘homo gymnasticus’’: fragmentoshistóricossobrelaeducacióndeloscuerposen movi-mientoenOccidente.BuenosAires:PrometeoLivros,2011. TescheL.(Org.)Turnen: transformac¸õesdeumaculturacorporal
europeianaAmérica.Ijuí-RS:EditoraUnijuí,2011.
CarlosHeroldJr.
DepartamentodeEducac¸ãoFísica,UniversidadeEstadual deMaringá(UEM),Maringá,PR,Brasil E-mail:carlosherold@hotmail.com