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A terceira fase do “drama social”, segundo Turner, corresponde ao uso de procedimentos que visem eliminar os conflitos instalados.

No intuito de eliminar a difusão da crise, certos “mecanismos” de ajuste e regeneração [...] informais ou formais, institucionalizados ou ad hoc, são rapidamente operacionalizados por membros de liderança ou estruturalmente representativos do sistema social perturbado. [...] Eles podem abranger desde conselhos pessoais e mediação ou arbitragem informal até mecanismos legais e jurídicos formais, e, para solucionar certos tipos de crises ou legitimar outras formas de resolução, a performance de ritual público (id., ibid., p.34-35, ênfases originais).

A frustração em virtude da incompreensão e da falta de meios para realizar suas idéias na montagem de Les Cenci, a saúde permanentemente fragilizada e abalada pelas dores de cabeça, a falta de recursos financeiros para novos empreendimentos teatrais e até mesmo para sua sobrevivência precipitaram Artaud numa crise ainda maior no seio da sociedade francesa. Sentindo-se em meio à degenerescência dos valores humanos, Artaud procura impingir uma auto restauração, submetendo-se aos ritos sagrados do peiote, realizados pelos índios mexicanos Tarahumaras. É uma atitude que visa restabelecer-lhe, sobretudo, o equilíbrio e a ordem existencial abalada. Interessante observar como a decisão de deixar a Europa e ir ao encontro da civilização mexicana partindo do próprio Artaud, confere-lhe um nível de autoconsciência vital para a restauração do equilíbrio, pois, segundo Turner, é exatamente nesta fase corretiva que o individuo, entendido como unidade social “está em seu momento mais “autoconsciente” e pode atingir a clareza de pensamento de uma pessoa encurralada, lutando pela vida (id., ibid., p.36).

Também não se pode negligenciar que a opção de ir ao encontro da civilização mexicana faz parte de uma postura política que inverte a relação entre colonizadores e colonizados: o México, outrora, colônia explorada e espezinhada pela Europa, passa a ser considerada como detentora do legado de culturas tradicionais, cuja ação devastadora da colonização européia não conseguira destruir. Ir ao México demonstra, neste sentido, também a incredulidade de Artaud diante da mentalidade moderna do homem europeu. É o homem europeu quem esta doente e precisa de cura, e esta cura virá sob a forma elevada do ritual

sagrado, e “Artaud é o europeu que se auto-exila para realizar a catarse de sua identidade de colonizador” (QUILICI, 2004, p. 162).

Com ajuda do amigo Jean Paulhan, Artaud consegue aprovação oficial do Ministério da Educação da França para partir rumo ao México. Na pratica isso apenas lhe garantiu facilidades diplomáticas junto às autoridades mexicanas, pois financeiramente nada lhe fora concedido, tendo que recorrer à empréstimo de amigos como Barrault e o próprio Paulhan. Desembarcou em terras mexicanas em sete de fevereiro de 1936, mas somente quatro meses depois, conseguiu pisar em solo dos índios Tarahumaras. Artaud sabia que a participação no ritual sagrado do peiote exigia-lhe uma preparação de corpo e alma, e para tanto, deixou de usar as drogas que lhe aliviavam as dores de cabeça. Disso decorreu chegar à montanha sagrada do ritual em estado deplorável, segundo ele próprio admitiu nos relatos que descrevem sua experiência mágica com o peiote. Parte dessa descrição segue abaixo, extraída de seu artigo intitulado A dança do Peiote, escrito em 1937 logo após seu regresso a Paris:

Lá em cima, nas vertentes da montanha enorme que desciam em degraus até a povoação, fora traçado um circulo de terra. À frente das suas metates (cubas de pedras), já mulheres moíam o Peiote com uma espécie de escrupulosa brutalidade. Os serventuários começaram a espezinhar o círculo. Espezinhavam-no cuidadosamente e em todos os sentidos; e no meio do circulo acenderam uma fogueira que o vento lá do alto aspirava em turbilhões. Durante o dia tinham matado dois cabritos. E num tronco de árvore cortado, cortado em cruz também, eu via agora os pulmões e o coração dos animais abanarem ai vento noturno. [...] Do lado em que o sol nascia espetaram dez cruzes de tamanhos desiguais mas numa formação simétrica; e a cada cruz amarraram um espelho. [...] Em redor do círculo uma zona moralmente deserta onde nenhum índio se atrevia a entrar; diz-se que os pássaros dentro do círculo ficam desorientados e caem, e as mulheres grávidas sentem o feto decompor-se. [...] E quando o sol desce é que os feiticeiros penetram no circulo e o bailarino dos seiscentos badalos [...] dá o seu grito de coiote na floresta. O dançarino entra e sai mas não abandona apesar disso o circulo. Entra deliberadamente pelo mal. Mergulha nele com uma espécie de coragem horrível, num ritmo que desenha a Doença por cima da Dança, ao que parece. [...] E ao longo de uma noite inteira é que os feiticeiros voltam a estabelecer as relações perdidas, com gestos triangulares que cortam estranhamente as perspectivas do ar. [...] Porque terminadas as doze fases da dança, e estando a aurora a nascer, entregaram-nos Peiote moído que parecia uma espécie de caldo lodoso; e a frente de todos nós foi escavada outra cova para receber das nossas bocas aqueles escarros que a passagem do Peiote tinha tornado, de ora em diante, sagrados. - Cospe – disse-me o bailarino – no mais fundo da terra que te for possível, pois nenhuma parcela de Ciguri deve voltar ao de cima. [...] Depois de escarrar, fiquei a morrer de sono. O dançarino passava e tornava a passar à minha frente, dava voltas e gritava só por luxo, pois descobrira que o seu grito me agradava. Ergue-te, homem, ergue-te – berrava ela a dar voltas cada vez mais inúteis. Desperto e vacilante levaram-me às cruzes para a cura final, lá onde os feiticeiros põem o ralador a vibrar por cima da cabeça dos pacientes. [...] E com estes derradeiros passes é que a dança do Peiote terminou. (2007, p. 42-43-44-47-48-49-50; ênfases originais)

Considerando que o relato acima foi feito por um participante de uma cerimônia sagrada que em determinando momento é convidado a ingerir uma bebida alucinógena para

alcançar a purificação e a cura, o mais importante então, não se encontra numa descrição linear dos acontecimentos, mas antes observar o esforço de Artaud, na tentativa de apreender a rede de significados presentes nos diversos elementos do ritual, dês dos artefatos utilizados, as ações purificatórias, a geometria do espaço, até a movimentação do dançarino. Em outras palavras, é a tentativa de quem mesmo imerso na experiência ritual, pretende alcançar e decifrar uma espécie de linguagem secreta presente na cerimônia.

Após seu regresso a Paris em 1937, Artaud afirmara que sua participação no rito sagrado do peiote havia lhe proporcionado “os três dias mais felizes de sua vida”. A restauração do equilíbrio almejada por Artaud parece ter sido alcançada; a ação corretiva parece finalmente renovar e revigorar sua existência; os males extirpados e a dignificação da vida plenamente refeita. No entanto, a ação corretiva se obteve sucesso, este foi logo interrompido pela falta de recursos financeiros e, principalmente, pelo estado avançado de dependência do ópio, láudano e heroína, que o levou a submeter-se por duas vezes, num período de tempo curtíssimo, a tratamento para desintoxicação dessas drogas. “Quando a correção falha, geralmente há uma regressão à crise” (2008, p.36), já nos alertava Turner.