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1.2.5 – Retorno a 2ª Fase: Nova intensificação da crise ou Artaud iniciado.

O regresso da crise, após a intenção experiência nos ritos Tarahumaras, não significa, porém, um fracasso ou uma frustração com a experiência vivida, mas antes marca de modo decisivo o entendimento de Artaud acerca do seu Teatro da Crueldade, pois, se como afirmara a pelo menos três anos antes de sua viagem que “o primeiro espetáculo do Teatro da Crueldade se intitulará: A CONQUISTA DO MÉXICO” (1984, p. 159, ênfases originais), o que se impõe a ele na montanha onde se realizara o ritual é a possibilidade de vivenciar o exemplo lapidar desse teatro mágico. O que se verá a partir de então é a conduta de um homem que participou de um ritual xamânico, acreditando ter sido iniciado nos segredos místicos dos feiticeiros mexicanos. Como iniciado e profeta dos segredos que lhe foram revelados naquela montanha mágica o que importa é anunciar e compartilhar dos ensinamentos místicos para a cultura européia doente e falida, no entendimento de Artaud. A transposição da tragédia do palco pra vida ganhará contornos emblemáticos, e esse é na verdade o regresso da crise, pois isso o colocará no limite tênue entre a dramatização de suas idéias e o delírio psicótico.

Uma pequena e misteriosa espada de aço toledano e uma bengala irlandesa são segundo Martin Esslin, os dois objetos que despertaram a preocupação e o interesse, ainda maior de Artaud, pelos sinais mágicos e miraculosos que acredita estarem sendo manifestados a ele a partir do ano de 1936: a primeira lhe fora presenteada por um feiticeiro negro, quando de sua estada em Havana; e a segunda, presente do amigo René Thomas, considerada por Artaud como a própria bengala que São Patrício usou para expulsar todas as serpentes da Irlanda. Ambos os objetos levarão Artaud a tomar aulas de interpretação do baralho tarô, a fim de compreender sua significação mágica. É nesse período que publica Les Nouvelles

Révélations de l’Etre (Novas Revelações do Ser) assinada simplesmente como Le Revéle

(O Iluminado). E no mesmo mês (junho de 1937), pede ao amigo Jean Paulhan que publicasse como anônimo seus relatos sobre a viagem à terra dos Tarahumaras, pois segundo acreditara “bem cedo estarei morto ou numa situação... na qual não precisarei ter nome” (1967 apud ESSLIN, 1978, p.46). O tom profético presente no pedido feito a Paulhan, exacerba-se em

Les Nouvelles Révélations de l’Etre, obra considerada por Esslin como a declaração de total

desligamento de Artaud com sua existência normal:

Tenho lutado para experimentar e existir, para experimentar e consentir nas formas (todas as formas) com as quais a delirante ilusão de estar no mundo impregnou a realidade. Não desejo continuar enganado por ilusões. [...] Tenho um corpo que experimenta o mundo e vomita realidade. [...] Estamos mortos, os demais não estão

separados. Continuam a circular em torno de seus próprios cadáveres. Não estou morto. Mas estou separado. (id., ibid., p.47)

Os acontecimentos que culminaram com a realização da autoprofecia artaudiana se deram sob o signo do mistério em Dublin, local para onde Artaud se dirigiu convencido de que o destino o reservara um evento cósmico, exatamente na terra de origem da bengala de São Patrício. E assim, pouco mais de dois meses depois da publicação de Les Nouvelles

Révélations de l’Etre, Artaud assume-se definitivamente como protagonista de seu próprio

drama existencial, envolvendo-se em diversos acontecimentos insólitos e retornando à Paris sob camisa de força considerado como louco perigoso11.

A maneira obstinada com que Artaud pretendeu refazer sua vida, assumindo um tom profético e interpretando incessantemente os elementos miraculosos da magia proposta para o palco, redimensionando-os irremediavelmente para o plano de sua própria existência, o situa novamente na segunda fase do “drama social”, exatamente no momento destacado por Turner como sendo o mais “ameaçador dentro do próprio fórum e, por assim dizer, desafia os representantes da ordem a lidar com ele” (2008, p.34). Uma nova ação corretiva deverá ser tomada, só que desta vez não se trata de uma auto regeneração, e sim de uma ação corretiva institucionalizada.

11 A versão mais plausível pro que teria ocorrido da viagem a Dublin até seu regresso e internamento nos

manicômios franceses, segundo Esslin teria sido o seguinte: “A 14 de agosto, Artaud remeteu seus primeiros cartões da Irlanda a René Thomas, que o presenteara com a bengala mágica [...] Chegara a Cobh. A 17 de agosto, estava em Galway. A 23 [...] encontrara alojamento numa aldeia distante mais de duas horas a pé da agencia de correios mais próxima, em Kilronam. A esse tempo seu dinheiro já acabara, e solicitara ajuda de Breton e Paulhan. [...] Ao aproximar-se a hora da catástrofe para o mundo, prevista por ele, a milagrosa bengala mudou de caráter: a 14 de setembro, escreveu a Anne Manson: “Empunho o próprio bastão de Jesus Cristo e é Jesus Cristo quem me comanda, e tudo o que devo fazer; e ficará claro que seu ensinamento destinava-se aos Heróis Metafísicos e não aos idiotas (OC,VII, 282). Em carta a Breton, porém, escrita no mesmo dia, deixava claro que o Jesus Cristo cuja bengala ele possuía nada tinha a ver com o Jesus da cristandade. Se o Espírito Santo era a força a instar os homens a viver, era o Cristo-Shiva de Artaud quem chamava os homens ao Absoluto, porque reconhecia que a Vida é Mal, e Morte o definitivo Bem. [...] completamente sem dinheiro e em situação angustiosa, tentou entrar em contato com alguma casa religiosa que julgava abrigasse monges de língua francesa. Diz-se que, após tentar ser recebido num mosteiro (ou talvez mesmo num convento) a altas horas da noite, e sem que alguém lhe abrisse a porta, fez tanto barulho na rua, que a policia foi chamada para acabar com o distúrbio. Como resistisse a afastar-se dali, houve luta corporal, durante a qual perdeu a milagrosa bengala de São Patrício. Passou seis dias preso e foi finalmente metido num navio de partida para o Havre, o vapor Washington, que deixou Cobh a 29 de setembro de 1937. O pior estava por acontecer. Na cabine que lhe tinha sido designada a bordo do Washington, Artaud, ao que parece, alarmou-se com o súbito aparecimento de um camaroteiro e um mecânico, portando instrumentos metálicos, provavelmente para consertar uma pia. Convicto de que as duas figuras sinistras tinham vindo fazer-lhe mal, Artaud os atacou furiosamente e teve de ser dominado e metido em camisa de força. À chegada a Havre, a 30 de setembro, os armadores do navio entregaram-no às autoridades francesas, que prontamente o internaram num manicômio, como louco perigo” (1978, p.48-9, ênfases originais).