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2.5 – O Duplo (pnp vale i no contexto pe): considerações sobre a linguagem espacial da cena.

O trecho do poema em forma de carta, citado a seguir, endereçado à sua amiga Paule Thévenin evidencia de modo direto a natureza da linguagem teatral exigida por Artaud: “não se representa / age-se”.

Doravante, devotar-me-ei exclusivamente ao teatro como o compreendo, um teatro de sangue, um teatro que a cada espetáculo haja conseguido algum avanço corporalmente para aquele que representa, assim como para quem vem ver a representação, além disso não se representa age-se. Na verdade o teatro é gênesis da criação.E será feito. ( apud ESSLIN, 1978, p. 84, ênfases originais)

Escrito a menos de dez dias de sua morte esse pensamento (misto de poesia e desabafo frustrado acerca de sua transmissão radiofônica Para acabar com o julgamento de

deus pode ser considerado uma ratificação aos seus escritos publicados dez anos atrás

reunidos sobre o titulo O teatro e seu duplo, de modo particular aos textos A encenação e a

metafísica e Um atletismo afetivo. Neles, e em outras diversas passagens, Artaud afirma

peremptoriamente a linguagem espacial e concreta da cena27. Não se trata simplesmente de afirmar a primazia do corpo e da espacialidade física da cena no teatro ritual, apresentando outros fundamentos e diretrizes distintas daquelas que a tradição teatral do ocidente havia determinado como autenticas manifestações da linguagem cênica, isto é, o texto teatral, mas sim de negar a estética da verossimilhança e da mimese eliminando, portanto, qualquer possibilidade de ações de caráter imitativo e dissimulatório. Jacques Derrida (1930-2004) considera que este aspecto do pensamento de Artaud determina o fechamento da representação, pois “O teatro da crueldade não é uma representação. É a própria vida no que ela tem de irrepresentável” (1971, p.152, ênfases originais). Assim o teatro ritual artaudiano seria a negação do conceito de arte imitativa justamente pelo fato de negar qualquer possibilidade de representação; o que ocorre em cena, assim como num rito religioso, é uma vivência, uma entrega de si, cuja natureza intrínseca se coloca a partir da própria veracidade das ações e emoções ministradas pelos atores. Esses por sua vez tornam-se hieróglifos animados, espécie de dançarinos metafísicos cujos gestos devem eliminar a oposição entre sensível e inteligível. É notório a referencia de Artaud aos dançarinos balineses que para ele são o exemplo lapidar de atuação:

Eles dançam, e esses metafísicos da desordem natural que nos restituem cada átomo de som, cada percepção fragmentária como que prestes a retornar a seu princípio, souberam criar entre o movimento e o ruído conexões tão perfeitas que os ruídos de madeira oca, de caixas sonoras, de instrumentos vazios parecem ser executados por dançarinos de cotovelos vazios, com seus membros de madeira oca. (op. Cit., p.85)

O que parece exercer grande fascínio em Artaud é a capacidade dos dançarinos balineses em aliar uma excelente execução técnica com os elementos espirituais e metafísicos. A misteriosa alquimia operada pelo teatro era traduzida de modo inequívoco, aos olhos de Artaud, por aqueles metafísicos da desordem transmutados em hieróglifos vivos cuja dança mostrava-se capaz de triturar ossos e transformar o espírito em ouro, operações essas que ele tomará como metas para seu teatro. Sob este fascínio a linguagem requerida pelo Momo28 se

assentará na espacialidade da cena com toda a gama de elementos expressivos que podem ser utilizados, identificada por ele como poesia no espaço: “Essa poesia muito difícil e complexa reveste-se de múltiplos aspectos: em primeiro lugar, os de todos os meios de expressão utilizáveis em cena, como música, dança, artes plásticas, pantomima, mímica, gesticulação, entonações, arquitetura, iluminação e cenário.” (id., p.52-3). Observa-se que todos os elementos desta poesia no espaço encontram-se no que Turner considera o pólo sensorial dos ritos. Mas de nada bastaria todos esses elementos expressivos se a natureza das ações continuasse orientada pelo principio da linguagem articulada como a tradição do teatro ocidental convencionou estabelecer. Fugindo dessas convenções e desses princípios miméticos Artaud apresenta os fundamentos desta poesia no espaço assentados sobre o que ele considera ser uma “pantomima não pervertida”:

Por "pantomima não pervertida" entendo a pantomima direta em que os gestos, em vez de representarem Palavras, corpos de frases, como em nossa pantomima européia, [...] representam idéias, atitudes do espírito, aspectos da natureza, e isso de um modo efetivo, concreto, isto é, evocando sempre objetos ou detalhes naturais, como a linguagem oriental que representa a noite através de uma árvore na qual um pássaro que já fechou um olho começa a fechar o outro. (id., p.54)

Nesses termos o que Artaud apresenta agora estabelecido para o teatro é o ponto onde se processa a imanência do gesto, ponto esse que para ser alcançado exige a entrega total

28 O texto Artaud o Momo foi escrito em 1946 logo após sua saída de Rodez. Conforme Cláudio Willer

(1986, p.125) há divergências entre os tradutores quanto ao sentido de Mômo: para alguns remeteria a môme, criança, garoto em francês, mas poderia ser também uma corruptela de momie, múmia, expressão usada e tematizada por Artaud em outros textos como por exemplo Invocation a La Momie. Outros ainda considerariam o termo equivale a bobo, idiota, trouxa em gíria de Marselha, sendo que Artaud era marselhês e usava essa gíria nos seus escritos.

do ator em cena, entrega física e espiritual, para então estabelecer o momento da gênese criativa das ações escapando às semantizações provenientes da palavra articulada. Essa espécie de linguagem inaugural, pantomímica, exige precisão matemática, tal qual a dos dançarinos balineses, e por isso a exigência artaudiana de treinar os atores como “atletas do coração” (id., p.162). Por meio de um verdadeiro atletismo afetivo Artaud pretende estabelecer bases orgânicas para as emoções, uma espécie de “musculatura afetiva que corresponda a localizações físicas dos sentimentos” (id., ibid.). Não será demais lembrar novamente que o que esta em jogo é muito mais do que simplesmente fundar o primado da espacialidade física pra cena do teatro ritual, pois se assim o fosse permaneceria a dicotomia entre palavra articulada (texto teatral) e gesto, na sua dimensão física e metafísica, sensível e inteligível, natural e sobrenatural. O que se apresenta é exatamente a superação de qualquer dicotomia entre esses pares. A “pantomima não pervertida”, portanto, se expressa de modo eficaz quando o gesto elaborado é a materialização da ideia29, quando se colocou em cheque

“todas as relações entre os objetos e entre as formas e suas significações” (id., p.58), quando então fora superada a mediação lógica dos significados presentes nos objetos e nos elementos plásticos da cena. “Em suma, o teatro deve tornar-se uma espécie de demonstração experimental da identidade profunda entre o concreto e o abstrato” (id., p.139).

A fórmula dos ritos apresentada por Terrin (x vale y no contexto ct), mais uma vez se mostra elucidativa quanto à natureza desta espécie de pantomima, considerada por Artaud “não pervertida”. Podemos inferir por ela (x vale y no contexto ct) que não perverter a pantomima significa igualar o valor do gesto ao da ideia, deste que ambos (gesto e ideia) sejam gestados no contexto da poesia espacial, isto é, utilizando-se de todos os meios expressivos para formatação da espacialidade física da cena. Propomos então, a seguinte formulação para o Duplo artaudiano: pnp vale i no contexto pe, onde temos pnp= pantomima não pervertida, i= ideia, e pe= poesia no espaço.

O ofício por excelência do “atleta do coração”, nesse sentido, será o de encontrar o gesto adormecido em cada palavra, em cada conceito, em cada ideia, em cada sentimento, em cada pensamento e materializá-lo de modo objetivo, na organicidade de seus movimentos e de seus atos sem a utilização de subterfúgios ou convencionalismos estéticos, de modo que a ação teatral deixa de ser representação e ganha o status de vivência; mas não a vivência de atos rotineiros repletos de sentimentos fugazes, pois esses estariam alinhados com o processo

29 Dizemos “ideia” como poderíamos ter dito conceito, pensamento, abstração, inteligível. Todas essas

nomenclaturas aqui devem estabelecer intima relação com a dimensão espiritual e metafísica tal qual compreende Artaud.

de ritualismo de nossa sociedade contemporânea, e como bem já demonstramos não se trata de ritualismo no teatro e sim de teatro ritual. A vivência postulada no palco do teatro ritual é de natureza cruel, ou seja, remete àquelas forças e princípios adormecidos na humanidade, o Duplo cruel da vida, ou vida tomada naquilo que ela tem de mais implacável e aterrador, “o reservatório de energias que constituem os mitos que não são encarnados pelos homens, são encarnados pelo teatro” (2006, p.127). E se a fenomenologia dos ritos, como vimos anteriormente citada por Terrin, é composta por uma ação (drómenon) sagrada e repetitiva que pretende realizar e atualizar o mito (legómenon), no teatro ritual de Artaud, cuja fórmula agora expressamos por (pnp vale i no contexto pe), a atualização do mito por meio da “pantomima não pervertida” vai ao encontro das forças propulsoras e instintivas da humanidade com o intuito justamente de oferecer um projeto de reconstrução espiritual para o Homem.

As proposições artaudianas do teatro ritual, portanto, encontram sua natureza equacionada na exigência de fusão entre arte e vida. Teatro nesse sentido é vida, mas vida, como bem afirmou Derrida, tomada e compreendida naquilo que ela tem de irrepresentável, não falsificável e inimitável, ou seja, na atualização dos seus Duplos. E dentre eles dois serão de fundamental importância para o pensamento de Artaud, quais sejam, a Crueldade e a Metafísica.