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Processo de criação do espetáculo: Exercícios poéticos 116 Exercício 1: os antípodas

Do alto do carro coberto de flores O Sátiro118 freneticamente Canta e dança. Movimentos lancinantes Loucura agressiva Êxtase cruel. Dança frenética Convite a exaustão. Canto de gritos e urros

Provocação e purificação orgiática119.

Rasgando o céu No horizonte oposto Desponta a luz resplandecente Sonho e realidade se iluminam

116 Os exercícios poéticos que constam nos anexos remetem a dois momentos do processo de criação do

espetáculo Quando a musica terminar.... Neles exercitamos livremente a composição de fragmentos poéticos diretamente ligados aos aportes teóricos e artísticos da pesquisa, ou seja, ao pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, e a poesia e canções de Jim Morrison. A intenção é de oferecer ao leitor por meio desses exercícios e de suas subseqüentes notas de roda pé, elementos complementares para a contextualização da encenação do espetáculo Quando a musica terminar... analisada no capítulo III.

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Tratam-se dos instintos estéticos da natureza humana o dionisíaco e o apolíneo, tomados como norteadores filosóficos da pesquisa “Filosofia e Arte Trágica”. Instintos apresentados pelo filósofo Friedrich Nietzsche (1854-1900) em sua primeira obra O nascimento da tragédia, apontam para a compreensão de uma estética que entende a arte como vida, e o mundo como fenômeno estético, “pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente” (1992, p. 47, ênfases originais). Segundo Roberto Machado (1999, p.10), nesta obra Nietzsche sob a influência da filosofia de Emmanuel Kant (1724-1804) e Arthur Schopenhauer (1788-1860), partira das dicotomias entre aparência e essência, fenômeno e coisa em si, para tematizar a relação entre beleza e verdade, e, por conseguinte, entre o apolíneo e o dionisíaco.

118 Na mitologia grega eram gênios dos bosques e das florestas; divindades secundárias que encarnam força e

jovialidade desenfreada.

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Segundo Nietzsche, a essência do dionisíaco é localizada no “delicioso êxtase que, a ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais intimo do homem, [...], que é trazido a nós o mais de perto possível pela analogia da embriaguez”. (op. Cit., p. 30, ênfases originais). A experiência dionisíaca conduz a um estado de embriagues capaz de aniquilar a autoconsciência do homem, lançando-o na desmesura e nos instintos mais selvagens e cruéis, pois, romper o princípio da individuação significa negar-se enquanto individuo, aniquilando a consciência de si e os valores do Estado e da civilização. Segundo Machado, “é um comportamento marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento, por uma extravagância de frenesi sexual que destrói a família, por uma bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca e brutal; em vez de sonho, visão onírica, é embriagues, experiência orgiática.” (op. Cit., p.22). Trata-se em todo caso, como salientará Nietzsche, de um Dioniso bárbaro, vindo do estrangeiro e que pouco a pouco penetrará na Grécia apolínea. O elogio nietzschiano não repousará, porém, sobre esse dionisíaco, e sim naquele integrado ao instinto apolíneo, possibilitando a transformação de um fenômeno natural (dionisíaco puro, bárbaro) em fenômeno estético (dionisíaco-artístico).

Revela-se a bela aparência120

Do mundo dos sonhos Frente a frente O bárbaro e o onírico Face a face O estrangeiro e o patriota Silêncio prevalecido. Instante do nada Nada acontece Tempo suspenso Olhares entrecruzados. Encontro inesperado Miraculoso acontecimento Autodestruição evitada121. Transmutação do criador Transmutação da criatura A vida tornou-se arte122.

120 Nietzsche define o apolíneo como “a esplendida imagem divina do principium individuationis, a partir de

cujos gestos e olhares nos falam todo prazer e toda sabedoria da „aparência‟, juntamente com a beleza” (op. Cit., p. 30, ênfases originais). Sendo oposto, portanto, ao dionisíaco os instintos apolíneos estabelecem o mundo das belas aparências, proporcionam a medida exata para que o indivíduo tenha consciência de si, dos valores do Estado, o patriotismo de uma nação. Contudo, por tratar-se de uma aparência do uno originário ele pressupõe uma essência, exatamente seu antípoda.

121 Nietzsche nos afirma que é do equilíbrio de ambos os instintos, os quais, por mais opostos que sejam, e

mesmo caminhando em permanente discórdia, deflagram uma duplicidade inerente ao continuo desenvolvimento da arte trágica unindo, portanto, aparência e essência. O conflito entre o principio da individuação e o uno originário é estabelecido agora em termos de arte, ou seja, em termo de tragédia. Segundo Machado, seria “como se Apolo ensinasse a medida a Dioniso, ou como se servisse a poção mágica, a bebida trágica, em sonho. [...] instinto terrível torna-se diante de nós, instinto de arte e de jogo. Se o dionisíaco puro é aniquilamento da vida, se só a arte torna possível uma experiência dionisíaca, não pode haver dionisíaco sem apolíneo. A visão trágica do mundo, tal como Nietzsche a interpreta nesse momento, é um equilíbrio entre a ilusão e a verdade, entre a aparência e a essência: o único modo de superar a radical oposição metafísica de valores da tradição do pensamento ocidental. (op. Cit., p.24-26)

122 Seguindo, portanto, a via da “metafísica de artista”, ou seja, admitindo que a arte advinda dos instintos

estéticos da natureza (o apolíneo e o dionisíaco) é a atividade propriamente metafísica do homem, concepção presente nesta primeira obra de Nietzsche, estabeleceu-se o viés de aproximação com as visões do teatro ritual de Artaud. A encenação de Quando a musica terminar... tomará esses instintos estéticos como referenciais para fundamentação do processo criativo.

Exercício 2: Rei Lagarto

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O xamã monta o cavalo124 Voz arrebatadora

Canto hipnótico Vôo mágico

Entre o conhecido e o desconhecido As portas125

Atravessadas Fronteiras dissolvidas

Nos confins da noite Encontro insólito Espelho carnívoro

Medo de voar O xamã não cede

Canto inumano Domando demônios Dança jubilosa Domando demônios Cópula narcísica Domando demônios A cerimônia começou Dançando com os demônios

123 Autodenominação de Jim Morrison (1944 - 1971), poeta e vocalista da banda americana The Doors. O mítico

Rei Lagarto, alter ego de Morrison, apareceu pela primeira vez no Álbum Waiting for the Sun (1968) em um poema que foi impresso no interior da capa do disco. Era intitulado The Celebration of the Lizard King. Uma parte da letra, fora usada na canção Not to Touch the Earth, sendo a letra completa gravada e musicada somente no álbum Absolutely Live (1970).

124 Conforme nos mostra Mircea Eliade, trata-se do tambor usado nas sessões extáticas: “A tamborilada inicial

da sessão, destinada a invocar os espíritos e a „prendê-los‟ no tambor do xamã, constitui as preliminares da viagem extática. Por essa razão o tambor é chamado de „cavalo do xamã‟(entre os iacutos e buriates)” (2002, p. 199). Na complexa rede de significados que o tambor estabelece, o principal diz exatamente da viagem extática que ele proporciona ao xamã, possibilitando alcançar outros níveis de percepção.

125 Remeto ao nome da banda The Doors (As Portas). Nome escolhido por Morrison é uma referência à poesia de

William Blake (1757-1827) e ao livro de Aldous Huxley (1894-1963), The Doors Of Perception (As Portas Da Percepção), onde o autor conta suas experiências com mescalina. Além da referencia a esses autores o nome The Doors expressa de modo claro os objetivos da banda através de suas músicas, qual seja, romper os limites dos valores estabelecidos pela sociedade, ultrapassar as fronteiras da sensibilidade humana, atingir novos estágios de consciência, alargar sua própria consciência como num “vôo mágico” xamânico. As canções e a musicalidade dos Doors, nesse sentido, foram usadas como indutores do processo criativo de Quando a musica terminar... fazendo-nos ir ao encontro do imperativo do teatro ritual artaudiano que exige penetração nas camadas profundas de nossa subjetividade para libertá-las das determinações exteriores, dos valores impostos e das repressões culturais possibilitando poeticamente uma escritura incandescente no próprio corpo.

Rasga o horizonte Incandescente escritura celeste

Retorno ao primordial Pássaros criança Vôo incansável Triunfo do Rei Lagarto.