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O Guardião que assistiu a tudo e foi o único a não tomar parte no êxtase aproxima-se lentamente do centro do espaço trazendo um alguidar de vidro com água. Os Áyamins caídos no chão entoam o mesmo canto inicial (When the music’ over) num tom de tristeza. Os protagonistas dos ritos já desprovidos de sua gestualidade sagrada banham-se rente a fogueira, despem suas indumentárias rituais e vestes suas roupas cotidianas, dirigindo-se em seguida pra fora do espaço ritual.

Fig. 24: Os protagonistas dos ritos banhando-se próximo a fogueira sagrada e retornando a sua gestualidade cotidiana. (Foto ensaio – Ana Flor: outubro/2007)

O Guardião e os Áyamins ainda cantando perfilam-se do lado de fora da porta de entrada. O Xamã do ar trajando suas roupas cotidianas apanha um alguidar de barro e cobre a fogueira sagrada. A chama se apaga. Ele se dirige para até entrada, e pelo lado de fora fecha “as portas”. O Canto finda. A música terminou.

Conclusões

Artaud é um desses autores que nos oferece um arsenal de elementos relevantes capazes de alimentar uma pesquisa artística e acadêmica. No entanto, esse arsenal encontra-se de modo inextrincável na pessoa Artaud, na sua trajetória de vida; mesmo abstraindo os exageros que se construíram em torno de sua personalidade, abstraindo, portanto, o mito “Artaud”, nos sentimos desautorizados a separar o seu pensamento de sua obra. Estranho mesmo é afirmar que Artaud tenha construído uma obra no sentido convencionalmente empregado ao termo. E assim, por muitas vezes no decorrer de nossa investigação, aprendíamos mais sobre o pensamento de Artaud deixando de lado seus escritos e voltando o olhar para seus atos.

Todas as vezes que isso ocorreu nos questionávamos: qual a possibilidade de compreensão das proposições de Artaud no âmbito estritamente lógico, teorético e conceitual? Seria possível converter o seu pensamento vivo e dilacerante em categorias racionalizantes, sem prejuízo e pré-juízos? Se ele fez da vida uma obra, e desta obra uma potência poética que rasga os limites convencionais de padrões e comportamentos sociais estabelecidos, por que dissociar o Artaud-Homem do Artaud-Artista? Seria possível, portanto, pensá-los e analisá- los separadamente? Viver Artaud ou estudar Artaud? Perscrutar os caminhos apontados em sua obra sem a coragem ou a ousadia para percorrê-los na prática? Falar de um Teatro da Crueldade sem ser cruel? Qual o sentido desta Crueldade para nossa vida? Interessa apenas falar do Teatro da Crueldade? A quem interessa apenas o discurso do Teatro da crueldade sem sua autêntica manifestação no espaço sagrado concebido por Artaud? Convidá-lo para o ritual sem lhe permitir ou oferecer a cura, o expurgo dos males físicos e espirituais? É possível decifrar o Enigma-Artaud sem colocar-se diante do Oráculo-Artaud? Se, como nos afirma Jacques Derrida, “O teatro da crueldade é a própria vida no que ela tem de irrepresentável” (1971, p. 152), restam ainda dúvidas de que dos discípulos de Artaud será exigido suas próprias vidas como hecatombes? Quem estará disposto a tamanha entrega? E, em última instância, Artaud se compatibilizaria com o espaço das pesquisas acadêmicas, sem ser colocado de volta amarrado numa camisa de força? Seríamos nós quem o devolveríamos para o internato dos hospitais psiquiátricos para mais uma jornada de nove anos, com direito a eletrochoques e torturas ou, ao invés disso, deixaremos que ele nos guie como num voo xamânico, fazendo-nos atravessar os interstícios de nossas instituições, revelando-nos sua natureza mais reacionária e alienante, para então, miná-las por dentro, implodindo-as, fazendo

nascer ou renascer uma humanidade desprovida de órgãos, um “corpo sem órgãos” (ARTAUD, 1986, p. 161) sedento de vida?

Certamente que procedimentos metodológicos e a sistematização de técnicas que auxiliem na tentativa de apreender e colocar em prática suas proposições do teatro ritual, aparentemente irrealizáveis, possui relevância e além de fundamentar, justificam o desenvolvimento dessa pesquisa. Reúna, no entanto, todos os procedimentos apontados nessa pesquisa e ainda sim não terão chegado próximo do principio fundador do Teatro da Crueldade. Em se tratando de Artaud, a vida virá antes de qualquer técnica, e a reprodução de procedimentos, por mais refinados e fundamentados que estejam não passaram de mimese, coisa que ele tanto combateu e evitou desenvolver no palco. Quem estiver disposto a aplicar Artaud deve antes olhar para o próprio umbigo, reconhecer suas fragilidades, combater os medos, desafiar as angústias e processá-las em cena.

A formulação apresentada nesta pesquisa (pnp vale i no contexto pc) só encontrou, portanto, sentido e aplicação poética porque na ocasião do seu desenvolvimento a equação arte e vida de todos os envolvidos no processo artístico do espetáculo Quando a música

terminar... estiveram voltadas para esta exigência da Crueldade artaudiana. Sem entrega total

a esta vivencia restauradora das potencias vitais humanas, como almejava alcançar Artaud por meio do teatro, a probabilidade de desenvolver em cena toda sorte de gestualidade estereotipada e esvaziada de conteúdo simbólico, isto é, uma macaquice mítica no palco será grande, senão, total.

Por outro lado, vivencia desta natureza por exigir desnudamento e desprendimento dos valores estabelecidos não pode confundir-se com a prática teatral convencional voltada a realização de temporadas e montagens de repercussão midiática. Por isso entendemos que deva ser realizada como atividade liminóide, as margens dos processos hegemônicos e sem expectativa de reconhecimento pelas instituições financiadoras e promovedoras de cultura. Não se trata de assumir simplesmente uma postura anarquista e reproduzir os discursos prontos que defendem o radicalismo em favor dos oprimidos e marginalizados, e sim entender que a natureza anti-estrutural desse teatro como liminoíde, indo novamente ao encontro das ideias de Turner, o impede de erguer-se como atividade identificada com a estrutura social.

Portanto, quem não estiver interessado em visitar as sombras da própria alma para construir processos que serão compartilhados nos lugares mais soturnos da cidade, esqueça as proposições de Artaud.

Capítulo Extra: