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Durante o trajeto que o levaria para a sessão de julgamento em última instância, pôde observar pela pequena janela do veículo aquela imponente paisagem urbana com seu emaranhado de prédios, viadutos que se entrecruzavam, anúncios dos mais variados tamanhos e conteúdos, além das placas de sinalização de trânsito, os semáforos, as vias principais sendo disputadas por carros particulares, coletivos, caminhões, motos e bicicletas num constante vai-e-vem ininterrupto; e as pessoas, muitas pessoas, uma porção delas, uma multidão de gente indo e vindo num compasso acelerado que parecia ser ditado pelos ruídos sonoros vindos de toda parte. Enquanto observa atentamente a movimentação da cidade, os pensamentos vão-lhe atravessando a mente de modo inesperado e sem nenhuma exigência de compreensão imediata; tudo o que faz é se deixar envolver por aquela curiosa imagem da massa humana se movimentando pelas ruas num frenesi alucinante; intrigado com os pensamentos que o invadem, observa que os homens parecem estar embalados pela estridente sinfonia do acaso urbano, e os seus olhares, ora cabisbaixos ora fitando o horizonte, se atravessam, mas não se ancoram em parte alguma, e ainda sim parece haver um estranho sincronismo regendo aqueles corpos sedentos de urgência e que os impedem de se chocarem; é preciso sempre seguir em frente, não há tempo para interrupções inesperadas ou encontros casuais; o tempo não é de encontrar, mas de se perder e de se lançar cada vez mais no frenesi de um “agora” que se impõe exigindo a renuncia do “depois” e do “antes”; a urgência do “agora” mergulha a todos numa negação, às avessas, do próprio tempo presente; o “agora” se vê destituído da intensificação mágica do “tempo presente” que outrora se impunha como condição inconteste para o encontro universal73. Presencia a fuga do verdadeiro “agora”, o

rapto do tempo mágico, do instante necessário para a restauração da vida, ou apenas testemunha um fato já corriqueiro e naturalmente aceito pelas sociedades atuais? Por ora, sem intentar encontrar respostas plausíveis, ele segue observando curiosamente toda aquela conjuntura que a cidade lhe apresenta; deixa escapar apenas uma desconfiança: tudo aquilo não passaria de um ritual pervertido.

Essa desconfiança o acompanhou por cerca de vinte e oito minutos, tempo aproximado que levou para chegarem ao local do julgamento. Descendo do veiculo acompanhado por três oficiais, foi conduzido para o interior do prédio, observando atentamente a suntuosidade daquela edificação que, por algum motivo, lhe recordava um templo. Subiu com alguma dificuldade os cerca de trinta degraus da escadaria que dava acesso

a portaria principal; cada degrau vencido lhe avivava a lembrança dos vinte e oito dias de escalada na montanha dos sinais, terra sagrada dos Tarahumaras74; muitos curiosos fazem uma espécie de corredor humano até a entrada, gritando palavras de insulto e de apoio, num verdadeiro murmúrio desordenado; quando ultrapassam as portas de entrada o silêncio e a ordem vai se impondo gradativamente até conquistar definitivamente o espaço; este silêncio também o invade e lentamente vai sentindo o peso do corpo se insurgindo contra a sua vontade, aquilo que ele considera um amontoado de ossos e pele exige uma pausa para recomposição de suas forças; o auxilio dos três oficiais de justiça é necessário para que consiga chegar até a sala de espera reservada para o réu; ali ele permanece, sozinho e impávido, sentado com o olhar fixo em direção àporta; novos pensamentos o atravessam: que relevância teria o acontecimento que estava prestes a ter início? Que proveito este acontecimento traria? Por que sentia a mesma sensação de perda, que o acometera pouco antes de se participar dos ritos do peyote há alguns anos atrás? Haveria entre os dois acontecimentos similaridades suficientes que permitissem justificar tamanha sensação de aniquilamento fatal? Estes pensamentos lhe consumiram durante o pequeno espaço de tempo que ali permaneceu. Logo pode ouvir alguém bater a porta, e, imediatamente, ela se abriu, fazendo-o ver novamente os três oficiais. Ainda com dificuldades, marchou na companhia e com o auxilio daqueles homens que nas últimas horas haviam-se tornado seu guia rumo àquela jornada estranha que estava prestes a começar; juntos percorreram prolongados corredores até chegarem à sala de audiência local onde será realizada a sessão. Os lugares no auditório estavam quase todos tomados; colocaram-lhe sentado no centro da sala; à sua frente, a tribuna ainda vazia; à sua esquerda, sete homens, todos vestidos com túnicas negras, largas e sem mangas; todos os olhares parecem voltar-se para ele, que permanece sentado, olhos fixos em direção à tribuna e sem insinuar gesto algum; no auditório ouve-se um murmurinho de vozes trocando ideias num tom muito baixo e respeitoso; o quase silêncio do auditório é interrompido pela entrada de um homem muito alto, que traja a mesma indumentária dos outros sete já presentes; assim que põem os pés no auditório, o homem dirige-separa o centro da tribuna, ao que todos imediatamente se levantam em demonstração de respeito e reverência; no banco dos réus, porém, ele permanece sentado e imóvel; e num daqueles relances inesperados da vida os olhares daqueles dois homens se cruzam e se ancoram mutuamente estabelecendo por uma fração de segundos uma espécie de harmonia holística; até que do alto da tribuna ouve-se com altivez . – Declaro aberta a sessão. – Assim que o

homem do alto da tribuna sentou-se todos puderam fazer o mesmo. Nesse instante, ele sabia que não haveria alternativa senão entregar-se àqueles ritos, com o desejo sincero de que finalmente pudesse alcançar a purificação paraseus males.