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A frequente51 vivencia e realização desses procedimentos levou-nos inevitavelmente

ao “ritualizar”52, ou seja, a repetição dos procedimentos de modo sistemático levou-nos a criar

nossos próprios ritos, e consequentemente a formalização de movimentos e comportamentos, e a partir desses estruturamos a encenação do espetáculo.

Primeiramente chegamos a compreensão de que haviam três instâncias distintas, correspondentes cada uma delas, aos nossos comportamentos ritualizados, e que remetiam a princípios arquetípicos da natureza específicos: Dayane, a terra, Renato, o ar, e eu, o fogo. A descoberta desses princípios observando, discutindo e problematizando a atuação individualizada de cada um, levou-nos aos elementos remissivos de nossos ritos, ou seja, os mitos (legómenon) subjacentes nas ações (drómenon) realizadas nos laboratórios de criação de cenas. A encenação do espetáculo estruturou-se a partir de então, na composição desse jogo simbólico-místico (TERRIN, 2004, p.28) entre estas ações e estes mitos. Era o momento de atualizar em cena nossa formulação de que pnp vale i no contexto pe53.

Iniciamos determinando qual seria o simbolismo que assumiríamos em cena, pois seria a partir desse simbolismo que se assentaria o contexto pe. Elegemos o simbolismo do xamanismo54 universal, tomando como critério de escolha a forte influência sofrida por

Artaud durante sua visita a terra dos índios Tarahumaras, localizada nas montanhas mexicanas, realizada em 1936, e ao próprio caráter xamânico das poesias e canções de Jim. O interesse de Artaud, de Jim e, também o nosso pelo xamanismo, se localiza no fato do xamã ser considerado, segundo Mircea Eliade, o especialista de um transe consciente, isto é, de um transe que permite atingir novos estágios de percepção mantendo um controle sobre si mesmo, fato este que “o distingue de um „possesso‟, [...] consegue comunicar-se com os mortos, com os „demônios‟ e com os „espíritos da natureza‟ sem por isso transformar-se em um instrumento deles” (2002, p.18, ênfases originais).

Pelo simbolismo do xamanismo o contexto pe estabeleceu-se do seguinte modo: associamos os arquétipos fogo e ar a especialidade mágica específica dentro do simbolismo

51 Durante os nove meses de realização da pesquisa os encontros ocorriam pelo menos duas vezes por semana,

quatro horas por dia.

52 Ver capítulo II, p. 47.

53 Como anteriormente demonstrado no capítulo II (p. 66),pnp= pantomima não pervertida, i=ideia, pe= poesia

no espaço.

54 Segundo Mircea Eliade, “[...] uma primeira definição desse fenômeno complexo, e possivelmente a menos

dos ritos xamânicos, isto é, “o „domínio do fogo‟ e o vôo mágico” (id., p.17). Referendados nesses, criamos nossos próprios ritos em conformidade com o valor simbólico atribuído a cada um deles os quais, segundo Eliade, seriam os seguintes:o “vôo mágico” dominado pelos xamãs siberianos, esquimós e norte-americanos “significa unicamente entendimento, compreensão de coisas secretas ou de verdades metafísicas” (id., p.519); por sua vez o “domínio do fogo” é enquadrado como um dos prodígios do xamã: considerados como “mestres do fogo” exibem essa condição fazendo a manipulação do fogo caminhando por sobre brasas, por exemplo, ou incorporando “[...] o espírito do fogo a ponto de soltar chamas pela boca, pelo nariz e pelo corpo todo durante as sessões”55 (id., p. 515). Além de possuir o

poder da purificação e renovação o fogo é tido por Eliade como elemento ambivalente, pois “sua origem pode ser tanto divina quanto demoníaca, porque, segundo certas crenças arcaicas, o fogo tem origem nos órgãos genitais das feiticeiras e das bruxas.” (apud CHEVALIER, 2007, p.442), e nesse sentido, o poder de dominá-lo torna-se ainda mais relevante para o xamã.

Quanto ao elemento Terra desenvolvido, por esta ocasião da pesquisa, pela única mulher atuando em cena, o associamos ao arquétipo universal da fertilidade, a Terra Mater, apresentado nos seguintes termos de Eliade:

A mulher relaciona-se, pois, misticamente com a Terra; o dar a luz é uma variante em escala humana, da fertilidade telúrica. Todas as experiências religiosas relacionadas com a fertilidade e o nascimento tem uma estrutura cósmica. A sacralidade da mulher depende da santidade da Terra. A fecundidade feminina tem um Modelo cósmico: o da Terra Mater, da Mãe Universal. (1992, p.71-72)

O contexto pe estruturou-se, portanto, a partir dessa tríade arquetípica (Fogo, Ar e Terra) e a partir dela também elaboramos o roteiro da encenação, expressos a seguir em linhas gerais: as contrações angustiantes da “Mãe-Terra” irrompem o primeiro grito de dor da existência humana: a dor do parto. Dela nascem os filhos gêmeos, o “Xamã do Ar” e o “Xamã do Fogo”, que perseguindo o apetite de vida artaudiano, vão à busca do alargamento de suas consciências, através da realização dos ritos do “Vôo Mágico” e do “Domínio do Fogo”. Compondo o roteiro da encenação um coro formado por quatro atrizes56 identificadas como os

55 Acerca deste prodígio especifico dos xamãs Eliade ainda nos afirma que “[...] a exibição dos poderes

mágicos em certos momentos da sessão é resultante da necessidade em que se encontra o xamã de comprovar a autenticidade do “estado segundo” obtido pelo êxtase [...] é obrigado a comprovar a nova condição sobre- humana a qual acaba de ter acesso.” (id., p.517)

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Nos dois últimos meses da pesquisa convidamos cinco jovens atores, estudantes do Curso Técnico de Formação da ETDUFPA, para compor o elenco do espetáculo. O objetivo era constituirmos um coro de vozes para os cantos ritualíscos da encenação.

espíritos protetores dos Xamãs, conhecidos entre os Goldes como Áyamins57. Também citados

por Eliade como “esposas celestes” os “Áyamins”, no plano da encenação incentivavam, seduziam e protegiam os “xamãs”, durante a realização dos ritos. E usando de uma licença poética completamos a encenação com a participação de um guardião do espaço ritual auxiliando na utilização dos objetos utilizados em cena.

O nome do espetáculo completa a ideia fundamental presente na encenação. Quando

a musica terminar... é a tradução de uma das canções dos Doors entoada no espetáculo When the Music’s Over. Essa canção era o exemplo clássico de música e performance ritualística dos Doors, “[...] realizada num estilo altamente dramático que obrigava a que a banda fosse vista tanto em termos teatrais como em termos musicais” (SUGERMAN, 1988, p.86). Essa canção de aproximadamente doze minutos, traz Jim Morrison, leitor voraz de Nietzsche, recitando improvisadamente suas poesias aludido a justificação estética do mundo: “A música é sua amiga íntima, dance no fogo se ela ti convidar, a música é a sua única amiga. Até o fim” (id., ibid., p.90). Fazendo alusão a ideia da “metafísica de artista” do jovem Nietzsche, “A vida só é possível pelas miragens artísticas” (apud MACHADO, 1999, p.18), essa canção como título do espetáculo consiste em lembrar a condição artística adormecida ou esquecida na humanidade. Quando a musica termina, termina também a alegria de viver, a fonte da potencia existencial humana. Sem arte, portanto sem música, a humanidade fica submetida a degradação doentia dos valores que dirigem a vida, ao invés de potencializá-la afirmando seus instintos estéticos criadores (o apolíneo e o dionisíaco)58. Os ritos que constituem Quando a musica terminar... visam restabelecer esta condição perdida.