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Estabelecidas as considerações que distinguem o projeto de Artaud do ritualismo ou de uma simples ritualização do teatro, desenvolvidas a partir da análise da etimologia do termo rito, passemos as considerações acerca da natureza desse teatro ritual. Antes, porém, como os estudos do ritual constituem-se em vasto campo de investigação que o torna, conforme Terrin, uma “realidade poliédrica” (2004, p.17), isto é, com uma diversidade de abordagens (teológica, fenomenológica, histórica, religiosa, antropológica, linguística, psicológica, sociológica, etológica e biológica), cumpre-nos delimitarmos o campo de investigação e eleger sob que perspectiva será feita nossa análise, para posteriormente identificarmos com quais autores o projeto teatral de Artaud encontrará maior reverberação.

Por entendermos as premissas artaudianas intimamente ligadas ao desejo do reencontro com o sagrado, tomaremos a perspectiva do paradigma da ritualidade religiosa. Nessa, ou em qualquer outra perspectiva adotada, metodologicamente falando, Terrin destaca que antes de qualquer definição ou classificação do rito deve-se observar sob que ponto de vista esse, estará sendo analisado: do ângulo do observador distanciado das práticas e ações rituais, ou do ângulo de quem participa efetivamente do rito. A circularidade entre esses dois momentos é apontada por Terrin como a melhor saída metodológica que nos levará a três domínios específicos, denominados por ele do seguinte modo: modelo operacional ou funcional de competência dos antropólogos, o modelo consciente que remete a descrição de

21 Ver citação correspondente aos trechos das cartas abertas escritas ao Papa e ao Dalai- Lama no capítulo extra, O julgamento de Artaud, p.132.

quem participa ou vivencia os ritos, e o modelo formal remetendo aos modos pelos quais se estuda as ações e a linguagem performática dos rituais. [cf. TERRIN, 2004, p.26]

Dos três modelos apresentados por Terrin adotaremos para nossa investigação o segundo, isto é, aquele que se coloca na perspectiva de quem vivencia o rito, pois nos parece ser esse o lugar de onde são disparadas as proposições artaudianas, e, fundamentalmente, é esse o lugar que Artaud visa restabelecer para o teatro. Adotando, desse modo, esses pontos de partida, Terrin nos apresenta a seguinte definição:

[...] o rito, fenomenologicamente falando, é uma ação sagrada repetitiva, composta de um drómenon (ação) e de um legómenon (palavra, mito). Nele e na conjunção de palavra e ação se manifesta um agir “holístico” que não é do tipo instrumental e não pretende induzir uma causação normal entre meio e fins. Tal ação ritual procura realizar o legómenon (o mito) por meio da estruturação de um jogo simbólico- místico onde vigora uma premissa indiscutível segundo a qual x vale y no contexto ct, isto é, onde alguma coisa está no lugar de outra.(id., p.27-28, ênfases originais)

O jogo simbólico-místico entre ação (drómenon) e mito (legómenon), presente na formulação apresentada por Terrin, nos leva ao encontro do conceito fundamental do teatro ritual de Artaud, qual seja, o conceito de Duplo. No projeto teatral de Artaud o Duplo (sempre grafado com a primeira letra maiúscula (1984, p.65) longe de remeter a uma cópia fiel da realidade cotidiana destitui exatamente a ação mimética do palco, pois esta não passa de ilusão sem fundamento, ou melhor, ilusão cujo fundamento assenta-se no princípio da verossimilhança. A carta a Jean Paulhan (25.01.1936) justificando a escolha do titulo do livro que viria a ser publicado em 1938, reunindo seus textos sobre teatro escritos desde 1932, esclarece de modo inequívoco que o termo escolhido não remete a nenhuma tentativa de cópia ou duplicata de nossa realidade cotidiana:

Eu creio ter achado o titulo conveniente para meu livro. O Teatro e seu Duplo, pois se o teatro duplica a vida, a vida duplica o verdadeiro teatro [...]. Esse titulo corresponderá a todos os duplos do teatro que penso ter encontrado há tantos anos: a metafísica, a peste, a crueldade, o reservatório de energias que constituem os mitos que não são encarnados pelos homens, são encarnados pelo teatro. Considero esse duplo o grande agente mágico, do qual o teatro, por suas formas, é apenas a figuração, esperando se tornar a transfiguração. [...] É no palco que se reconstitui a união do pensamento, do gesto, do ato. O Duplo do Teatro é o real não utilizado pelos homens hoje. (2006, p.127, ênfases originais)

O teatro, nesse sentido, não é o Duplo da vida cotidiana, mas sim o Duplo de uma “outra realidade”, cujos princípios e forças permaneceram insondáveis durante a longa tradição teatral do ocidente exatamente pela primazia do texto fundada na estética da

verossimilhança22. Artaud rejeitando, portanto, toda mise em scène tradicional associa o Duplo ao principio da alquimia exatamente por compartilhar com esta de uma misteriosa identidade essencial:

É que tanto a alquimia quanto o teatro são artes por assim dizer virtuais e que carregam em si tanto sua finalidade quanto sua realidade. [...] Enquanto a alquimia, através de seus símbolos, é como um Duplo espiritual de uma operação que só tem eficácia no plano da matéria real, também o teatro deve ser considerado como o Duplo não dessa realidade cotidiana e direta da qual ele aos poucos se reduziu a ser apenas uma cópia inerte, tão inútil quanto edulcorada, mas de outra realidade perigosa e típica, em que os Princípios, como golfinhos, assim que mostram a cabeça, apressam-se a voltar à escuridão das águas. (1984, p.65)

Propomos, desse modo, uma aproximação do Duplo artaudiano com a formulação dos ritos apresentada por Terrin (x vale y no contexto ct)23, com a ressalva para evitarmos

qualquer tipo de interpretação que leve ao entendimento de que as variáveis (x, y, ct) apontem pura e simplesmente para objetos e elementos materiais. Ainda que nos ritos, e, por conseguinte também no teatro ritual, haja a presença de diversos objetos e elementos materiais, tais como indumentárias, incensos, instrumentos musicais, pinturas, oferendas, etc., o jogo simbólico-místico de que nos fala Terrin permite estabelecer conexão com outra realidade, sendo que estes objetos e elementos materiais constituem-se nas peças fundamentais para a comunicação com a “outra realidade” do mundo imaginado, e, portanto, são instrumentos a serviço da operação de remissão mística que é efetuada pelo rito, e não necessariamente a materialização daquela “outra realidade”. É bem verdade que Artaud radicaliza essa questão afirmando que todos os elementos expressivos e plásticos da cena deverão compor o contexto favorável para que as ações realizadas pelo ator remetam imediatamente a esta “outra realidade”, isto é, ao Duplo. Mas, nesse caso, não se trata de procedimentos com fins a formatar plasticamente o Duplo, recorrendo a acessórios cênicos e

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Discuto essa questão no artigo Nietzsche, Artaud e Morrison: Quando a música terminar, publicado na

Revista Ensaio Geral, edição especial, v. I, nº 1, 2010, p.66. Segue trecho referente à questão: “As proposições de Artaud devem ser compreendidas num movimento de mudanças de perspectivas sobre a encenação, que segundo Jean-Jacques Roubine (1998:14), tem dois marcos importantes: “o ano de 1887, quando Antoine fundou o Théâtre-Libre (...) e 1880, quando a iluminação elétrica é adotada pela maioria das salas européias”. O que se coloca no centro dessas mudanças, ainda segundo Roubine, são as transformações das técnicas teatrais empregadas para criação do espetáculo, a formulação de novos problemas e conseqüentemente a busca por novas soluções. Isso fará surgir questões referentes à relação entre texto e representação, ao espaço cênico, à função e ao trabalho do ator, questões não abordadas anteriormente, pois a tradição teatral do ocidente havia fundado a representação no conceito de mimesis como verossimilhança, elegendo o texto como elemento estruturador do espetáculo, e devia ser concebido de modo a assegurar “o encadeamento rigorosamente causal e lógico das cenas” (ROSENFELD, 2000, p.67). A representação assim concebida encontrava seus fundamentos na Poética de Aristóteles, e as subseqüentes interpretações dos teóricos renascentistas e pós-renascentistas ratificaram a primazia do texto no teatro ocidental. A crítica radical de Artaud [...] está inserida neste contexto.”

23 Cf. Terrin (2004, p.27), a fórmula foi elaborada a partir do pensamento do lingüista americano John Searle

cenográficos de modo a plasmá-lo física e visualmente; o intento de Artaud visa sim superar a mediação lógica dos significados presentes nos objetos e nos elementos plásticos da cena, em outras palavras, os objetos e elementos plásticos de cena não serão mediados pela linguagem articulada, eles simplesmente devem remeter imediatamente ao Duplo pela potencia poética que já carregam intrinsecamente, e fundamentalmente através das ações executadas pelos atores. Para Artaud trata-se de uma operação mágica cuja essência é idêntica aos princípios alquímicos.

Lembremo-nos que estamos partindo do ponto de vista de quem vivência o rito. Sob esta perspectiva apliquemos a premissa apresentada por Terrin (x vale y no contexto ct), primeiramente num rito religioso cujo contexto nos seja familiar, para que, então, possamos observar como se dá esse jogo simbólico-místico contido na premissa; em seguida observaremos como a natureza da linguagem do teatro ritual artaudiano apresenta-se em consonância com o mesmo jogo simbólico-místico presente na formulação de Terrin. O rito escolhido para a aplicação da premissa de Terrin será o de consagração da hóstia santa, celebrado na missa dos cristãos católicos, considerado o ápice dessa celebração.

2.3.1 – x vale y no contexto ct: considerações a partir de um rito cristão