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2.4 – Contribuições de Turner acerca das propriedades dos símbolos rituais.

Mas se por um lado Terrin deixa em aberto a questão dos aspectos simbólicos na sua formulação, Turner nos oferece contribuições valiosas para esta questão a partir de suas observações dos rituais Ndembo. Turner pode constatar que os símbolos daqueles rituais estavam essencialmente envolvidos com o processo social dos Ndembo, e que em cada ritual havia “símbolos dominantes”, ou seja, símbolos que “se referem a valores que são considerados fins em si mesmos, quer dizer, a valores axiomáticos” (2005, p.50). Esses possuem três propriedades fundamentais, apresentadas por Turner da seguinte forma:

A propriedade mais simples é a de condensação. Muitas coisas e ações são representadas por uma só formação. Em segundo lugar, um símbolo dominante é uma unificação de significados díspares. Os significata díspares são interconectados em virtude de possuírem em comum qualidades análogas ou por associação em pensamento ou na prática. Tais qualidades ou laços de associação podem, em si mesmos, ser bastante triviais ou aleatórios ou amplamente distribuídos por uma gama de fenômenos. Sua própria generalidade torna-os capazes de aglutinar as mais diversas idéias e fenômenos. (id., p.58-59; ênfases originais)

Se retomarmos o exemplo do rito de consagração da hóstia santa poderemos observar melhor as duas primeiras propriedades apresentadas por Turner. Primeiramente todas

as ações dispostas no rito incluindo desde as ações no altar por parte do sacerdote até as respostas e aclamações por parte da assembléia tendem para uma única formatação, isto é, a remissão da última ceia de Jesus. Em segundo lugar todos os gestos, ações, cantos e palavras se encontram reunidos em torno de um único significado: a consagração do corpo de Jesus na hóstia santa, e, para tanto, se estabelecem laços de associações com as palavras e os gestos realizados por Jesus por ocasião da sua última ceia com os discípulos. A partir destas duas primeiras propriedades chega-se a terceira observando a operação que é realizada no espaço ritual, isto é, a “polarização do significado”. Segundo Turner, essa polarização se dá entre o que ele considera ser o pólo ideológico, isto é, o “arranjo de normas e valores que guiam e controlam as pessoas, enquanto membros de um grupo e categorias sociais” (id.,p.59), e o pólo sensorial, isto é, tudo o que é mobilizado nas ações rituais: canto, dança, gritos, gestos, palavras, indumentárias, incensos, objetos, etc. Nesse pólo segue afirmando Turner, “o conteúdo significativo esta estreitamente relacionado com a forma externa do símbolo”. Atuando por meio destas três propriedades fundamentais os “símbolos dominantes” de um ritual, conclui Turner, promovem uma justaposição do grosseiramente físico (todos os elementos oriundos do pólo sensível) com o estruturalmente normativo (todos os valores oriundos do pólo ideológico):

Na sua trama de significados, o símbolo dominante põe as normas éticas e jurídicas da sociedade em contato íntimo com fortes estímulos emocionais. No contexto da ação do ritual, com sua excitação social e estímulos diretamente fisiológicos, tais como a música, o canto, a dança, o álcool, o incenso e modos bizarros de trajar-se, o símbolo ritual, poderíamos dizer, efetua um intercâmbio de qualidades entre os pólos de significação. Normas e valores, de um lado, saturam-se de emoção, ao passo que as emoções básicas e grosseiras se enobrecem pelo contato com os valores sociais. O fastio da repressão moral transforma-se no “amor da virtude”. (id., p.61)

O rito por meio dessas propriedades simbólicas, portanto, proporcionaum momento de encontro humano para partilhar, afirmar, negar, rememorar e/ou vivenciar intensamente valores existencialmente construídos; por meio da confrontação entre as idéias a serem estabelecidas como válidas e os elementos expressivamente elaborados como (canto, dança, percussão, indumentária, incensos, etc.) todo o ideário ali colocado e vivenciado por todos os seus participantes, tende a ser convertido em desejo, por meio de uma fruição prazerosa. Assim no rito de consagração da hóstia santa, relembrando o sacrifício do Corpo e Sangue de Cristo, se estabelece para os cristãos católicos o vinculo da caridade universal simbolizada por meio do banquete em que cada um dos convivas recebe uma parte do corpo de Cristo25. Nesse

sentido, é também a exaltação do sacrifício de Jesus como valor instituído para a igreja

católica e para todos os cristãos. A própria palavra “hóstia”, que em latim quer dizer vítima reforça este valor presente no rito; este constitui o pólo ideológico do rito, e todas as ações, gestos e palavras descritos anteriormente constituem o pólo sensível.

Os ritos oferecem, portanto, antes de tudo uma vivencia, e o sentido pleno dessa vivencia só pode ser alcançado por quem se entrega completamente a experiência dessa natureza; a sensação de renovação, transubstanciação, o revigoramento do corpo e da alma dos participantes de um ritual é alcançado graças ao mecanismo que converte as normas e os valores obrigatórios de um grupo social em desejo prazeroso. Ora, é exatamente este tipo de experiência que Artaud pretende restabelecer no palco, um acontecimento único que possibilite ao homem reencontrar-se na plenitude de suas forças vitais.

O simbolismo dos rituais reuniria, portanto, as condições adequadas para o processo de alquimia teatral pretendida por Artaud, pois esse simbolismo opera exatamente por esse processo de condensação de elementos dispares, conseguindo fundir de modo eficaz os elementos abstratos e ricos de significação espiritual com os elementos concretos, expressamente físicos e sensíveis. Artaud considera que esta espécie de alquimia teatral se encontrava presente desde as origens do teatro, e nos aponta esse modus operandi nos Mistérios de Elêusis26:

Dizem-nos que os Mistérios de Elêusis limitavam-se a encenar um certo número de verdades morais. Creio, antes, que deviam encenar projeções e precipitações de conflitos, lutas indescritíveis de princípios, vistas sob o ângulo vertiginoso e escorregadio em que toda verdade se perde ao realizar a fusão inextrincável e única do abstrato e do concreto, e penso que, através de músicas de instrumentos e de notas, de combinações de cores e formas de que até perdemos a idéia, eles deviam, por um lado, satisfazer a nostalgia da beleza pura cuja realização completa, sonora, límpida e despojada Platão deve ter encontrado pelo menos uma vez neste mundo; por outro lado, deviam resolver através de conjunções inimagináveis e estranhas para nossos cérebros de homens ainda despertos, resolver ou mesmo aniquilar todos os conflitos produzidos pelo antagonismo entre a matéria e o espírito, a idéia e a forma, o concreto e o abstrato, e fundir todas as aparências em uma expressão única que devia ser semelhante ao ouro espiritualizado. (1984, p.70)

Seria exatamente esta operação que o homem desaprendeu quando o pensamento ocidental radicado no logos grego estabeleceu para a natureza humana categorias dicotômicas e antagônicas. O espírito separado da matéria degenerou a vida, e será no teatro que esta fusão será possível novamente.

26 Também conhecidos como mistérios eleusinos. Tratava-se de ritos iniciáticos realizados por ocasião do culto

às deusas agrícolas Demeter e Perséfone celebrados em Elêusis localidade da Grécia antiga localizada cerda de 30 km de Atenas. Considerados os de maior importância entre todos os que se celebravam na antiguidade, esses ritos eram guardados em segredo, e só transmitidos a novos iniciados. A esse respeito ver também VERNANT, J. Pierre. O universo, os deuses e os homens. São Paulo; Cia das Letras, 2000.

2.5 – O Duplo (pnp vale i no contexto pe): considerações sobre a linguagem