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1. MEMORIAL DE FORMAÇÃO

1.2. À procura de um ritmo

Figura 4 - Capa de LPs do grupo Olodum24

24 Capa dois LPs do grupo Olodum, que fez parte da minha adolescência em Salvador. Suas músicas são

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Quando comecei a escrever esta dissertação, tinha certeza de que a música comporia parte da narrativa e que o ritmo atravessaria todo o trabalho. Para tal, deveria escolher cuidadosamente o repertório para que fossem estabelecidas ligações com as questões étnico-raciais. Será que apenas as músicas temáticas ou “caracterizadas” como sendo de público negro serviriam ao estudo das relações étnico-raciais?

Ao ter consciência de minha passividade e conivência com alguns dos aspectos mais indesejados das questões étnico-raciais, percebi que só poderia assumir tais discussões a partir do minha bagagem de conhecimento e desconhecimento, e de silêncios e vozes que aos poucos se apresentariam. Não poderia começar do nada, teria que buscar em minha formação as condições e os conteúdos que possibilitassem o início de minha caminhada.

Alguns conteúdos (musicais ou não) com os quais tive contato eram novidade, mas outros eram próximos de mim e me acompanharam durante toda a minha história.

Durante todo o processo de formação do curso Educar Para a Igualdade foi constante o trabalho com músicas. Por esta razão, resolvi montar um pequeno acervo de músicas que me possibilitassem problematizar as questões étnico-raciais. Com olhar e audição direcionados, percebi nas músicas as diversas possibilidades para o trabalho e a ampliação de meu próprio repertório. A maior transformação pela qual passei foi minha intencionalidade com o trabalho e com as músicas, afinal, tornei-me disposto a pensar e discutir sobre tais questões.

Foi através de pesquisas na Internet que encontrei a maioria do material para ampliação de meu repertório musical. A música Yáyá Massemba, composta por Roberto Mendes e Capinam, foi o som que embalou o início desta pesquisa, e diz muito sobre este processo.

Que noite mais funda calunga No porão de um navio negreiro Que viagem mais longa candonga

Ouvindo o batuque das ondas Compasso de um coração de pássaro

No fundo do cativeiro É o semba do mundo calunga Batendo samba em meu peito

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Kawo Kabiecile Kawo Okê arô oke25

Quando ouvi pela primeira vez a música na voz da cantora Maria Bethânia, encontrei um percurso para este memorial. Nela percebi uma semelhança com o início das discussões étnico- raciais e com o que me fez buscar este processo de formação: a identificação de nossa história com a dos negros que foram trazidos para as Américas; uma identidade que dialogasse com a minha própria história, de forma a apresentar uma trajetória de vida para além da escravidão.

Foi neste ritmo que passei a conduzir a reelaboração de meus os primeiros escritos e delinear melhor as ideias deste memorial. Escrevê-lo já era um ótimo propósito, como destaca outro trecho de Yáyá Massemba: “Vou aprender a ler/ Pra ensinar os meus camaradas!”. Eu buscava aprender para que, desta forma, também pudesse ensinar. Mas o fundamental era justamente isso: aprender. No meu caso este processo foi simultâneo, o todo aprendido foi destinado ao ensino, afinal era esta a atribuição que tinha como educador étnico do Programa MIPID.

Por onde começar?

Inspiro-me em Paulo Freire em sua teoria Por uma Pedagogia da Pergunta; afinal, não me faltam perguntas para tecer os caminhos desta narrativa e buscar indícios da prática voltada à construção de uma pedagogia étnico-racial. E, de certa forma, foi nos cordéis que o ritmo da palavra começou a se delinear, a tornar-se voz e ruptura. Em um deles procurei mostrar ainda mais o porquê desta trajetória:

Perguntam-me por que escrevo cordel26 E no momento não pude responder

Tentei procurar uma resposta Mas ainda não sei bem o porquê.

25 Trecho de Ya Ya Massemba, composição de Roberto Mendes e Capinam, interpretada por Maria Bethânia. 26 A Prof.ª Rubia Menegaço fez-me esta pergunta em uma das aulas da Prof.ª Maria Carolina Bovério

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Tudo o que eu disser Meio falso soará Pois escrevo em cordel Sem a intenção de me explicar.

Comecei por um impulso Que gerou esta paixão Comecei a fazer cordel E não parei até então. Sobre tudo quero escrever

E ainda bem não o faço. Estou pensando em tudo E um cordel então eu traço.

Traço pequenas ideias Que falam de coisas que sinto

Vou de um problema meu Até mesmo sobre o que minto.

O cordel me possibilita Dizer coisas transcender Falar e fazer com as mãos Discussões que gosto de fazer.

Já achei que não conseguiria Escrever poesia alguma

Hoje sinto que o cordel Desativou mais esta lacuna. Sempre gostei de colecionar Muitas frases e pensamentos Agora me atrevo a fazer as poesias

Que sendo minhas vêm de dentro. Algumas vazias, outras irrelevantes

Importantes, fúteis ou necessárias Escrevo cordel como uma forma

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De alcançar a libertação diária27.

Desta forma, o cordel poderia ser apontado como mais um dos ritmos inerentes aos diálogos sobre as questões de relações étnico-raciais que aqui descrevo. E, ao tratar de ritmo, sabe-se que sua variedade é enorme.

Então, recordo-me de que Lulu Santos cantou:

Não existiria som Se não houvesse o silêncio

Não haveria luz Se não fosse a escuridão

A vida é mesmo assim, Dia e noite, não e sim... Cada voz que canta o amor não diz

Tudo o que quer dizer, Tudo o que cala fala Mais alto ao coração.

Silenciosamente eu te falo com paixão...28

O grupo O Rappa também já havia colocado, em uma de suas músicas, a relação entre a paz, a voz e a vida:

A minha alma tá armada e apontada Para cara do sossego!

Pois paz sem voz, paz sem voz Não é paz, é medo! Às vezes eu falo com a vida,

Às vezes é ela quem diz:

‗Qual a paz que eu não quero conservar, Pra tentar ser feliz?‘29

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Trecho do cordel Por que Escrever Cordel?

28 Trecho da música Certas Coisas, de Lulu Santos e Nelson Motta.

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E desta forma fui compondo meu repertório, na busca por sons e vozes que embalassem esta minha trajetória.

Vou te falar bem baixinho Um pequeno segredo Que descobri agora cedo Que paz sem voz é medo.

Paz que se fala muito E quem vive a elucubrar

De forma a nos impor E a voz de todos silenciar. Com variedades de mordaça

Que já não mais combina Com o discurso e a prática De quem ainda discrimina. Se o silêncio tem seu som

E a música é uma arte A paz para ser plena Precisa caber em qualquer parte.

O que o silêncio diz De forma tão evidente

Que a paz só vingará Se conquistada de frente. Sem voz, nem sentimento Um silêncio bate à porta Ninguém nesta condição vive

A paz assim se faz morta.30

Mas afinal, que ritmo eu procurava? Percebi que eram vários: o ritmo da própria música, o da narrativa, o do cordel, o da poesia, o da voz. Enfim, os ritmos da palavra, fosse ela escrita,

30 Trecho do cordel Paz Sem Voz, inspirado nas músicas Certas Coisas, de Lulu Santos e Nelson Motta, e

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cantada, rimada, vivida, sofrida, compartilhada, silenciada. Os ritmos de uma vida, de muitas vidas, que me dissessem os caminhos para uma Educação mais justa, e que na falta de voz se fizessem valer dos sinais, dos gestos, dos instrumentos possíveis para expressar no cotidiano o compromisso com a questão étnico-racial.

Na busca de um possível primeiro passo para este despertar sobre a temática étnico-racial, deparei-me com o cordel de Luiz Gama31, denominado A Bodarrada ou Quem sou eu?:

O que sou, e como penso, Aqui vai com todo o senso,

Posto que já veja irados Muitos lorpas enfunados,

Vomitando maldições, Contra as minhas reflexões. Eu bem sei que sou qual Grilo,

De maçante e mau estilo; E que os homens poderosos

Desta arenga receosos Hão de chamar-me Tarelo,

Bode, negro, Mongibelo; Porém eu que não me abalo,

Vou tangendo o meu badalo Com repique impertinente, Pondo a trote muita gente. Se negro sou, ou sou bode Pouco importa. O que isto pode?

Bodes há de toda a casta, Pois que a espécie é muito vasta.

31Para saber mais sobre Luiz Gama, ver GAMA, Luiz. Primeiras trovas burlescas. Organização e

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Apresentavam-se então inúmeras possibilidades de ser negro. Não mais um modelo único. E então iniciei alguns escritos sobre a trajetória deste professor, em busca de sua história familiar para compor um memorial que o colocasse em contato com sua própria identidade:

Sou a fome da minha tia Sou a negação da minha irmã

Na luta pela sobrevivência E às vezes com ou sem divã Curando os sofrimentos Por uma vida plena cidadã.32

Ou no trecho deste outro cordel:

Foi no balanço do mar que eu vim E é no balanço do mar que eu vou Apresentar um pouco de uma história

Que fala deste povo vencedor. Não é apenas uma família Milhares, milhões quem sabe

Que atravessou o Atlântico À sorte de toda barbaridade. Nos navios negreiros foram trazidos

Para serem tratados como escravos Tirando-lhes todos os direitos E impondo-lhes a indignidade. Apresento a minha família E não a tomo como perfeita Quero recontar nossa história Pois a oficial já não se aceita.33

32 Trecho do cordel Sou A Fome da Minha Tia. 33 Trecho do cordel Iniciando o Memorial.

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Afinal, qual consciência seria despertada neste processo? Quais seriam os indícios desta minha trajetória de negro? Dúvidas e certezas que vão além da minha conquista pessoal, que sinalizam uma responsabilidade coletiva e social.

E, em uma entrevista do ator Lázaro Ramos, encontrei as palavras que descrevem um pouco melhor esta consciência: “Eu sempre sou citado como a exceção. Não gostaria que fosse assim. Está na hora de mudarmos essa condição. O Brasil precisa aprender a explorar suas potencialidades”.34

Eu, como professor de matemática efetivo em duas redes de ensino, também poderia ser considerado uma exceção. Com a reflexão gerada pelo processo descrito neste trabalho, fui capaz de olhar minha trajetória e perceber os indícios dessa exceção tanto profissional quanto social. Passei a encarar esta trajetória não mais com o olhar próprio da meritocracia que eu tinha até então (e de forma ingênua).

Afinal, eu era nada mais que o resultado de uma regra historicamente forjada para a população negra deste país, através do silenciamento das questões étnico-raciais e do distanciamento de muitas de suas expressões.