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1. MEMORIAL DE FORMAÇÃO

1.4. Educador Étnico?

Figura 5 – Educadoras Étnicas participam das atividades do Sete de Setembro em Campinas?45

Para melhor compreensão deste memorial, é preciso que se conheça um pouco sobre minha experiência como educador étnico.

Educador Étnico é o profissional que iniciou, junto à Secretaria Municipal de Educação de Campinas, um trabalho de valorização da diversidade étnico-racial no sistema de ensino de forma institucionalizada. Surgiu como uma forma de continuidade das reivindicações dos movimentos negros dentro de uma proposta inicial de formação, que foi Curso Educar para a Igualdade

Racial, oferecido para Rede Municipal e que contou com investimento público e com a parceria

do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).

Os profissionais da Rede Municipal que poderiam e deveriam atuar como educadores étnicos de acordo com as diretrizes do programa foram escolhidos através de um processo seletivo. O candidato, após apresentar um projeto de trabalho e passar por uma entrevista composta por profissionais ligados ao programa e com conhecimento sobre a temática étnico-

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racial, era selecionado para compor o grupo de profissionais que atuariam diretamente no programa.

Desta forma, foram profissionais que tiveram a necessidade de apostar no conhecimento sobre as relações étnico-raciais, de se qualificarem para trabalhar com este universo, de se proporem dialogar com os movimentos negros e suas concepções de sociedade e de relações étnico-raciais, de assumir o enfrentamento do racismo, de apresentarem os projetos às escolas da cidade e, acima de tudo, de assumirem pensar e fazer este processo a partir da mudança de sua própria prática e a partir do estágio em que se encontrava seu conhecimento sobre a temática.

Os educadores étnicos buscaram superar desafios, enfrentar obstáculos, buscar soluções para a suas formações e trabalhos em sala de aula, e fizeram das questões étnico-raciais uma prática educativa de efeito para todos os alunos da Rede Municipal de Campinas. Além disso, estes profissionais tentaram estar presentes em toda a Secretaria de Educação da cidade para, a partir dali, trazerem à tona todo o universo que abrange as discussões étnico-raciais. Fizeram, portanto, das conquistas da militância o início da construção de um proposta pedagógica institucionalizada.

Esses educadores imprimiram na Rede Municipal um olhar e uma prática de busca por soluções para as questões étnico-raciais, e demonstraram ser possível começar e avançar neste trabalho, possibilitando a sistematização de materiais, de elaboração de formas de olhar para a educação como um todo e de perceber as especificidades que estão postas para a formação do professor. Identificaram a importância do primeiro passo para avançar no trabalho cotidiano pela valorização da diversidade étnico racial, possibilitaram o levantamento de uma quantidade enorme de questões que já existiam e também – e principalmente – que passaram a surgir no processo.

Poderiam ser questões pessoais como: Quando fui tratado como negro? Quando fui

excluído por ser negro? Quando tomei consciência de minha cor? Quando superei as dificuldades impostas pelo racismo? Quando fui vítima passiva da discriminação ou do racismo? Qual História de meus ancestrais eu teria para contar? E qual História Afro-Brasileira me constitui?

Ou também questões mais amplas: O que é racismo? O que é discriminação? O que é

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prática docente? O que são as cotas étnico-raciais? O que é e para que serve o Estatuto da Igualdade Racial? Quem é negro no Brasil? Quais as especificidades do racismo à brasileira? Existe, de fato, outra História da África a ser trabalhada? O que ganhamos quando discutimos sobre as questões étnico-raciais? Quais avanços esta temática pode trazer para as crianças que frequentam a escola? Qual a importância das questões étnico-raciais para a formação dos professores? É possível ser branco-afro-descendente?

E tantos outros questionamentos com os quais nos deparamos e também elaboramos no decorrer da formação e do trabalho no Programa MIPID. Nós, os educadores étnicos, tivemos a pretensão de tomá-los como parâmetros possíveis para compreensão e aprofundamento das relações étnico-raciais, e buscar nos estudos o pretexto para pensar neste vastíssimo repertório.

Nada é tão simples e nada responde imediatamente qualquer pergunta que seja feita. De certa forma, respostas prontas esvaziam as discussões e tornam superficiais os trabalhos e objetivos do trabalho com as relações étnicas e com o ensino das Histórias Africana e Afro- Brasileira. Nada é inteiramente suficiente, e isso deve ser encarado como um fator positivo, pois desta forma cada educador étnico poderia aventurar-se na formulação de novas questões e no debate das respostas que surgiam, cada um ao seu tempo e de acordo com o conhecimento teórico/ prático da temática.

A recorrência às lembranças pessoais como fotos, relatos, fatos e estudos passa a ser referência para o trabalho dos educadores étnicos. Não são, porém, suficientes para compreender todo o processo, o que torna necessário, num segundo momento, o diálogo com os familiares e os amigos, fontes inesgotáveis para a composição desta nova narrativa pedagógica e pessoal.

A insatisfação e a dúvida são mobilizadoras para este trabalho. E assim, as questões pessoais e familiares não foram suficientes para que eu pudesse avançar de forma satisfatória no percurso de educador étnico. Devo parte de minha caminhada a outros profissionais que atuaram no programa e que, antes de serem entrevistados, já faziam parte desta construção pedagógica pelos trabalhos desenvolvidos para a institucionalização do Programa MIPID, pelas questões propostas e trabalhadas ao longo do período estudado e por nossas parcerias na busca por avançar sempre.

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Considero importante destacar que, por ter a pretensão de transformar minha experiência com todo o processo relatado em um trabalho acadêmico, procurei em algumas disciplinas46 do Curso de Mestrado oferecidas pela Universidade (e em compatibilidade com meus horários de trabalho), o instrumental para tornar esta dissertação um texto que avançasse para outras esferas da discussão étnico-racial.

Pretendo agora obter a legitimidade acadêmica desta minha experiência profissional. Tomando como exemplo o curso Educar Para a Igualdade Racial, pela qualidade dos profissionais que atuaram na formação dos educadores participantes, e destacando as entrevistas daqueles que participaram do curso e acompanharam o trabalho do MIPID. Utilizando-me, portanto, deste texto, tento estabelecer um diálogo consistente com a Academia, podendo, desta forma, adquirir maior referencial para trabalhar e sistematizar uma possível pedagogia étnico- racial.

Destaco, porém, que meu trabalho não termina com esta dissertação. Toda a análise a que submeti minha trajetória até aqui é o que me mobiliza em direção a novos projetos. Como bem salientou uma colega de disciplina, a Nima, novos “projetos de vida”47, novos projetos para vidas.

Mas como falar de todo este processo, destas experiências, aprendizagens e dúvidas? Encontrei nas narrativas e no cordel um grande potencial para contar tais experiências e delinear a abrangência de todo o processo, descoberto e produzido intensamente a partir dos diálogos no GEPEC.

Talvez o motivo de revisitar constantemente o início a que me propus nesta dissertação seja o fato de esta ser a etapa mais difícil: o começo. Começar é perder o medo de expor minhas fragilidades e incertezas diante das discussões étnico-raciais e do desconhecimento teórico e prático deste universo. Mas é preciso o início para construir a história. Afinal, como bem lembrou

46 Epistemologia e Pesquisa em Educação – Prof. Dr. Sílvio Ancízar Sanchez Gamboa (ED307); Memória,

Modernidade Capitalista e Educação – Prof.ª Dra. Maria Carolina Bovério Galzerani (ED730); Teoria Social e Pesquisa Educacional – Prof.ª Dra. Débora Mazza e Prof.ª Patrícia Piozzi (ED834).

47 Ao ler parte do memorial, a colega Nima I. Spigolon fez o comentário. Agora talvez eu compreenda melhor

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minha tia Maria Betânia48: “E quando começa, ela se espalha”, referindo-se à minha avó Maria Pretinha, quando relatava sobre nossa própria história.

Lanço-me então ao desafio de apresentar um pouco de como foi possível chegar até aqui com uma proposta legítima de trabalho. Afinal, o MIPID é apenas um começo de conversa, de trabalho e de investimento na construção de um espalhamento das verdadeiras histórias que construíram nossos povos. Apesar de ter se estruturado na cidade de Campinas, ele já não é restrito apenas a ela e aos seus professores. Ele também já se espalhou.