• Nenhum resultado encontrado

2. A INCLUSÃO RADICAL E O MIPID

2.10. O Solar das Andorinhas

Figuras 20, 21 e 22 – Solar das Andorinhas93

O que venho propondo é um profundo respeito pela identidade cultural dos alunos – uma identidade cultural que implica respeito pela língua do outro, cor do outro, gênero do outro, classe social do outro, orientação sexual do outro, capacidade intelectual do outro; que implica na capacidade de estimular a criatividade do outro. Mas essas coisas ocorrem em contexto social e histórico, e não no ar puro e simples. (Paulo Freire)

O Solar das Andorinhas sediou o curso. O local não poderia ter sido mais bem escolhido, e ainda hoje carrego sua imagem comigo. Era um espaço muito diferente, principalmente ao tratar- se de espaços de formação e trabalho para professores, que em geral são muito precários em

105

termos de recursos. E, além de tudo, o Solar das Andorinhas era historicamente significativo às questões étnico-raciais.

Quando eu chego, eu deparo com um barracão muito, muito ruim, muito ruim, muito rato, muito rato, as mulheres com poucas técnicas. Como é que nós íamos trazer aquelas mulheres pra dentro do material pedagógico de uma rede de extremamente elitizada?... É... Com um material de baixa qualidade e ainda sobre a questão da negritude. Então foi outro choque. (v. anexo: entrevista com Lucinéia Micaela Crispim, p. 60)

Estre trecho refere-se a uma situação extremamente diferente da encontrada no curso do Solar das Andorinhas. De fato, é uma descrição de condições de trabalho mais comumente encontradas em setores negligenciados como a educação.94 Mas, naquele momento, nossa realidade era diferente.

A sensação, ao nos depararmos com o local onde iríamos trabalhar durante três dias, era de conforto, de respeito a nós, profissionais. Neste sentido, pudemos experimentar uma melhora em nossa autoestima e em nossa confiança no conteúdo e na eficácia do curso.

Eu destaco que seria a formação. Eu acho que foi, veio o povo lá de São Paulo do CEERT. Que deu uma formação maravilhosa, intensa e ao mesmo tempo o movimento que aconteceu dentro da rede. (v. anexo: entrevista com Antônio Lopes Macedo, p. 9)

O Solar das Andorinhas era um espaço estilo colonial muito bonito. Já havia estado no local para uma comemoração de formatura dos alunos da Escola Estadual Pedro Salvetti Neto, do Parque Ipiranga, mas agora retornava com outro objetivo: o trabalho.

O conforto, a qualidade no atendimento e o excelente espaço para o curso não representavam um luxo dispensável, mas uma valorização dos profissionais que ali estavam e que atuariam nas estratégias para as mudanças necessárias ao processo educativo. Tudo havia sido minuciosamente pensado e organizado, e as condições materiais viabilizadas para o evento só aumentaram a credibilidade do curso.

A educação segundo quem estava trabalhando na época, a educação era boa quando não era pra todos. Nós tínhamos uma educação pra elite. Ou seja, todos podiam estudar,

94 Para compreender melhor as contradições das condições de trabalho de professor sugiro que assistam ao

vídeo “Carregadoras de Sonhos”, produzido pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação Básica da rede Oficial do Estado de Sergipe (SINTESE) - http://www.sintese.org.br/

106

desde quando você pudesse estudar. Ai depois quando abriram educação para todos, escola em todos os lugares. Ou seja, negro começou a estudar e assim parece que a educação começou a cair um pouco, porque a qualidade do ensino não era mais a mesma, ou seja, era aquele ensino com os mesmos professores, que não estava mais ensinando aos filhos dos doutores. Estava também ensinando o filho da faxineira, o filho da cozinheira, quem se dispõe a estudar [...] Então a escola começou a dizer que perdeu a sua “qualidade” entre aspas. Justamente, o que seria isso? (v. anexo: entrevista com Antônio Lopes Macedo, p. 9)

A rotina começava com um despertar tranquilo em um ambiente arejado cercado pela natureza e o canto dos pássaros. Logo após o café da manhã nos dirigíamos ao espaço destinado às reuniões: um salão amplo construído sobre um terreno em declive que parecia ser no subsolo do Solar. Mas não era escuro, nem mal ventilado.

Para cada atividade proposta havia material de apoio em quantidade suficiente, e os profissionais capacitados à condução dos trabalhos pertenciam às mais diferentes áreas do conhecimento. Tudo era realizado no tempo certo, sem atropelamento dos assuntos:

Trouxe gente muito boa e esse pessoal do CEERT que nos levou lá naquela experiência do Solar das Andorinhas, em vários momentos e foi conversando no nível da militância a gente pode trocar muito com eles, com as pessoas e aprender muito. E teve tempo de trabalho, o que a militância se fosse de uma forma isolada não daria, que é esse tempo pedagógico, para você ver essas questões, colocar de forma pedagógica, fazer a discussão, aprender como que se aborda, levantar pedagogicamente essas discussões. Isso eu acho que foi fundamental. Então essa troca pra gente, esse papel deles foi fundamental. (v. anexo: entrevista com José Galdino Pereira, p. 190)

No decorrer da rotina de trabalho as dúvidas quanto à qualidade da proposta foram desaparecendo, e o sentimento era de ansiedade, expectativa em relação à continuidade das atividades. A riqueza de possibilidades e discussões era tão grande que estávamos todos imersos naquele trabalho. Recebíamos muitas informações e isso fazia crescer o desejo de saber cada vez mais.

Era desafiador pensar e dialogar sobre as inúmeras questões que se apresentavam. O curso havia sido pensado para que nos deparássemos com o questionamento e nos dispuséssemos a buscar possíveis soluções. Desta forma, era muito comum um processo de identificação dos participantes por aquilo que estava sendo estudado e debatido, conforme a questão apontada pelo educador étnico Antônio Lopes:

107

Então, eu achava que era por eu ser, pelo fato de ser negro, que alguns alunos, mesmo negros ou brancos tratavam. Você sentia uma maneira mais ríspida. E alguns pais também. A gente ia e perguntava qual é o motivo disso? E aí não tinha resposta, a não ser a questão da cor. O negro ensinando para o meu filho branco, ou o outro negro não aceitando este lugar onde eu estava. (v. anexo: entrevista com Antônio Lopes Macedo, p. 2)

O fato é que surgiram ali grandes questões, provenientes tanto de mim quanto de outros educadores. E tais questionamentos nos direcionaram a outros caminhos, longe daqueles já instituídos por certezas nunca antes postas à prova. Passamos a planar sobre nuvens de dúvidas sobre a temática étnico-racial e História Africana e Afro-Brasileira. Onde eu pisaria, então?

Algumas questões eram tão controversas, que o conflito se instalava na hora. E muitas foram as vezes em que novas certezas caíram por terra. E a posição de observador que antes ocupávamos já não era tão confortável. Por esta razão era comum trabalharmos inúmeras vezes os desafios que surgiam. Justamente para que estivéssemos preparados a lidar com qualquer tipo de situação.

E outro fato interessante, é que quando eu cheguei aqui em Campinas, em 1986, final de 1986 inicio de 1987, que eu fui trabalhar, fui fazer uma ficha num supermercado, chegando lá, eu levei um susto, porque só entrava pessoas altas, brancas e com gravatas. Eu não usava gravata, não era alto, nem era branco.

E na recepção para fazer a entrevista uma pessoa, uma psicóloga, que eu também não sabia quem era. Aí um rapaz branco, que trabalhava como promotor, ele disse que se ele fosse Deus tinha acabado com todos os negros. O chão pra mim se abriu e se eu pudesse sumia ali. Desaparecia e nunca voltaria. (id, p. 3)