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2. A INCLUSÃO RADICAL E O MIPID

2.12. Mas, afinal, o que tem de diferente?

2.12.1. Um dia no curso Educar para a Igualdade Racial

Só existe um mal a temer: aquele que ainda existe em nós. (Chico Xavier)

MANHÃ

Encenação

Um jovem matriculado no ensino fundamental de uma escola pública esteve, durante algum tempo, com grande quantidade de piolhos.

Tendo sido submetido ao tratamento, obteve um documento médico atestando que já poderia frequentar as aulas normalmente, embora não tivesse sido impedido de entrar na escola por conta do problema.

Ao retornar à escola, o jovem foi recepcionado por uma funcionária que sugeriu que ele cortasse os cabelos para eliminar qualquer possibilidade de contaminação dos demais alunos.

“Afinal! Piolho é uma praga! Basta encontrar uma cabeleira mal cuidada para empestear a escola toda!!”

Ao saber disso, a mãe do jovem dirigiu-se à escola para pessoalmente conversar com a funcionária sobre o modo como tratou o seu filho e questionar a sugestão de cortar o cabelo. Logo agora que o filho havia decidido deixar o cabelo crescer para fazer tranças.

A funcionária, com certa irritação, reiterou o pedido de que cortasse o cabelo com as seguintes palavras:

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“Cabelo carapinha é criadouro de piolho! Por que menino de cabelo comprido? É muito melhor e mais bonito, para cabelo ruim, raspar curtinho como os jogadores de futebol e pagodeiros”.

A mãe tentou argumentar, falar do desejo do filho, que trança era bonito (etc), mas ficou falando sozinha.

A conversa foi encerrada com a frase: “Manter a escola limpa, sem piolho, é obrigação de todos, também dos pais, mesmo se são negros! O importante é serem limpinhos!”

Outra funcionária ouviu a conversa e achou um absurdo, “mas é melhor não se meter nessa coisa!”

A mãe, indignada, resolveu denunciar a funcionária por discriminação.

Após a leitura da cena os participantes foram divididos em quatro grupos (mãe, filho, funcionária que discute com a mãe e funcionária que se abstém da discussão). Cada grupo tinha como tarefa “representar” um dos quatro personagens da história.

O intuito da atividade era se colocar no lugar do outro de modo a perceber a sutileza do discurso reproduzido, muitas vezes, no ambiente escolar.

Notou-se que há uma tentativa de responsabilizar a própria criança/ adolescente pela discriminação sofrida como se não fosse suficientemente forte para suportar a realidade discriminatória. No entanto, uma mãe consciente de seus direitos e das responsabilidades da escola, é capaz de provocar mudanças no espaço escolar, levando a refletir e rompendo com a invisibilidade da temática racial.

Exposição

A oficina, desenvolvida pelo Dr. Sidney de Paula, teve como objetivo sensibilizar e apresentar conceitos jurídicos e leis educacionais que possibilitassem aos professores instrumentos de denuncias às discriminações.

111 A exposição contou com dois momentos:

 A apresentação das principais leis e artigos da Constituição, do ECA e da LDB, como o artigo 5º, preâmbulo da Constituição, e a Lei nº 10639/03.

 A apresentação de definições e elementos jurídicos que norteiam e sustentam as ações e condenações do racismo e discriminação como injúria, injúria qualificada e racismo.

Os principais questionamentos levantados pelos educadores:

O que é discriminação positiva?

 Por que a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) não tem status de Ministério?

 Lei 10639 – A lei prevê ou institui a igualdade racial?

 Por que a maioria das punições fica apenas nas multas?

 Como se faz a comprovação de injúria?

 As punições alternativas são fiscalizadas?

 As delegacias especializadas em crimes raciais foram extintas pelo governo Covas. Algum órgão as substituiu?

 Qualquer distrito deve fazer o boletim de discriminação racial ou tem que passar pelo delegado?

 Quando um professor sofre uma agressão verbal e sua integridade é ameaçada, como a Secretaria de Educação pode proceder?

Ao comentar os trabalhos dos grupos o oficineiro ressaltou:

 Diante de uma acusação de racismo, uma das artimanhas mais utilizadas pelos advogados é argumentar em defesa usando colocações que tirem a atenção do foco julgado. Por exemplo, argumentar sobre o estudo e não mencionar a questão principal que era o cabelo.

 No Brasil existe o que chamamos de inversão do ônus da prova. O réu precisa provar que cometeu o crime e não que não cometeu.

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 A promulgação da Constituição Brasileira de 1988 já estabelecia cotas para mulheres em cargos públicos. A estas medidas protetivas chamamos discriminação

positiva.

 Muitas medidas punitivas acabam sendo substituídas por medidas alternativas como doações de cestas básicas e trabalhos voluntários.

 Adota-se como estratégia requerer a condenação por injúria qualificada, que é condenatória também, ao invés do racismo que dificilmente é classificado, pois a pena é muito alta na visão dos juízes.

Atividade em grupo

Como atividade o coordenador da oficina propôs que os grupos fossem “advogados por um dia” e respondessem em defesa os seguintes questionamentos:

1. Justifique a atitude da funcionária da escola, observando que a mesma teve por objetivo preservar os demais alunos.

2. Você entende que houve uma postura extremista da mãe do jovem? Por quê?

3. No seu ponto de vista o caso pode ser classificado como situação de racismo ou como injuria com conotação racial? Por quê?

4. Na perspectiva da promoção da igualdade racial, que tratamento você daria ao caso, a fim de torná-lo um fato educativo?

Os grupos deveriam se reunir e pensar na apresentação desta atividade no período da tarde, logo após o almoço.

TARDE

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Para iniciar a coordenadora da atividade solicitou dos professores: “Vamos trabalhar a nossa coordenação motora e relembrar a infância?”

O objetivo da atividade era mostrar como o aprendizado prático através do simulacro de situações vivenciadas pode favorecer a percepção e identificação de ações e reações, próprias e dos outros de forma a facilitar o entendimento e o trabalho com o tema em questão.

A coordenadora solicitou que, em roda e ao som de músicas do nosso folclore como “Sapo Cururu”, “Caranguejo não é peixe” e “A canoa virou”, os professores pudessem relembrar as coreografias que representavam as músicas.

Para maior integração e descontração do grupo foi solicitado que os participantes também pudessem, em roda e com os pés como referência para andar, seguir a seguinte música:

“Toque, patoque, patoque, taque, tiqueque, tiqueque, tumba, tumba, tumba,tumba”. De varias formas: uma roda de homens, uma roda de monitoras e uma roda de mulheres. Como a música tem oito tempos, ela pôde ser feita de várias direções: oito passos para um lado e oito passos para o outro, quatro e quatro (duas vezes), dois e dois (quatro vezes), um a um (oito vezes).

Apresentação das atividades

 GRUPO I

1ª Pergunta

- A funcionária sugeriu o corte do cabelo pensando no coletivo, pois a criança não deveria contaminar os demais. Foi pensando também na freqüência do aluno nas aulas.

- A pessoa só poderia vencer na vida pelo estudo

- O que é mais importante, assistir às aulas ou ter cabelos compridos? - O cabelo cresce novamente, uma aula perdida nunca mais volta.

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- A mãe agiu com assertividade procurando a escola para apurar a veracidade dos fatos. Tendo sido atendida pela funcionária de forma agressiva, confirmou a suspeita de racismo na escola.

- A mãe justificou educadamente, no seu direito de cidadã, que o dever da escola é respeitar as diferenças culturais.

3ª pergunta

- É racismo e injuria qualificada.

- Racismo – impedir, negar, obstar e recusar.

- Injuria qualificada – porque usou elementos referentes à raça e etnia.

4ª pergunta

- Desenvolver um projeto educativo que modifique os olhares dos sujeitos envolvidos na comunidade escolar quanto:

O papel da escola A cidadania A pluralidade cultural A prática da alteridade  GRUPO II 1ª pergunta

- A funcionária agiu dentro do senso comum.

- Ela desejava que o aluno tivesse como modelo os jogadores de futebol famosos e pagodeiros que raspam a cabeça.

- Preocupação com a imagem do adolescente. - Zelo pelo bem estar do aluno e higiene da escola.

115 2ª pergunta

- Mãe agiu corretamente em defesa da “cria”. - Memória e identidade.

- Direito a cidadania

- Mãe consciente, cuidou do filho e mandou atestado para evitar que o filho passasse por outras situações.

- Racismo mascarado.

- Responsabilidade da escola. 3ª pergunta

- Injúria com conotação racial.

- “Todos os cabelos carapinhas são ninho de piolho (criadouro).”

4ª pergunta

- Mãe – Falar com a direção.

- Direção – Construir com a equipe da Unidade Escolar um trabalho de conscientização racial e de direitos/ cidadania (e também sobre os piolhos).

 GRUPO III

1ª pergunta

- Má interpretação da mãe. - A criança não entendeu direito. - Mãe estava alterada.

- Ela não quis dizer isso. - Cabelo raspado está na moda.

- Cortar cabelo é para protegê-lo, e aos demais, dos piolhos. - Cabelo curto fica mais bonito.

- Para evitar a marginalização. - Para evitar discriminações.

116 2ª pergunta

- Não foi radical porque:

Ela não foi sensacionalista (não foi à imprensa); Não usou da violência;

Procurou os responsáveis para o diálogo; Não lavrou ocorrência.

3ª pergunta

- Injúria qualificada porque usou de elementos referentes à etnia para negar aos alunos o direito de usar cabelo comprido.

4ª pergunta

- Faria um trabalho educativo de valorização da diversidade étnica e conscientização com relação aos piolhos.

 GRUPO IV

1ª pergunta

- Falta de esclarecimento - Baseou-se no senso comum.

- Falta de reflexão sobre os casos semelhantes, como os dos evangélicos. - A escola reproduz padrões sem questioná-los.

- A escola não considera a diversidade étnica e cultural do aluno. - Houve abuso de poder.

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- Não foi radical, pois buscou o diálogo e estava defendendo um direito do filho contra o abuso de autoridade da funcionária.

3ª pergunta

- Para justificar seu ponto de vista a funcionária ofendeu o aluno de forma pejorativa. Trata-se de injúria com conotação racial.

4ª pergunta

- Faríamos um trabalho com toda a comunidade escolar tematizando o racismo e os direitos humanos.

- Além disso, uma sensibilização em várias situações que envolvessem o “colocar- se” no lugar do outro.

Comentários

O oficineiro, após as falas dos grupos fez algumas colocações sobre o material exposto:

 Nem todos os grupos entenderam o que era pra ser feito. Alguns tiveram muita dificuldade em defender a funcionária por não considerarem a atitude dela correta.

 Todo réu é passível de defesa, portanto a argumentação deve buscar tirá-lo do foco sempre.

 Estas reflexões na área educacional são importantes para se buscar caminhos de

educação e responsabilização dos diferentes atores da escola.

Esta descrição é uma tentativa de reproduzir a proposta do curso e sua amplitude no que se refere às questões relacionadas à temática étnico-racial. Ainda que conduzidos por um advogado, os diálogos que surgiram foram extremamente ricos em termos de construção pedagógica. A mobilização para solucionar problemas específicos leva à compreensão da complexidade das relações étnico-raciais dentro do ambiente escolar.

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Foram tantas as possibilidades de entendimento da temática, tão fortes e ricas as constatações e propostas, que nos perguntávamos como é que não havíamos pensado em algo parecido antes. O próximo passo seria levar todo o conteúdo discutido sobre a temática étnico- racial à prática diária de educador. O melhor, seguramente, era não termos saído de lá com certezas, mas com capacidade de questionamento para percepção de novas diretrizes para a caminhada.

Eu acho que foi maravilhoso, porque, talvez tivesse outra palavra para dizer, para estar qualificando a questão do curso Educar para a Igualdade Racial pelo fato de nós, tanto negro quanto brancos que estávamos lá trabalhando a questão da desigualdade étnico- racial, nos enxergar dentro da literatura e vermos que tinha pessoas dentro do Brasil que estavam trabalhando com essa questão. Não estava algo morto esquecido e sim algo que ressuscitou por dentro de nós educadores étnicos, uma vontade, a questão da luta para diminuir a questão dessa desigualdade instalada dentro das escolas. Então eu digo que foi bom, foi maravilhoso, pelo fato de trazer coisas novas, trazer pessoas gabaritadas capacitadas sobre a questão e que nos abriu realmente os olhos, para vermos melhor o que acontecia, não só dentro da rede, mas também na questão da saúde, na questão da educação, na questão do poder. (v. anexo: entrevista com Antônio Lopes Macedo, p. 11)

A questão racial é algo intrigante. Quando conversamos com um grupo que conhece a discussão e já está familiarizado com o estudo desta questão, as coisas começam a ficar mais transparentes, mais simples, e então nos questionamos sobre o que teríamos feito com nosso senso crítico nesses longos anos de experiência profissional. Talvez isso ocorra por ser tão forte e contundente a imposição do silêncio, do mal-estar, do distanciamento causado pelo confronto com a temática étnico-racial.

O Brasil todo, enxergando a questão racial como uma questão presente na educação, uma questão que precisa avançar, para a gente se tornar um país para todos, um país onde o negro seja incorporado enquanto elemento fundamental que foi para a criação deste país. E isso já reconhecido. Reconhecido no sentido de você, perceber esse espaço como espaço justo do negro dentro da sociedade. Onde ele possa criar seu filho, educar seu filho, fazer parte de uma sociedade, de igual para igual e criar um país novo, um país pra todos. (v. anexo: entrevista com José Galdino Pereira, p. 196)

Entretanto, uma vez percebida e compreendida a relevância da discussão, começamos a planejar ações que possibilitem a nós mesmos e aos outros, as condições necessárias ao início de

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trabalhos que englobem a introdução de novas referências, novos olhares e fazeres sobre as relações étnico-raciais e os diversos aspectos que as norteiam.

Creio que, mais do que apreender novos conceitos para passar adiante, o curso de “Educação para a Igualdade Racial” nos possibilita entrar em contato com nosso íntimo e rever a relação que construímos com tais questões.

Além disso, é inevitável a percepção das contradições do sistema de ensino, e da necessidade de mudanças para uma educação que valoriza o ser humano em suas diversas dimensões.

Pensar na pessoa humana. Então vai trabalhar com a pessoa humana mesmo, quem é esse cidadão que está ali precisando dentro da sociedade que tem... Os direitos são iguais e de repente a gente está vendo aí, a diferença de igualdade por causa da cor né? Preta. (v. anexo: entrevista com Noêmia de Carvalho Garrido, p. 92)

Percebo hoje que talvez haja um começo, uma situação que desperte para o trabalho e a discussão étnica. Mas não vejo um fim. Um dos motivos que, por vezes, nos distancia um pouco da temática. Afinal, revisitar uma situação de racismo e cotidianamente instituir ações de respeito à diversidade não é algo se faz da noite para o dia, inclusive se não há comprometimento de todas as partes envolvidas.