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2. A INCLUSÃO RADICAL E O MIPID

2.19. Escutar os silêncios, produzir vozes

Estamos num país onde certas coisas graves e importantes se praticam sem discurso, em silêncio, para não chamar a atenção e não desencadear um processo de conscientização. (Kabengele Munanga)

Fazer parte de um programa que lidava com os diversos aspectos da educação das relações étnico-raciais e atuar diretamente no NAED, colocava os educadores étnicos na condição de observadores e identificadores de estruturas que direta e indiretamente pudessem impossibilitar a construção de uma prática pedagógica de valorização da diversidade étnica.

O trabalho desenvolvido no NAED exigia a formação dos profissionais que lá atuavam. Seus gestores eram quem poderia e deveria viabilizar o acesso dos educadores étnicos às escolas, além de investigar maiores possibilidades para o avanço do trabalho.

Entretanto, havia uma necessidade maior de legitimação política das ações dos educadores étnicos, bem como de uma formação política especifica para lidar com as questões daquela instância, que começavam a surgir. Era, portanto, importante para os educadores étnicos um respaldo político que viabilizasse a permanência dos mesmos naquele espaço.

Enquanto escrevo esta dissertação, estou consciente de que um desafio maior ainda está por vir: consolidar na escola em que ensino atualmente o diálogo para a construção de um trabalho permanente em cima da temática étnico-racial. As experiências no NAED e no MIPID me permitem dizer que este projeto somente se concretizará e permanecerá se for efetivamente

103 Minha tia Rita citou em uma deliciosa conversa algo parecido com a frase que segue, e pediu para que eu

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abraçado e pensado a curto, médio e longo prazo pela equipe gestora. Sendo assim, a garantia do diálogo, a viabilização de materiais e a formação dos professores precisam ir além de uma proposta inicial. Creio que este seja o desafio maior das escolas.

Ainda que o tema étnico-racial seja indicado pelas diretrizes da Secretaria da Educação, o trabalho nas escolas não deve se limitar a decretos e leis. Deve sair do papel e da condição de evento esporádico e provocar mudanças de atitudes e conceitos. São as decisões a respeito da prática de ensino que farão a diferença e garantirão o direito previsto pela lei. Como a professora Corinta bem destacou, a ação pedagógica não se modifica com papeizinhos e folhetos semanais enviados à escola.

Ainda que com o MIPID tenhamos vivido de forma intensa essas discussões e construído diversas formas de trabalhar, percebo o quanto ficamos envolvidos com a temática e com a sensação de que muitas coisas mudariam após o fim do programa. Certamente muitas coisas mudaram, mas a nossa imersão é tão grande que por vezes não conseguirmos quantificar os avanços.

Com o fim do programa, os educadores étnicos passaram a ter a rotina como referência de mudanças. Às vezes elas são muito maiores do que imaginamos, do que podemos ver. Outras não. E não podemos ser solitários nessa luta. Por esta razão, é importante que a escola tome a luta como também dela, assuma ações permanentes para que o legado deixado pelo MIPID não corra o risco de ser esquecido.

2.19.1. Subsídios para a discussão

Sabendo que um dos aspectos da projeção da discriminação racial na educação é a dualidade do sistema educacional, no qual negros e mestiços, em sua grande maioria, frequentam a escola pública e os brancos, por suas condições econômicas mais favoráveis, compõem predominantemente das escolas particulares, principalmente das que têm maior prestígio social. (OLIVEIRA, Iolanda, 1999, p. 21)

Dada a estrutura possibilitada, tínhamos sempre à mão uma assessoria presente durante todo o processo de formação e uma biblioteca muito significativa para aquele início de trabalho. Foi possível estudar e ter acesso ao universo amplo da literatura que trata da diversidade étnica e

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das relações raciais. Desta forma, pudemos viabilizar nossas ações, apontar novos parâmetros e desconstruir mitos, apoiados pelos mais variados títulos.

Cada um dos núcleos do NAED tinha um acervo de cerca de trezentos volumes de livros sobre os diversos aspectos das questões raciais, e nós tínhamos acesso a todos estes núcleos, o que nos garantiu uma formação consistente sobre relações étnico-raciais e sobre a História Africana e Afro-brasileira. Eram materiais encontrados somente em livrarias comprometidas com tais questões, e foi então que descobrimos as livrarias A Casa das Áfricas e Kitábu, responsáveis por uma abertura maior no leque de opções de nossos estudos.

Foi essa dificuldade em encontrar material literário que tratasse da diversidade humana de forma séria e sem os estigmas da sociedade contemporânea, a razão da concepção do projeto “O Sonho de Akins”, desenvolvido juntamente com o MIPID e a Escola Clotilde Barraquet Von Zubem.

2.19.2. Um diferencial na formação

E o que é um professor na ordem das coisas?

Lembro que uma das fortes questões que nos mobilizava era a formação de professores aptos a lidar com a questão racial. Certa vez, no Centro de Formação (CEFORMA), o professor Luiz apresentou-me uma entrevista de jornal em que três professoras de Itatiba falavam sobre preconceito na escola. Diante dos pontos por elas expostos, ele comentou da importância do programa pra a mudança de discursos como aqueles sobre a temática étnico-racial. Foi então que pude perceber o quanto a formação no Educar para a Igualdade Racial e a experiência no MIPID mudaram também o nosso discurso a partir da possibilidade de novos olhares e concepções sobre tais questões.

Na mesma época ensaiei uma resposta para encaminhar ao jornal onde a entrevista havia sido publicada, mas resolvi, a partir disso, mobilizar um questionamento interno sobre as minhas próprias questões.

A reportagem, cuja chamada era “Crianças são menos racistas graças a trabalhos desenvolvidos dentro da escola”, era datada de 29 de junho de 2006:

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O preconceito racial, muito acentuado em outras épocas, ainda não está em extinção, mas, graças ao trabalho desenvolvido pelos professores dentro das escolas, as crianças têm demonstrado grande amadurecimento quando o assunto é o racismo, e aceitado com normalidade as diferenças de raça e condição social. Diretores, professores e funcionários de escolas tentam passar para as crianças que, independente das diferenças, todos são iguais e devem se respeitar. O preconceito, segundo professores entrevistados pelo Jornal de Itatiba – Diário, de fato existe por parte de alguns pais e até mesmo de avós ou bisavós. As crianças, segundo elas, estão com uma mente diferenciada. (v. anexo: P24, Doc1)

Procurei nesta manchete a possibilidade de um diálogo sobre o que pensavam e diziam os professores quando diretamente questionados sobre as relações étnico-raciais, e os conceitos que passaram a formular a partir da formação que estávamos tendo. Destacarei abaixo algumas das questões que mobilizaram minha busca por respostas:

 Estamos em pleno século XXI, e cada vez mais as pessoas se respeitam independentemente de sua religião, raça e situação social.

 Infelizmente ainda perdura em algumas famílias a crença de que a raça negra é inferior, transmitida por avós, bisavós e tataravós.

 Mas, felizmente, principalmente nas escolas, o trabalho realizado é totalmente o oposto.

 Apesar de se afastarem um pouco quando chegam numa escola e encontram pessoas de outras raças, acabam entendendo e modificando seu comportamento, graças à vivência permitida.

 Quando elas gostam acabam falando, e quando elas não gostam acabam falando também. Felizmente não vejo problemas de discriminação racial entre os alunos.

 Temos que abordar o assunto quando o problema existe. Essa questão não deve ser levantada pura e simplesmente, sem ter um motivo. Do contrário dá-se a impressão de que está realçando um problema que no momento não existe.

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 A professora afirmou que nunca ter tido problema de discriminação, seja de qualquer natureza. Acredito que há ainda o preconceito nos adultos, na casa da criança. Percebemos que alguns alunos fazem colocações que vêm da família.

 Ainda existem famílias que têm preconceito, mas os professores têm conquistado uma vitória, pois estamos alcançando um objetivo que nem mesmo as famílias conseguem, que é o de mostrar que devemos respeitar o próximo, independentemente de qualquer coisa.

 Ela confiou a saúde e a educação de seus filhos a uma babá negra, que é muito estimada por eles. O preconceito depende muito do ponto de vista que o adulto tem. Naquele momento, a formação realizada nos cursos e os trabalhos desenvolvidos com as escolas já possibilitavam um questionamento deste universo de contradições. Podia-se perceber quando a escola e os professores procuravam maneiras de fugir da temática, ou não eram capazes de reconhecer suas limitações. Muitas vezes atribuíam à família a responsabilidade exclusiva pela discriminação praticada pelos alunos, e se retiravam deliberadamente do debate.

Em contrapartida, nossas discussões já encontravam caminhos para lidar com este repertório de maneira mais pedagógica, além do apoio de materiais e abordagens possíveis para cada um dos temas citados acima – família, história, escola – e outros. Entretanto, tudo isso foi conseguido aos poucos, depois de muito trabalho, e o discurso dessas professoras do jornal apresenta muitas das dificuldades iniciais que nós mesmos encontramos no trato da temática das relações étnico-raciais.