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As estações do ano, aqui, tem um nome definido: água, lama e seca. Em última análise é sempre a água que, com sua presença ou ausência, denomina e caracteriza. (GALLO, 1997, p. 53).

Apenas inverno e verão são estações bem marcadas na região amazônica, não coincidindo, porém, com as estações oficiais, pois o período de chuvas é denominado inverno e o de seca, ou verão. Este aspecto é comum, portanto, ao arquipélago do Marajó, onde, por sua influência sobre as condições de vida dos habitantes, são denominados inverno e verão marajoaras. O inverno dura os seis primeiros meses do ano e possui índices pluviométricos entre 2000 e 4000 mm, excesso que provoca a interligação dos canais hidrográficos e alagam os campos do Marajó. Na região do rio Arari, onde está o município de Cachoeira, esta ocorrência é agravada pela impermeabilidade específica de seu solo argiloso e tem como consequência o fenômeno que traz abundância e conflito à região. Imediatamente à interrupção das chuvas, as águas baixam em ritmo acelerado impedindo o escape de toneladas de peixes e outros animais aquáticos, que permanecem presos em lagos perenes e/ou igarapés, tornando-se presas fáceis. Schaan (2005) descreve este fenômeno e relaciona a fartura de alimentos, trazida por ele, ao povoamento indígena pré-colombiano no arquipélago marajoara. Em hipótese complementar a esta, a autora pondera que essas populações teriam começado a manejar os recursos hídricos através da construção de barragens, podendo, assim preservar alimento durante o verão. Com a terra retirada das escavações teriam erguido barreiras artificiais onde construíram suas casas e sepultaram seus mortos, localmente chamados de “tesos”.

A chuva na região do Arari é um fenômeno cuja influência perpassa diversos períodos históricos e se perpetua com tal importância que é a partir dela que se estuda, como vimos, o contexto arqueológico da região, bem como sua formação social e sua contemporaneidade. É a água quem determina a relação entre os habitantes do Marajó e o ambiente ou, conforme Gallo enfatizou, é ela quem a dita:

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Quem manda aqui não é o presidente da república, não é o governador, não é o prefeito. Aqui domina uma ditadura absoluta e incontestável, não baseada na Constituição das Forças Armadas. É um dado de fato, quem manda é a água. É a água quem dá o sustento e cria as dificuldades, consola e leva ao desespero, condiciona a saúde, o trabalho, a vida da gente. Sem levantar a voz, sem violência, mas implacável e total (GALLO, 1997, p. 53).

A presença concreta e semântica da água e sua conexão com vida no Marajó foram retratadas em obras literárias como “Chove nos Campos de Cachoeira” e “Marajó” de Dalcídio Jurandir (1909 – 1979). Dalcídio foi um romancista marajoara que viveu e foi reconhecido como tal à mesma época que seus amigos e escritores Jorge Amado, Drummond de Andrade e outros de igual mérito. Foi, também, um dos primeiros autores a arrazoar a exploração dos recursos naturais e simbólicos do povo marajoara.

Dalcídio soube, de maneira muito acurada, retratar as características psicológicas dos marajoaras e seus sentimentos, quase sempre, submersos em águas naturais e sobrenaturais. Penso que essa presença – vital e mística – determina o recolhimento interior e (inter) coletivo que, por sua vez, produz o silêncio individual e contemplativo, gerador do conhecimento sobre o meio natural e social e de uma engenhosidade peculiar no Marajó. É, também, nas águas que habitam alguns dos Caruanas – energias naturais responsáveis pelo equilíbrio ambiental e pela magia das coisas, fenômenos e lugares dali, bem como a função mágica de rituais como a “pajelança cabocla amazônica” (feita no Marajó)11

e a pajelança marajoara12. Os Caruanas dão aos marajoaras uma noção inversa sobre o caminho evolutivo (ou involutivo) do espírito, já que, ao evoluir, “os Caruanas descem por uma Escadinha de Coral encantada, onde gradativamente são submetidos a uma transformação decrescente” (Caruanas, 2012) que, em nível máximo, transforma o espírito em água – o elemento primeiro, fundamento da vida nos Marajós.

A estação seca ou verão marajoara compreende o período entre julho e dezembro – assinalado pela diminuição das chuvas e seca de lagos e rios intermitentes. A paisagem natural do Marajó se modifica completamente de acordo

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Para Maués (2002) uma forma de pajelança distinta da indígena e próxima do xamanismo, contudo, sem identidade própria.

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Ritual onde os únicos seres recorridos são os Encantados ou Caruanas, que incorporam o curandeiro(a) para receitar as ervas a serem consumidas em firmas de chãs, garrafadas (infusões de ervas mistas), banhos etc. para a cura de males físicos e espirituais.

com as estações climáticas (seca e chuvosa) – sendo o período de maior fluxo de visitantes ao arquipélago.

As peculiaridades geográficas, históricas e culturais do Marajó dificultam a caracterização do local. Contudo, entendo que é o desconhecimento sobre a região que mais causa interferência na correlação destes elementos para a compreensão da atual formação das sociedades dali. A partir deste ponto de vista, procurei, neste capítulo, sintetizar algumas das particularidades regionais e enfatizar a influência, por vezes coercitiva, que a água possui na vida dos habitantes dos Marajó(Figura 5).

2 A (DES) CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO MARAJOARA

O banqueiro Edemar Cid Ferreira vai perder a coleção de 765 peças arqueológicas que mantém no Instituto Cultural Banco Santos. O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) decidiu cassar a licença que concedeu ao instituto em 4 de dezembro de 2002, nos últimos dias do governo de Fernando Henrique Cardoso. É o único acervo do gênero no país sob a guarda de instituição privada. [...] A legalização da coleção permitiu também, de acordo com Neves, a criação de um corpo de especialistas em cerâmica marajoara no país. Nem o museu Goeldi, de Belém, nem o Museu Nacional, no Rio, têm uma equipe de seis restauradores, como o instituto do banqueiro mantinha. [...] "O Edemar deu um tratamento fantástico para a coleção que comprou dos fazendeiros. É um trabalho único no país em restauro. Nem o Goeldi faz isso", elogia Denise [Schaan]. A contraface, diz ela, é que o comércio estimula o saque e a instituição que o banqueiro criou não estava preocupada com pesquisa -- assemelha-se mais a um gabinete de curiosidades. [...] Há outras particularidades na coleção. As peças de cerâmica marajoara, que representam 80% da coleção, formam um acervo único no país, segundo Denise Schaan: "A coleção tem uma importância fantástica porque foi formada por peças de uma só região da Ilha de Marajó" (Folha de São Paulo, fev. 2005. On-line).

Como pode ser visto no texto acima, a cerâmica marajoara é conhecida e valorizada, servindo ao colecionismo de personagens conhecidos, ao contrário do Marajó e sua população. Esta reportagem também serve para levantarmos diversas questões, e entre elas, a de como é possível que 750 peças de cerâmica marajoara tenham chegado às mãos de Edemar Cid? Teria o banqueiro visitado o Arari? Por que uma região com tão relevante patrimônio é tão pobre?

A concepção de patrimônio aplicada ao campo cultural aparece, quase sempre, em expressões desprovidas de reflexão sobre seu significado - ou seja, da relação entre o sujeito e sua cultura. Nesse sentido, merece destaque a “educação patrimonial” e seus contrapontos, uma vez que, pela ótica da ‘autenticidade’13

, não seria possível educar alguém quanto ao valor do que lhe é precioso. Sendo assim, o objetivo deste capítulo é discutir os contrastes entre a concepção deste patrimônio a partir de concepções acadêmico/científicas e o relacionamento que seus “detentores” mantêm com os bens que expressam sua criação humana, social e simbólica – seu patrimônio, aqui, o patrimônio histórico-cultural marajoara.

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Benjamin (1987 p. 188) considera que “a autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico”.

O conceito de patrimônio cultural difundido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, apud IPHAN, 2012), o divide em imaterial e material. O patrimônio imaterial é composto pelas “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”. Já o patrimônio material é subdividido em bens móveis e imóveis. Dos bens imóveis fazem parte os núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais, enquanto que os bens móveis possuem como elementos integrantes as coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos.

Trazendo o conceito de patrimônio cultural à esfera nacional, encontramos no artigo 216, da Constituição de 1988, que “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 1988, p. 85). Entretanto, no decreto- lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, consta que para que os bens acima referidos sejam considerados resguardados pelo IPHAN, faz-se necessário que estejam devidamente registrados em um dos quatro livros do tombo. A saber: arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas.

A institucionalização do patrimônio cultural, descrita nas referidas leis, remete- nos ao entendimento de que, muito embora seja feito um recorte do termo patrimônio ao campo cultural, o sentido coletivo agregado à palavra como requisito à sua preservação, requer que sejam interpretadas questões sobre o ‘para quem’ e ‘o que’ pode ser categorizado como um patrimônio cultural. Rodrigues (1994), afirma que a concepção de patrimônio enquanto representação coletiva resultou do momento histórico em que se buscava sustentar a construção dos Estados-nação. Em outro trabalho (1996) a mesma autora argumenta que, embora esta noção tenha se deslocado do nível de nação ao de sociedade, ela permanece como um traço marcante de práticas preservacionistas e “disfarce” das diferenças sociais e culturais.

As discussões sobre patrimônio, tomadas a partir o ponto de vista nativo, alcançam um nível mais abstrato. Gonçalves (2002, p.24) argumenta que “ainda que possamos usar a categoria patrimônio em contextos muito diversos, é necessário adotar certas precauções. É preciso contrastar cuidadosamente as concepções do observador e as concepções nativas”. Porém, as políticas e discussões sobre o tema evidenciam que grande parte do que se considera como ponto de vista local é, na verdade, um constructo de reinterpretações. Embora seja claro que qualquer tentativa de apreensão das visões nativas sempre serão interpretações das interpretações nativas (Gertz, 1978) a questão é recolocada como uma orientação à busca em direção aos diversos significados que podem adquirir os patrimônios, principalmente para a população local.