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2.1 UM ARQUIPÉLAGO DE HISTÓRIAS E PATRIMÔNIOS

2.1.1 A Função Estética da Cerâmica Marajoara

Não é possível precisar o momento em que os traçados da arte marajoara capturaram a atenção de seus admiradores. Porém, as considerações que aqui apresento parecem evidenciar de que o fenômeno é tão antigo quanto as investigações sobre a origem humana na Amazônia.

O trabalho de Couto de Magalhães (1874) dá conta do colecionismo de cerâmica marajoara que existia na época de sua pesquisa. O mesmo relatório parece indicar, ainda, a admiração de seu autor – embora velada – por esses objetos, quando o cientista escreve:

Eu tenho aqui uma cabeça de uma estatueta de argilla, encontrada pelo Dr. Tocantins dentro de uma ygaçaba14 dos antigos aterros de Marajó, onde o primitivo estatuario, fazendo uma obra tosca e grosseira, reproduziu contudo com admiravel fidelidade os caracteres da raça [...] vê-se o plano pyramidal da estructura da cabeça, a obliquidade das sobrancelhas, a horisontalidade dos olhos, o recto do angulo do maxillar inferior, e até a bracocephalia (COUTO DE MAGALHÃES,1874, p. 52 e 92).

Já no século XX, o movimento artístico moderno – nacional e internacional – presenciou a admiração pela cerâmica do Marajó. Roiter (2010) fala da influência marajoara no Art Déco brasileiro mostrando que, desde 1901, seus traços aparecem na produção de Eliseu Visconti, quando o pintor chega ao Brasil, recém-formado em artes, na França. Porém, o autor afirma que, oficialmente, o marajoara chegou à arte moderna através de um manifesto que exortava os brasileiros ao abandono dos parâmetros europeus e à busca de suas raízes – “O Nacionalismo na Arte” (1914). Rotier dá ênfase à nacionalidade europeia do autor do artigo e, após sua declaração, Brasil e Europa viram grafismos marajoaras estampados nas obras de artistas proeminentes. Além disso, “na decoração das casas acontece uma verdadeira febre de objetos, móveis, luminárias, tapetes, enfim, tudo em que se possa imprimir labirintos, ziguezagues, gregas e tramas geométricas derivadas dos desenhos marajoaras” (p.1). Os elementos marajoaras foram agregados também à arquitetura, tendo destaque o edifício que abriga o Instituto Biológico (Figura 6), em

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Barbosa Rodrigues (1874; 1876) classifica (a partir da língua indígena de então) esses potes em diversas categorias, algumas têm mesmo nome, porém usos distintos: Igaçaua; Igaçava; Igassáuas; Igasáus; Iukaçauas e outros. Muitos trabalhos arqueológicos parecem classificar qualquer pote como “igaçaba”.

São Paulo15, e o Ribeiro-Moreira (Figura 6), no Rio de Janeiro, além de outros como o Itahy e a “Casa Marajoara”, também no RJ. Os estes três prédios foram construídos em 1928, 1932 e 1937, respectivamente.

Figura 6 Fachada e parte interna do edifício Moreira, RJ e IB, em São Paulo. Fonte: Instituto Art Déco Brasil.

Como podemos ver, quando se buscou afirmar o nacionalismo brasileiro – também – no movimento artístico, a estética marajoara transpôs o colecionismo de suas peças e chegou à Europa – onde recebeu o status de arte. Entretanto, esse estilo se ateve àquela época, como podemos verificar nos seguintes trechos de reportagens:

"Identidade Marajoara" é o nome da coleção da grife Celeste Heitmann, de bolsas e jóias. A riqueza da cerâmica marajoara, com seus traços harmoniosos e simétricos, foi o ponto de partida para a coleção [...]. (FASHION RIO, jan. 2008);

A designer Marcela Costa lançou nesta quarta-feira a coleção ‘Marajoara Déco’, em Copacabana. [...] Muitas formas geométricas, concretismo e narrativas Marajoaras estão presentes em seus colares, pulseiras, braceletes e brincos, que pela primeira vez ganham cor e material diferentes (SANTOS, 2012).

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Segundo informação do site oficial do Instituto Biológico, a construção do prédio iniciou-se em 1928 e durou até 1945.

A influência da arte marajoara está presente na atualidade. Porém, entre todas as formas artísticas que ainda podem ser encontradas na região amazônica, há uma enorme diversidade étnica marcada por técnicas, formas, traçados e diferentes combinações entre esses elementos em cores muito variadas. Pensando sobre isto, durante a viagem que realizei ao campo desta pesquisa, ao Marajó, me propus a estranhar meu âmbito familiar, como sugere Velho (2008). Acredito que este exercício, também, me remeteu às lembranças de quando vivia ali, sobretudo, às conversas que tinha com meus amigos de infância, sobre as novidades mais intrigantes desses lugares: a presença de pessoas, normalmente de outros países. Na chegada à foz do rio Camará, vi os traçados marajoaras (gregas) estampados em muros, prédios públicos, estabelecimentos comerciais16. Como os ônibus que

partem da foz do rio17 levando os passageiros a outros lugares também costumam

percorrer as vilas que há no entorno dali, pude observar os traçados pintados também nas adjacências de Salvaterra, para onde me dirigi primeiro. Assim, me dei conta de que este fenômeno não tinha como único motivo o apelo turístico, já que, no Marajó, somente durante o mês de Julho existe um fluxo de visitantes considerável. Juntei a isto a lembrança de que, quando criança, gostava de acompanhar com o olhar as curvas dos traços marajoaras, que me provocavam a imaginação. A atração do olhar, provocado pelos traçados marajoaras são descritos por muitos autores, entre eles, Frade (2003) e Schaan (2009). A meu ver, uma descrição bastante aproximada tanto do que se pode interpretar da representação como da sensação que há em um grupo18 de desenhos (em particular) – que está presente, talvez na maioria, da cerâmica arqueológica do Marajó – seria a infinitude absoluta, como em “Carta Sobre o Infinito”, de Spinoza (1983)19

. Frade descreve o efeito provocado pelos desenhos marajoaras em tom menos poético-filosófico:

A visualidade marajoara exibe um movimento que oscila entre esses planos bi e tridimensionais. [...] a intensidade dos movimentos lineares provoca uma sensação vertiginosa. O efeito é obtido pelos circuitos sinuosos e estreitos que compõem uma espécie de labirinto. Os desenhos levam o olhar a descrever o percurso ondulante que segue desde os desenhos mais

16 Entre os “estabelecimentos comerciais” incluo as casas comuns que vendem produtos anunciados

em pequenos letreiros e, muitas vezes, expostos nas janelas.

17 Localmente, a população se refere à foz do rio Camará somente por “foz do rio”. 18

Este agrupamento uma compreensão intuitiva.

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Para Spinoza há dois infinitos: um que não é constituído por partes e, portanto, não pode ser dividido e outro que é constituído por partes. Um só pode ser compreendido a partir do intelecto e o outro – também – pode ser imaginado.

amplos até os menores volteios. [...] O marajoara se fez como uma “op-art”, pela saturação ótica e intensa movimentação (FRADE, 2003, p. 115 e 116).

Refletindo sobre a continuidade do emprego desses desenhos tanto no Marajó quanto fora dali, pareceu-me surpreendente que ainda hoje os estilistas e outros artífices adotem os traçados marajoaras em suas produções, ou seja, concepções artísticas de populações há muito extintas, atribuindo-lhes valor e atenção que, nem mesmo a arte produzida por grande parte dos povos extintos, assim como a de outros ainda existentes, conseguem alcançar.

2.1.2 Breve Etnohistória sobre os Marajoaras e sua Cerâmica

Diferente do sugerido pela reportagem da Folha de São Paulo, por ocasião da morte de Betty Meggers20, as pesquisas arqueológicas – pré-históricas e pré- colombianas – na Amazônia, bem como, outras referentes à organização social de seus povos são de longa data. São muitos os autores que, como Ferreira (2009), Neves (2000) e, citados por este, Barreto (1992); Prous (1992) e Mendonça de Souza (1991), defendem que a arqueologia brasileira teria nascido, praticamente, em contexto amazônico e à época da instalação do império português no Brasil. Porém, sobre esses estudos, Barreto (2000, p.33)21 adverte: “Há 500 anos que estes restos materiais têm sido encontrados, estudados e interpretados. Há 500 anos que estes restos têm sido a matéria-prima para a construção de um passado pré-colonial brasileiro”. Contudo, a mesma autora também ressalta que “a perspectiva colonial, do europeu branco explorando um passado exótico e distante, predominou até a institucionalização da arqueologia dentro de museus e centros de pesquisa científica, a partir do século XIX” (idem). Disto se pode perceber a influência das visões de mundo de grande parte dos pesquisadores, bem como o contexto social e a influência política sob as quais estavam submentidos.

Os relatos de historiadores e outros cientistas, como Baena (1838), Couto de Magalhães (1874) e, citados por estes: Alexandre de Humboldt (de 1799 a 1804), Ferreira Penna (1871), Frederick Hartt (1871), entre outros, também, revelam que

20 “Betty Meggers (1921-2012): “Mãe” da Arqueologia Amazônica”. Folha de São Paulo (06 jun. 2012

– on-line).

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