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Patrimônio histórico cultural do arquipélago de Marajó: diálogo e disputa entre suas representações

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE ADMINISTRAÇÃO, CIÊNCIAS CONTÁBEIS E TURISMO CURSO DE TURISMO

EDNEZ GOMES DA GLÓRIA

O PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL DO ARQUIPÉLAGO DO MARAJÓ, PARÁ: DIÁLOGO E DISPUTA ENTRE SUAS REPRESENTAÇÕES

NITERÓI 2013

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EDNEZ GOMES DA GLÓRIA

O PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL DO ARQUIPÉLAGO DO MARAJÓ PARÁ: DIÁLOGO E DISPUTA ENTRE SUAS REPRESENTAÇÕES

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Turismo da Faculdade de Administração. Ciências Contábeis e Turismo, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em turismo.

Orientadora: Prof. Dra. Helena Catão Henriques Ferreira.

NITERÓI 2013

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O PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL DO ARQUIPÉLAGO DO MARAJÓ, PARÁ: DIÁLOGO E DISPUTA ENTRE SUAS REPRESENTAÇÕES

POR

EDNEZ GOMES DA GLÓRIA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Turismo da Faculdade de Administração. Ciências Contábeis e Turismo, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em turismo.

___________________________________________________________________ Prof. Dra. Helena Catão H. Ferreira

Orientadora.

___________________________________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Hamilton Da Silva Barra

Convidado PUC-RJ

___________________________________________________________________ Prof. Me. Manoela Carrillo Valduga

Departamento de Turismo - UFF

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Dedico este trabalho ao povo do Marajó, filhos da cobra-grande, povo das águas, povo que espera...

À princesa mais linda do mundo, minha mãe Maria Bragança por me ensinar a força e a coragem, essenciais a toda mulher.

Aos meus filhos Ludianne, Edson, Lucianne e Luciana que, requeridos à inversão de papéis, me deram suporte para terminar o curso de turismo. A estes dedico também meu amor infinito.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos os bons professores que tive na vida, pois conseguiram me motivar ao aprendizado formal. Entre estes, um agradecimento especial a minha primeira professora, e prima, Rosária Serra.

À minha orientadora, Helena Catão, por sua paciência, incentivo, amizade, serenidade, comprometimento e por tantos outros belos adjetivos. A Sérgio Barra – um ser maravilhoso que, embora não me conhecesse, dedicou seu tempo ao meu trabalho. Sérgio e prof. Helena, vocês são pessoas confiáveis, preenchidas com o teor da frase que, acredito, foi pensada por Sócrates, porém dita por meu amigo Giamma: “confiáveis são aqueles que fazem teu cérebro trabalhar”. Agradeço também aos professores do curso de turismo da UFF, em especial, àqueles de convívio mais próximo através do desenvolvimento de projetos, como a professora Manoela Valduga e o professor Eduardo Vilela. Também merece agradecimento especial o professor Aguinaldo César Fratucci, que incentivou minha pesquisa. Cabe lembrar, ainda, a, então, estudante de matemática da UFF Silvia Maria, professora de matemática, dos tempos de pré-vestibular.

Ao antropólogo Raimundo Heraldo Maués, que solicitamente me enviou um de seus valiosos artigos.

A minha família, a começar pela minha mãezinha, por suas orações tão valorosas. Aos meus filhos queridos, pelo amor e auxílio. À minha tia Sebastiana Serra, um belo exemplo de mulher. Aos meus irmãos, tios, sobrinhos, primos, enfim, a toda a minha família gigantesca.

Aos amigos do Marajó, que tão solicitamente auxiliaram na pesquisa deste trabalho, em especial à Zezé e ao tio Tacica. Sra. Maria José e Sr. Otacir Gemaque, oficialmente. Ao diretor do Museu do Marajó, Sr. José Euzerbeto e sua esposa Sandra. Aos meus amigos de infância que em tempos de pesquisa me receberam com todo o amor e carinho do Marajó, o nosso mundo.

Aos meus amigos da UFF: os de sempre, os de ontem e os de amanhã. Especialmente a Daniele de Assis, a Izadora Montez e o Raphael Giammatey.

Por fim, agradeço a AMAM-Marajó, em especial ao Rui, que me auxiliou prontamente o contato.

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Marajó ia se esbatendo, se afundando na noite, morno, misterioso, escuro como jacaré encalhado num balcedo. Do outro lado, subindo nas águas em que a curicaca se embalava, a terra geral, a terra grande, ressonando na lonjura, país de ouro enterrado.

Dalcídio Jurandir.

Chove nos campos de Cachoeira E Dalcídio Jurandir já morreu [...]

Carlos Drummond Andrade

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Localização do Arquipélago e Ilha do Marajó. Figura 2 - Cachoeira do Arari – Localização, área e planta. Figura 3 - Igreja da Matriz e Praça da Independência. Figura 4 - Fazenda às margens do rio Arari.

Figura 5 - Paisagens marajoaras.

Figura 6 - Fachada e parte interna do edifício Moreira, RJ e IB, em São Paulo. Figura 7 - Igaçaba arqueológica sendo usada pela população local.

Figura 8 - Marajoaras fazendo panelas de barro. Figura 9 - Ex-voto no Túmulo de Giovanni Gallo. Figura 10 - Fachada d'O Museu do Marajó. Figura 11 - Recepção do Museu do Marajó.

Figura 12 - Seção Arqueológica do Museu do Marajó. Figura 13 - Tangas e caretas marajoaras.

Figura 14 - Computador "Pescaria da Saúde".

Figura 15 - Imagem antiga pertencente ao acervo do Museu do Marajó. Figura 16 - Desenhos marajoaras.

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RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar as representações sociais e as disputas em torno da cerâmica marajoara, considerada como um dos maiores patrimônios histórico-culturais do arquipélago do Marajó-PA. Neste sentido, coube avaliar como tem se construído a cerâmica arqueológica no debate científico, no qual sua importância remonta a origem do homem amazônida e, também, guarda uma linguagem iconográfica. Por outro lado, seu valor artístico tem determinado outros tipos de abordagem, que vão desde sua valorização pela beleza dos traçados e pela representação de uma cultura, aos interesses mercadológicos e turísticos, configurando-a como um artefato cobiçado nacional e internacionalmente. Para a população do Marajó, de onde a cerâmica se origina e se atualiza, esta representa um forte elemento identitário que, articulado com a crescente visibilidade turística da região, aponta para a possibilidade de projetos de desenvolvimento sociocultural local.

Palavras-Chave: Marajó, cerâmica marajoara, Museu do Marajó, população

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RESÚMEN

Este estudio tiene como objetivo analizar las representaciones sociales y los conflictos alrededor de la cerámica marajoara, que es uno de los mayores patrimonios histórico-culturales del archipiélago de Marajó-PA. En este sentido, fue evaluado cómo se ha construido la cerámica arqueológica en el debate científico, en lo cual su importancia remonta a la origen del hombre amazónico y, también, guarda un lenguaje iconográfico. Por otro lado, su valor artístico se le ha dado otros enfoques, es decir, desde su valoración por la belleza de los trazos y por la representación de la cultura, hasta los intereses comerciales y turisticos, que la configura como un artefacto codiciado a nivel nacional e internacional. Para la población de Marajó, donde la cerámica se originó y se actualiza, esta representa un fuerte elemento de identidad que, junto con la creciente visibilidad turística de la región, apunta a la posibilidad de proyectos de desarrollo sociocultural local.

Palabras Clave: Marajó, cerámica marajoara, Museu do Marajó, población

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1 O MARAJÓ E A ILHA DO MARAJÓ ... 20

1.1 CACHOEIRA DO ARARI: DADOS GEOGRÁFICOS E CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO ... 22

1.1.1 Estrutura Urbana e Diversidade Sócio-espacial ... 24

1.2 TUDO É ÁGUA ... 31

2 A (DES) CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO MARAJOARA ... 34

2.1 UM ARQUIPÉLAGO DE HISTÓRIAS E PATRIMÔNIOS ... 36

2.1.1 A Função Estética da Cerâmica Marajoara ... 37

2.1.2 Breve Etnohistória sobre os Marajoaras e sua Cerâmica ... 40

2.1.2.1 A Pesquisa de João Barbosa Rodrigues (1842-1909) ... 42

2.1.3 O Caboco e o Caboclo Marajoara ... 50

3 A (RE) CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO MARAJOARA ... 65

3.1 A NOVA MUSEOLOGIA PARAENSE: GALLO E O MUSEU DO MARAJÓ ... 66

3.1.1 Os Novos Jesuítas Na Amazônia ... 68

3.1.1.1 O Homem que Implodiu ... 70

3.2 PARA QUEM TEM OLHOS NA PONTA DOS DEDOS ... 73

3.2.1 Visitando o Museu ... 77

3.3 O MUSEU DO MARAJÓ E CERÂMICA MARAJORA: PATRIMÔNIOS (I) MATERIAIS DO MARAJÓ ... 86

4 SOBRE O TURISMO NO MARAJÓ E NO MUSEU DO MARAJÓ ... 94

4.1 O TURISMO NO MARAJÓ E NO MUSEU DO MARAJÓ ... 96

4.2 MARAJÓ: PATRIMÔNIO DE UM TURISMO INSUSTENTÁVEL ... 101

4.3 CERÂMICA, MUSEU E TURISMO: ALGUMAS PROPOSTAS ... 104

4.4 SOBRE O TURISMO E O TURISMO NO MARAJÓ ... 110

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 112

REFERÊNCIAS ... 118

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INTRODUÇÃO

O objetivo deste estudo é analisar a cerâmica arqueológica do Marajó – a cerâmica “marajoara” – com sua influência na vida da população deste arquipélago, bem como suas representações enquanto “patrimônio cultural” em instâncias como sua preservação, a organização de museus, o turismo e sua importância histórica para a própria população do Marajó e do Brasil.

É importante destacar que não só a cerâmica marajoara representa a cultura atual povo do Marajó. Contudo, acredito que ela seja um de seus elementos mais representativos, já que carrega elementos, como o nome “marajoara”, pelo qual, e com o qual, a população nativa se identifica. Este argumento considera a similaridade que há entre os outros elementos da cultura marajoara e da cultura da região amazônica em geral.

O foco deste trabalho se volta para o “Museu do Marajó”, instituição que possui um acervo representativo da cultura material das populações nativas do Marajó, assim como resquícios do legado deixado por seus ancestrais indígenas. A estes considerarei como elemento primeiro e, portanto, principal responsável pela atual construção cultural daquele espaço.

Um fator determinante de motivação deste estudo é a crença no efeito abrangente da participação da população nativa e dos ceramistas no processo de organização e preservação do museu local, para o que pode contribuir um maior conhecimento sobre as pesquisas arqueológicas atuais. Nesse sentido, a produção cerâmica poderia ser convertida em instrumento de educação e cidadania e, enfim, o patrimônio cultural do Marajó seria um dos provedores da tão sonhada melhoria na qualidade de vida de seus habitantes. Reconheço as dificuldades em atingir o objetivo proposto, porém, minha ambição maior é propiciar oportunidade aos possíveis leitores deste trabalho uma sensibilização sobre os assuntos aqui tratados. Acredito que o referido patrimônio possui magnitude nacional e, por isto, deve ser preservado por todos os brasileiros como possibilidade de conhecimento sobre uma importante parte de sua história. Entretanto, deve ser reconhecido fundamentalmente como um patrimônio cultural gerado por um povo, em um território – o Marajó. A cerâmica marajoara, hoje reconhecida e internacionalmente cobiçada, é também um elemento gerador de divisas ao estado do Pará, sendo amplamente utilizada em sua promoção turística. Entretanto, como outros

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patrimônios culturais, é submetida ao descuido e, por isto, sofre pilhagens constantes.

É notório que o patrimônio cultural tem sido tomado como relevante no estudo das identidades e do senso cultural de pertencimento. Portanto, buscarei oferecer a compreensão do patrimônio cultural marajoara como um dos tantos patrimônios existentes nas Amazônias brasileiras, porém, destacando o domínio que ele possui no que se refere a seu valor histórico e arqueológico. A pluralização do substantivo “Amazônia” revela minha anuência ao julgamento de estudiosos que, como Maúes (2011), recomendam o uso deste artifício quando se pretenda enfatizar a variedade física, biológica, cultural, étnica e social do espaço amazônico. Em reverência ao mesmo argumento, decidi pluralizar também o substantivo “Marajó” ao referenciar as mesmas e múltiplas características existentes na Amazônia marajoara, ainda mais especificamente, àquelas existentes na Ilha do Marajó/PA – espaço geográfico onde permanece grande parte do patrimônio sobre o qual versa o presente estudo. Esta tomada de partido deveu-se, parcialmente, aos muitos equívocos que encontrei em produções acadêmicas sobre temas diversos, porém, referentes ao território do Marajó, durante as pesquisas para a elaboração do presente trabalho.

Dos equívocos mais comuns, que acima aludi, descrevo a não distinção entre o arquipélago do Marajó e a Ilha do Marajó, conflitos quanto a geografia – agravados, talvez, pelo emprego (local) de um substantivo a lugares e ambientes distintos (Marajó, como exemplo) – além de muitos discursos embasados em interpretações que, a meu ver, nem sempre concordam com a semântica nativa, mas servem para inflamar discursos de movimentos e projetos que tem como foco a formação de identidades. Neste último, apresento a interpretação que se dá à fala local no que tange à palavra “caboco” tendo por base o sentido do termo “caboclo”, oficialmente registrado. Penso que tal interpretação tem sido frequentemente equivocada, pois existe uma distinção local entre essa e a outra, de significado nacional e com l. Na região do Marajó, a expressão “caboco”, quase nunca, está relacionada à miscigenação, mas unicamente à origem e ao modo de vida nativo. Isto é corroborado por outros regionalismos, derivados da palavra, para designar comportamentos e ações típicas do caboco: caboquice, acabocado e caboquiar, dentre outros. A palavra pode, ainda, ser tomada como sinônimo de rapaz, moleque, sujeito etc. Lembro, contudo, que, embora não tenha encontrado essa minha apreciação em outros relatos, a noção do termo caboco não deve ser considerado

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novo, dado que, encontrei em minhas investigações sobre o tema a proposta do Dicionário do Folclore Brasileiro (1954), onde o autor defende que ela é tradução das palavras caa-boc ou kari’boca, em Tupi, “o que vem da floresta” e “filho do homem branco”, respectivamente e que o caboclo, com l, teria origem em uma grafia equivocada da primeira. Teoria que faz sentido, tendo em conta o significado de

caboco, no Marajó.

Ainda sobre os equívocos que, suponho, se originem no desconhecimento da dinâmica regional marajoara, afirmo que são errôneas as alusões feitas ao Marajó através de referências à criação de búfalos, pois, embora seja fato que o contingente deste animal no arquipélago ultrapasse em quantidade o da população humana, esta cultura não se estende a todo o território, ou seja, não se encontra em todas as partes da “ilha dos búfalos”.

A aproximação com a literatura referente ao meu objeto de estudo me levou a muitas reflexões, principalmente em relação à objetividade científica, bastante enfatizada por meus professores durante o curso. Esta questão, por algum tempo me causou desconforto, tendo em vista minha intenção em desenvolver um tema muito relacionado com minha própria experiência de vida e, portanto, de minha familiaridade. No entanto, ao entrar em contato com as questões colocadas pelo antropólogo Gilberto Velho (2008) em seu texto “Observando o familiar” percebi que isto não era um impedimento. Assim, me baseio em sua argumentação de que há um envolvimento inevitável entre pesquisador e objeto investigado – o que, segundo ele, não constitui defeito ou imperfeição que inviabilize a validade científica do estudo, pois o que nos é familiar não necessariamente nos é conhecido. Velho ressalta, contudo, que deve ser feito um exercício de estranhamento permanente, por parte do pesquisador, diante daquilo que lhe é íntimo e que, por isto, a observação do familiar é um dos mais difíceis desafios da antropologia social.

Ainda em relação à base teórica da presente pesquisa, cito Da Matta (1992 p.2). O autor defende que todas as formas de conhecimento devem ser vistas como “leituras” do mundo social “que visam aprofundar o conhecimento do homem pelo homem; e nunca como certezas ou axiomas indiscutíveis e definitivamente assentados”. Da Matta esclarece, ainda, que, tomada por este prisma, uma autêntica Antropologia Social só pode ocorrer quando o pesquisador está plenamente convencido de sua ignorância em relação à sociedade estudada. Ainda neste raciocínio, o autor argumenta, que:

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O conhecimento do homem sobre si mesmo é variado, moral e socialmente equivalente e, por tudo isso, infinito na sua profundidade e sua grandeza. Pois o homem é tudo o que se manifesta na sociedade e na sociabilidade, seu retrato completo sendo altamente problemático e deficiente (DAMATTA, 1993, p.3).

A decisão por um objeto de minha esfera familiar deveu-se, em primeiro lugar, à necessidade que sinto em unir minha fala à daqueles que defendem melhorias para sociedades do arquipélago do Marajó, meu lugar de origem. Para isto, escolhi abordar o patrimônio arqueológico do arquipélago, legado histórico-cultural que sempre percebi como um dos elementos centrais de nossa identidade marajoara. Levando em conta que as comunidades dos Marajós são separadas por limites geográficos – políticos e naturais – e que estes contribuem para que seja extrema a diversidade social dali, penso ser possível fazer uma correspondência entre a identidade marajoara e o significado do Batin, em Geertz (1997):

Consiste no fluxo impreciso e mutante dos sentimentos subjetivos, percebido diretamente em toda sua proximidade fenomenológica, mas, pelo menos em suas raízes, considerado idêntico para todos os indivíduos cuja individualidade ele faz desaparecer (GEERTZ, 1997, p.92).

A identidade marajoara é gerada e regida pela interação homem-ambiente e correlacionada às particularidades geográficas, históricas e naturais do Marajó. Sendo assim, o sentimento de pertencimento ao lugar deve ser entendido como um sentimento simbiótico e transcendental que confere às relações interpessoais e a todo indivíduo dali a identificação e o reconhecimento mútuo, representados pelos chamamentos “parente”, “sumano”, “maninho”, “mano” e outros nomes que encerram o laço fraternal que une os marajoaras.

Ao dar partida à escrita deste relatório encontrei muitas dificuldades, entre elas, a necessidade de utilizar o trabalho científico de outros autores para validar minhas explicações sobre informações que sempre tive como corretas. Juntou-se a isto a limitação que senti em dar fluidez ao meu relato, por impessoalizar meu universo familiar, conforme o costume da escrita acadêmica. Acudiu-me o argumento, dado pela orientadora deste trabalho, de que é permitido usar a primeira

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pessoa do singular para, nas palavras dela, “falar mais antropologicamente”. Proposta que, então, adotei.

Em relação ao procedimento metodológico, optei por me aproximar dos estudos antropológicos, com inspiração etnográfica, por entendê-los como a forma de abordagem mais adequada às discussões pretendidas. Realizei meu trabalho entre dezembro de 2011 e março de 2012 baseando-o em entrevistas em profundidade semiestruturadas, já que, minha intenção era abarcar as mesmas questões em diferentes pontos-de-vista.

No município de Cachoeira do Arari, onde está o Museu do Marajó – MdM, foram entrevistados os principais membros da diretoria desta instituição, pessoas diretamente envolvidas na produção de cerâmica e o prefeito da cidade. Entrevistei, ainda, sete pessoas que compunham distintos grupos de visitantes do MdM. Estas pessoas eram oriundas de regiões próximas e turistas nacionais, trazidos por agentes de turismo que atuam em municípios vizinhos. Não houve dificuldade para abordar os visitantes, já que me foi permitido o artifício de “puxar conversa” com eles e, por vezes, acompanhá-los como guia. Realizei, também, observação participante, já que faço parte da cena investigada. Conversei, também, em caráter informal, com 16 moradores de Cachoeira do Arari, residentes na zona rural e urbana. Estes eram, a maioria, pessoas adultas, a partir de 50 anos e idosos. Ainda neste município, conversei com 09 pessoas conhecidas, residentes na sede do município e em áreas distantes desta, porém pertencentes ao mesmo.

Em Belém, entrevistei um dos representantes da Associação dos Municípios do Arquipélago do Marajó (AMAM), instituição com sede na capital paraense e que, então, representava treze dos municípios dos dezesseis municípios do arquipélago.

Todos os entrevistados, acima, foram informados sobre o caráter da pesquisa e tiveram suas entrevistas gravadas, autorizando, por escrito, o uso das informações prestadas. Quanto às conversas informais, minha pretensão era confirmar dados existentes em publicações acadêmicas e oficiais, bem como anotar elementos referentes ao cotidiano e às compreensões locais sobre o tema abordado. Sendo assim, utilizei meu diário de campo para anotar alguns julgamentos e preferi não gravar entrevistas, pois temi possíveis constrangimentos por parte dos personagens envolvidos.

Durante minha estada em Belém, fiz diversas tentativas de contato (telefônico e presencial) com o Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG, contudo, não obtive

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resposta. Contatar esta instituição me pareceu importante, já que a mesma desenvolve pesquisas arqueológicas, no Marajó, desde o século XIX. Além disto, é reconhecida como a maior guardiã da cerâmica arqueológica marajoara, possuindo, segundo Amorim (2010) uma coleção de duas mil cento e sessenta e sete peças. Vale, também, ressaltar que a gestão passada do MPEG e uma das atuais coordenações de pesquisa é a mesma que administrou o MdM após a morte de Giovanni Gallo, criador do nosso museu, e que este órgão tem apoiado a produção da cerâmica marajoara (em Belém) para fins turísticos, bem como a utilização de seus traçados em artigos de moda e design.

Enquanto permaneci em meu campo de estudo e, posteriormente, durante a análise dos dados coletados, busquei considerar as ideias de Demo (2001) quanto à pesquisa e às informações qualitativas. Este autor defende que os “fenômenos qualitativos precisam ser captados qualitativamente, sem perder de vista sua formalização implícita no método do campo científico” (p.10). Demo entende a pesquisa como “diálogo inteligente e crítico com a realidade, tomando como referência que o sujeito nunca dá conta da realidade e que o objeto é sempre também um objeto-sujeito” (p.10). Assim, os dados não são apenas colhidos, mas também contextualizados pelo pesquisador, o que lhe permite reconstruí-los, interpretá-los e compreender a realidade inserida neles, tendo-se como parte integrante dela e “não como instância que se lhe sobrepõe” (p.10).

Demo (2001) reflete que a pesquisa é estritamente relacionada à aprendizagem, uma vez que a construção do conhecimento ocorre a partir da reformulação de teorias e conhecimentos existentes. Assim, pesquisar e aprender são eventos simultâneos, visto que o pesquisador pode atingir níveis de intensidade específicos do fenômeno avaliado – o que será percebido, entre outros, em seu “questionamento reconstrutivo”. O autor considera ser este o diferencial da pesquisa, uma vez que envolve noções teóricas e práticas. Segundo Demo, o questionamento reconstrutivo consiste na reconstrução do conhecimento e no aprender a aprender por meio do desenvolvimento da consciência e habilidade autocrítica, para além da crítica.

Em relação a algumas dificuldades que encontrei em minha pesquisa, tanto em âmbito prático quanto teórico, coube fazer, aqui, uma observação que acredito ser válida para o presente contexto de ensino/aprendizagem:

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É amplamente aceito o argumento de que, ao longo da história, a percepção holística do objeto investigado tem sido a base evolutiva do pensamento humano e da filosofia. Importantes pesquisas de que temos notícia têm como fator comum a abordagem integral dos objetos investigados. Oposto disto, a fragmentação do conhecimento gerou um alto nível de especialização, porém, impôs limites ao avanço da ciência. As consequências desastrosas deste evento causaram discussões na academia, a partir das quais se chegou a conceitos, como o da interdisciplinaridade. Contraditoriamente, o ensino/aprendizagem da iniciação cientifica segue ocorrendo a partir do desmembramento e tomada de uma única parte do objeto de estudo inicial. Este método ordena o desenvolvimento acadêmico do restrito ao amplo, enquanto que, pela lógica holística, abarcar o existente para, posteriormente, esmiuçá-lo seria um exercício mais proveitoso.

Embora tenha havido um esforço para trabalhar com os limites do que permite a atual metodologia de pesquisa e relatório acadêmico, meu trabalho tendeu a ser interdisciplinar. Em muitos aspectos isto se deve a minha formação, porém, deve-se também à necessidade em abordar a cerâmica marajoara a partir de seu território de origem – o Marajó – e, por se tratar de um “patrimônio cultural”, portanto, pertencente a uma população.

Tendo em vista as incorreções que relatei, procurei fazer uso do maior número possível de fontes oficialmente creditadas para apresentar informações e dados confiáveis. Aventurei-me, então, em pesquisas históricas e através das quais encontrei uma coleção de obras raras, disponibilizadas, entre outros, na biblioteca virtual do senado brasileiro. Procurei fundamentar nelas algumas de minhas análises e, por vezes, transcrever alguns de seus trechos. A comparação entre a literatura atual sobre a origem do homem na Amazônia e alguns ensaios científicos datados do século XIX parece indicar de que muitas das teorias arqueológicas tidas como atuais já haviam sido pensadas. E, sendo este o caso, estaríamos vivenciando o atraso da ciência no Brasil, bem como o desperdício de recursos públicos. Somado a outros fatores, a causa disto, poderia ser o costume brasileiro em dar preferencia à ‘produtos’ importados, que, como sabemos, têm gerado perdas históricas em todos os âmbitos de nossa sociedade. Une-se a todo o resto, o desconhecimento que muitos de nossos pesquisadores têm sobre o Brasil, a tal ponto de incorrerem em equívocos naquilo que deveria estar em sua formação básica: nossa geografia.

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Atentar para estes pontos me pareceu ser, mais que uma agudeza de pesquisador, um exercício de cidadania.

Em relação à estrutura, este trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro concentra o esforço de contextualização histórica e geográfica da cidade de Cachoeira do Arari, onde está o MdM. Para isto, procurei ter em conta a dificuldade gerada tanto pela complexidade da geografia, auxiliada pela descontinuidade terrestre, quanto pelas nomenclaturas dos locais e interpretação da população nativa sobre seu território. Assim, busquei estabelecer um percurso que destaca, em sequência, o arquipélago do Marajó, a Ilha do Marajó e o município de Cachoeira do Arari com sua sede, de mesmo nome. São abordadas, ainda, algumas das características históricas e socioculturais, não só dos habitantes de Cachoeira, mas de todos os outros Marajós. Isto se deve a que estes aspectos são extremamente influenciados pelas condições climáticas e geográficas, sendo similares e, na maioria das vezes, comuns a todo o arquipélago – afetando diretamente o turismo dali.

O segundo capítulo aborda os bens culturais marajoaras representados pela cerâmica e pelo nome “marajoara” em uma perspectiva de desconstrução, em relação à população do Marajó e reconstrução em âmbito acadêmico/científico. Para tanto, procurei fazer uma abordagem etnohistórica apoiada na pesquisa de João Barbosa Rodrigues, cientista brasileiro que realizou importantes estudos na Amazônia. São trazidos também relatos da população nativa, registrados em trabalhos acadêmicos, onde estão presentes os mesmos elementos etnográficos. Estes confirmam a perpetuação de referenciais culturais que podem servir, entre outros, para legitimar o direito que a população do Marajó tem em relação à propriedade dos bens culturais que formam seu patrimônio.

O terceiro capítulo apresenta uma tentativa de reconstrução e “devolução” do patrimônio marajoara à população do Marajó, assim de reconhecimento deste pela academia e por outros âmbitos de poder. Deste modo, surge o personagem que primeiro se empenhou nisto: Pe. Giovanni Gallo, o criador do Museu do Marajó. A correlação entre autor e obra tornou necessário apresentar um pouco da história do padre e o contexto ao qual chegou ao Brasil e ao Marajó, onde viveu até sua morte. Procuro, então, descrever o MdM, como forma de demonstrar sua importância e, do mesmo modo que com a cerâmica, apresentar seu aspecto imaterial. Assim, procuro

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defender a necessidade de reconhecimento desses dois bens como patrimônios culturais pertencentes, sobretudo, à população do Marajó.

O quarto e último capítulo traz um panorama do turismo no arquipélago do Marajó, nos municípios que deveriam ser indutores do turismo na região. Assim, procuro situar Cachoeira do Arari e o Museu do Marajó neste contexto, apresentando propostas para que o turismo venha a ser um instrumento de sustentabilidade da população nativa.

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1 O MARAJÓ E A ILHA DO MARAJÓ1

“O que é o Marajó?

É uma coisa linda, é uma parada! A gente pode colecionar todos os termos que indicam maravilha, entusiasmo, encanto, admiração mais um pingo de mistério; depois mistura-os num liquidificador para conseguir algo que não pode ser definido, simplesmente por que é fora de série.

A peculiaridade do Marajó está mesmo neste fato de ser algo diferente, único. O raro turista que chega aqui, sempre repete isso: Nunca vi uma coisa dessas!” (GALLO, 1996, p.25).

Ao morar e conhecer várias regiões do Brasil – inclusive do Pará – percebi (e percebo) o desconhecimento das pessoas sobre o Marajó, independente de classe social. É recorrente que muitas daquelas que conhecem um pouco o lugar acrescentem: “Ah! Da ilha dos búfalos!” e, logo, encontrem um bom tema de conversa. No inicio não dava importância a isto, mas, com o tempo, me encorajei a explicar algumas questões – inclusive que o Marajó é um arquipélago.

Conforme já aludi, a expressão “ilha do Marajó” é utilizada para fazer menção tanto ao arquipélago do Marajó quanto à ilha de mesmo nome que pertence a ele.

Situado no estado do Pará, o arquipélago do Marajó é composto por, aproximadamente, 3.000 ilhas e ilhotas sendo a ilha do Marajó a principal (Figura 1). Por sua extensão, 104.000 km², e por sua posição geográfica privilegiada, é considerado o maior arquipélago fluviomarítimo do mundo. Sua população é de cerca de 500.000 habitantes (IBGE, 2010) e os 16 municípios que fazem parte deste arquipélago formam uma mesorregião geográfica que, por sua vez, é composta por três microrregiões: Arari, Furo de Breves e Portel. O clima predominante é o equatorial quente e úmido com pequenas variações mensais e anuais (25º a 29º). A umidade relativa do ar é constante durante todo o ano e apresenta valores sempre maiores que 80%.

Quanto à ilha do Marajó, está localizada no delta do rio Amazonas e possui uma população de 350.000 habitantes (IBGE, 2010), aproximadamente. É formada por 12 municípios nucleares e possui uma extensão territorial de 49. 606 Km². Limita-se ao Norte com o oceano Atlântico, ao Sul com o rio Pará, a Oeste com o rio Amazonas e a Leste com a baía do Marajó. A foz do rio Camará, principal porto de entrada da ilha, dista cerca de 70 km de Belém, em linha reta. O trajeto fluvial até ela

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As fontes dos dados utilizados na construção deste texto estão devidamente referenciadas ao final deste trabalho.

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se dá em cerca de três horas e o aéreo, em média, vinte minutos. À época da colonização, a Ilha Grande de Joanes, antigo nome da ilha, foi constituída capitania hereditária – para os donatários da qual foi criado o título de Barão de Joanes, sendo Antônio de Souza de Macedo o primeiro a recebê-lo, em 1665.

A distinção entre os Marajós (arquipélago e ilha) é de meu campo familiar, contudo, encontrei referência histórica que a corrobora na obra intitulada “Ensaio Chorográphico Sobre a Província do Pará”, onde autor descreve a, então, Comarca de Marajó e explica o equívoco, que já desde a época existia.

Esta comarca compreende toda a Ilha Grande de Joannes; a qual nos tempos mais remotos chamava-se geralmente Ilha dos Nheengaibas por serem de línguas diferentes e dificultosas as muitas cabildas gentílicas que nela tinham habitáculo. Esta denominação caiu logo em desuso, e passou para a de Ilha Grande de Joannes, nome apelativo de uma dessas cabildas, e tem permanecido simultaneamente com o nome de Marajó, o qual sendo privativo da parte austral da ilha o vulgo o faz transcendente a toda ela sempre que a anuncia. (BAENA, 18332).

A distinção que descrevi acima pode parecer irrelevante, já que nós, marajoaras, sempre nos referimos ao Marajó como um todo: “o Marajó”, “Ilha do Marajó”, “aqui no Marajó”, “Lá no Marajó” etc., ficando a compreensão do espaço a que se refere à fala inserida no cerne da conversa. Porém, me parece ser uma informação importante para aqueles que desenvolvem pesquisas acadêmicas sobre a região. Quanto à escrita deste texto, tem sido um incômodo ter que escrever “arquipélago” sempre que me refiro ao mesmo e, por isso, tenho pesquisado sobre o uso correto entre: “de Marajó” ou “do Marajó”, a fim de fazer mais facilmente, na escrita, a distinção. Contudo, como até agora não encontrei argumento convincente, para simplificar o tema, adotarei meu uso nativo. Sendo assim, proponho que o leitor assim o compreenda e, caso necessite, também use meu raciocínio: ao escrever somente “Marajó”, deverá ser entendido como “originário do arquipélago Marajó” ou que estou me referindo ao arquipélago como um todo. Quando for necessário restringir o espaço à ilha, escreverei o designativo “ilha do Marajó”.

Considerando a complexidade geográfica, mencionada na introdução deste relato, é importante destacar que ela contribui, também, para a subdivisão do Marajó

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Esta obra data de 1833, contudo, a edição a que tivemos acesso foi publicada, em 2004, pelo Senado Federal, por seu “valor histórico e cultural e de importância relevante para a compreensão da história política, econômica e social do Brasil e reflexão sobre os destinos do país”.

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em duas paisagens distintas: Marajó das matas – ou das florestas – e Marajó dos campos. Neste, situa-se o espaço central do presente estudo – a microrregião do Arari. Mais especificamente, a cidade de Cachoeira do Arari, onde está o Museu do Marajó.

Figura 1 Localização do Arquipélago e Ilha do Marajó. Fonte: EMATER/PA, 2012 (Adaptado).

1.1 CACHOEIRA DO ARARI: DADOS GEOGRÁFICOS E CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO3

Situado na Ilha do Marajó, o município de Cachoeira do Arari é composto por diversas fazendas e vilas que, em geral, margeiam seus rios e lagos navegáveis. Sua extensão territorial tem início na Foz do rio Camará e se estende pelos 118 km do principal rio da região – o rio Arari – ocupando boa parte do lago de mesmo nome e nascente deste. A maior parte de seus 3.101,743 Km² está localizada no chamado Marajó dos Campos e sua população residente é da ordem de 20.443 (IBGE, 2010). Assim como no contexto geral da Amazônia brasileira, a maioria desta população é mestiça e mais da metade reside em área rural.

3

Os dados populacionais e econômicos utilizados na construção deste texto pertencem ao senso IBGE (2010), já a descrição da cidade e das populações existentes no município, bem como as informações de como chegar são aspectos observados em campo.

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Tomando-se a capital paraense como ponto de partida, a sede municipal está à margem direita do rio Arari. Pode-se chegar até ela através da conexão Belém/Foz do rio Camará/Cachoeira ou em barco, direto da capital. A primeira opção é possível duas vezes ao dia em navio que parte da Estação das Docas, no centro da cidade (às 7h 30min e 13h 30min) ou por ferry boat a partir do bairro de Icoaraci. Do ponto de chegada destes – a Foz do rio Camará – é necessário utilizar outro meio de transporte, geralmente ônibus ou van.

O local de partida da segunda opção é o porto Vasconcelos, no bairro Cidade Velha, que, entretanto, ocorre somente duas vezes por semana (segundas e quintas-feiras). As viagens duram, respectivamente, cerca de quatro e seis horas.

Do ponto de vista estrutural, a cidade é carente em seus elementos básicos. Esta situação é agravada pelo rigor do inverno, quando o trajeto a partir da foz do rio Camará, se torna difícil e, às vezes, impossível.

Em âmbito municipal, o IBGE (2010) aponta como principais atividades econômicas a pecuária bovina e bubalina e a pesca, respectivamente. Uma pequena produção agrícola também é classificada como fator relevante, sendo a produção de mandioca e abacaxi as mais expressivas. O setor de serviços encontra-se em fase embrionária.

Para fazer referência às fazendas e vilas do município, a população nativa emprega seus respectivos nomes (Tuiuiú, Caracará, Retiro-Grande etc.) abreviando para “Cachoeira” a denominação municipal e restringindo, a mesma, à sua sede. Isto ocorre também em relação às suas adjacências dos outros municípios4.

O processo de formação do município de Cachoeira deu-se a partir da incursão das ordens religiosas à região do Arari. Madaleno (2011) registra a presença dessas missões – no arquipélago de Marajó – desde o início do século XVII, destacando as ordens de Nossa Senhora das Mercês e Companhia de Jesus. A colonização do território marajoara e os engenhos e fazendas de gado ali existentes, provavelmente tiveram a mesma origem.

Baena (1833) relata que a então Freguesia de Cachoeira, fora fundada pelo sesmeiro e Capitão-Mor André Fernandes Gavinho, em 1747, sendo seu nome uma alusão à cachoeira que havia nos arredores de onde hoje se encontra a sede municipal. Da categoria de Freguesia até chegar a atual formação

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Esta informação parece ser importante, sobretudo, aos trabalhos de inspiração etnográfica, já que pode prejudicar as interpretações das falas nativas.

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administrativa, o município de Cachoeira passou por um sem-número de categorias, divisões e anexações territoriais, conforme descrito em seu histórico municipal, no IBGE (2012). A obra de Baena ilustra, ainda, o início da mistura cultural e da esparsa ocupação do município de Cachoeira, característica da qual trato mais adiante: “Formam o número dos moradores 130 brancos, 2.802 indianos e mestiços e 518 escravos; os habitáculos desta gente estão dispersos por diferentes lugares do distrito paroquial.” (1833 p. 276).

1.1.1 Estrutura Urbana e Diversidade Sócio-espacial

Só vivendo aqui, em contato com a realidade do dia-a-dia, é possível descobrir o que de fato é novo e exclusivo. Não somente a natureza (bichos e flores que se encontram em toda parte), é o relacionamento, uma dimensão nova, uma espécie de trama de conexões misteriosas que associam homens e coisas, formando um mundo à parte, fora dos padrões, das categorias gastas e habituais. (GALLO, 1996, p.25).

A rua principal da sede de Cachoeira do Arari (Figura 2) margeia um trecho do rio Arari, acompanhando sua sinuosidade. A organização do espaço urbano corresponde à racionalidade estrutural, proposta por Andrade (2002) como característica do urbanismo colonial brasileiro. Assim, o traçado das ruas possui relativa disposição em xadrez e seu conjunto arquitetônico central é formado pela igreja matriz, o convento e a praça que os abriga. Nesta mesma praça estão localizados o único hospital municipal e também seu único Fórum.

Figura 2 Cachoeira do Arari – Localização, área e planta. Fonte: IBGE, 2010 e Plano Diretor Municipal (adaptado).

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O centro oficial da cidade de Cachoeira não é o mesmo que a população utiliza para realizar suas atividades comerciais e de lazer. A exceção a isto ocorre durante duas das principais festividades do município: o festejo de São Sebastião de Cachoeira e o Círio de Nossa Senhora da Conceição, padroeira municipal. Os dois eventos são importantes sob os pontos de vista cultural, religioso e econômico, já que atraem uma grande demanda de visitantes5, sobretudo regionais. Entretanto, a maior frequência de visitas ocorre durante a festa de São Sebastião, uma vez que o evento constitui uma coexistência entre o sagrado e o profano perpetrado nos moldes do Entrudo6, descrito em Germano (1999), congregando atividades comemorativas do costume regional, como a corrida de cavalo e a luta marajoara. A importância deste evento vem ganhado notoriedade em estudos referentes à identificação das potencialidades turísticas do município em questão e já foi reconhecido como patrimônio cultural do Pará. Contudo, a festa há muito tempo também gera conflitos entre a população cachoeirense e a igreja católica, que tenta modificar e até mesmo eliminar o festejo. Quando estive em trabalho de campo presenciei a insatisfação de alguns moradores com o padre do local, que, em seu sermão, teria feito analogia entre os romeiros-foliões e porcos.

O espaço público normalmente utilizado para a maioria das atividades da população é o espaço frontal à direita, a partir da Igreja Matriz (Figura 3) e até o mercado municipal, localmente chamado de “rua da frente”. Neste perímetro está a Praça da Independência e, ao seu redor, também a Prefeitura e o trapiche municipal, no qual ancoram as embarcações regionais de maior porte. Por abrigar grande parte dos estabelecimentos comerciais da cidade, a “rua da frente” é também o principal ponto de lazer noturno e de finais de tarde, já que a maioria das possibilidades de lazer, tanto para a população quanto para os visitantes, é desenvolvida em ambiente natural e durante o dia. Ainda na Praça da Independência, há uma das construções mais “curiosas” da cidade: o “Arco do Triunfo”7

(Figura 3) marajoara, marco do sesquicentenário do município e, certamente, da presença europeia na região. Segundo informações contidas no plano diretor municipal, a edificação data de 1983 (PLANO DIRETOR, 2009).

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A referida demanda é amplamente divulgada em meios virtuais oficiais e informativos, regionais e estaduais.

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Percepção e comparação minhas, pois não encontrei tal analogia em outros relatos.

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Denominação pessoal, já que nunca percebi a referência entre a construção e o Arco do Triunfo parisiense, por parte da população local.

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Figura 3 Igreja da Matriz e Praça da Independência. Fonte: Márcio Gemaque.

Entendo que seja importante ressaltar que, assim como nos outros Marajós, não é possível homogeneizar os aspectos socioeconômicos da população, dado que muitos de seus moradores vivem em regiões urbanizadas e dispõem dos recursos ofertados pelo avanço tecnológico. É possível, entretanto fazer uma descrição, ainda que superficial, de algumas das características das habitações comuns a maioria das existentes, tanto na região urbana quanto naquela considerada rural do município de Cachoeira. Fundamento a importância da descrição que farei no fato de que, sendo o município situado em região amazônica, seu espaço social foi – e é – influenciado por ocorrências históricas e naturais que contribuem igualitariamente para a existência de três populações nativas: a urbana (da sede municipal) e aquelas classificadas como rurais, representadas pelo lendário vaqueiro marajoara de gado e pelos chamados ribeirinhos. Penso também que a descontinuidade terrestre, característica do território marajoara, ao mesmo tempo em que torna sua geografia complexa, também pode auxiliar o entendimento da diversidade populacional dali.

A população da sede é formada pela mescla dos grupos sociais existentes no município, que, em geral, ocupam núcleos urbanos distintos. Outra das diferenças mais perceptíveis entre estes e os residentes na zona rural diz respeito às atividades exercidas, uma vez que a empregabilidade concerne, sobretudo, ao comércio e ao setor público. Entretanto, são intensas também as tarefas de pescadores, carpinteiros, e outros trabalhadores responsáveis pela manutenção da cidade. Entre

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os núcleos de maior destaque está o bairro do Choque, onde a pesca é a função majoritária dos residentes. O Choque está no ponto mais baixo da cidade, portanto, mais submetido às enchentes e com mais construções adaptadas ao período chuvoso. Muitos dos moradores da área rural possuem, também, residências na sede – para onde se deslocam durante as festividades, períodos de recebimento de soldos ou mesmo para tratamentos médicos. O resultado desta coexistência é perceptível na mescla de estilos formados pelas construções residenciais, pois apesar das usuais substituições de madeira por alvenaria, especialmente, nas áreas que não sofrem inundação no período chuvoso, a adaptação às demandas e às estéticas regionais é marcante.

Quanto ao “vaqueiro marajoara”, trata-se de parte da população cachoeirense, majoritariamente negra, residente nas fazendas de gado formada, sobretudo, por descendentes dos quilombos formados na região. O vaqueiro geralmente é habilidoso e dotado de traços culturais que, de tão marcantes, terminaram por arraiga-lo como elemento do folclore regional. É, ainda, o principal responsável pela extensa pecuária bubalina (marca da “ilha de Marajó”) da qual raramente é proprietário. A sustentabilidade econômica desses trabalhadores se dá por meio de pequenas áreas a eles destinadas, pelos proprietários das fazendas, para o cultivo agrícola e pecuário, normalmente, pelo sistema de meia8 e pelo escambo feito com comerciantes de animais da região, outros viajantes e com a população ribeirinha, nas quais são trocados produtos de fabricação e/ou cultivo próprio (leite, queijo, carne salgada, galinhas, porcos etc.) por farinha ou produtos trazidos da cidade. O pagamento recebido dos patrões, normalmente, tem sua maior parte poupada, pois lhes é permitido explorar a produção de leite de gado e lhes são designados alguns animais para alimento. Atualmente, a maioria dos moradores das fazendas é do sexo masculino, fato que me foi informalmente explicado por um dos moradores como decorrente da proibição dos fazendeiros com relação à presença de crianças nas propriedades, devido às leis de proteção às mesmas. Por isso, crianças e adolescentes vão estudar em Cachoeira, acompanhados de suas mães ou enviados à casa de parentes e conhecidos. Em se tratando de meninas há, ainda, a possibilidade de residência no convento da cidade.

8 A “meia” é um acordo no qual o proprietário da fazenda “cede” sua pastagem para o vaqueiro e, em

troca, e recebe uma parte da produção, que pode variar entre uma porcentagem e a metade do cultivo.

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São muito extensas as áreas ocupadas pelas fazendas de gado na região do rio Arari (Figura 4), porém, a sede das mesmas, frequentemente, está às margens deste. As construções localizadas na “beira do rio” são palafitas caneludas9

e interligadas por pontes de madeira que as abrigam das enchentes nos períodos chuvosos. Essas fazendas possuem traços que caracterizam tanto a “casa grande”, quanto a capela e as casas dos vaqueiros, como edificações de estrutura escravista do período colonial. Unem-se a tais traços, a posição estratégica da “casa grande” e a intitulação dos responsáveis pela supervisão das propriedades e aos seus donos – “feitores” e “brancos”, respectivamente.

O desmazelo aparente das construções das fazendas oculta relíquias do período pré-histórico e colonial da região do Arari, entre outros, coleções de cerâmica marajoara, altares jesuíticos nas capelas, porcelanas antigas e, sobretudo, resquícios do passado brasileiro que possui grande potencial de pesquisa para cientistas sociais e historiadores.

Durante minha pesquisa de campo conversei com empregados das fazendas que visitei e obtive a informação de que são comuns as visitações turísticas de brasileiros e, algumas vezes, também de estrangeiros, levados pelos proprietários das fazendas. Esta informação pode ser confirmada em propagandas turísticas e relatos de viagens em meio virtual e, ainda, por notícias de movimentos que tentam organizar o turismo rural no arquipélago – incentivados por organismos como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE/PA.

Figura 4 Fazenda às margens do rio Arari (Tuiuiú). Fonte: Acervo próprio.

9

Denominação regional para as casas de madeira suspensas por pilares com altura que varia de acordo com a necessidade. Algumas, durante o verão, parecem casas de dois andares cuja construção se iniciou pelo segundo piso.

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O terceiro grupo representante da população cachoeirense – o ribeirinho – vive

em casas relativamente isoladas ou vilas, que podem tornar-se inalcançáveis durante o inverno. Assim como o vaqueiro, o ribeirinho pratica um pequeno cultivo agrícola e pecuário, complementado pelo extrativismo vegetal e animal, embora a caça não seja uma prática corriqueira, sendo mais comum recorrer a ela durante os períodos em que não há potencialidade para pesca.

As residências, comumente palafitas, estão localizadas em áreas de várzeas e quase sempre circundadas por açaizais, porém, o território familiar não se restringe a área das casas, já que o cultivo de elementos básicos, como a mandioca, é feito mais acima, em terra firme. O caráter individual de alguns espaços, quase sempre, se associa ao aspecto comunitário de outros e, quando há demanda pelo uso comum, não há separação entre estes e aqueles. Os recursos para a aquisição de outros produtos são gerados pela coleta e venda do açaí, de outros frutos nativos e, muitas vezes, do pescado. O fabrico artesanal de artigos utilitários, de adorno e de lazer designados ao consumo turístico também serve para complementar a renda.

As características espaciais do Marajó contribuem para que haja uma maior coesão social no arquipélago, já que dispor de recursos financeiros não serve para suprir as necessidades geradas pelos elementos que regem a vida na região. Sendo assim, torna-se mais interessante o investimento em relações interpessoais que no ganho financeiro, por exemplo. “Então o Marajó é o último recanto do Éden, um recanto esquecido onde a felicidade ficou incontaminada, junto com a lembrança das pré-históricas palafitas?” (GALLO, 1997, p. 28).

O Marajó, felizmente ou não, eu não sei, está entrando numa nova fase. Nenhum homem é uma ilha e nenhuma ilha pode ficar isolada do resto do mundo. O equilíbrio dos seus valores não é mais estável; só um baquezinho e aquele castelo encantado, onde estava hospedado um outro homem, um outro tipo de vida, pode desmoronar. (GALLO, 1997, p. 28).

Para afastar uma possível visão romântica, minha e do leitor, é importante ressaltar que a população do Marajó possui questões internas de difícil resolução. O estimulo à convivência marital entre meninas e homens adultos “[...] não está nas estatísticas, mas faz parte do relato frequente dos moradores” (NOBREGA, 2011). Esta prática é comum em algumas regiões do Marajó – entre elas, a do Arari – fato

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que, contudo, nunca ocorreu sem conhecimento das autoridades. A exploração sexual de crianças e adolescentes é outra dessas ocorrências nocivas, “mas o problema está ganhando visibilidade, e espaço nas discussões locais” (NOBREGA, 2011). Estes problemas muito servem ao sensacionalismo midiático ou à justificação da permanência de ONGs. que, se abrigam no discurso de estarem defendendo interesses sociais e, muitas vezes, que têm como objetivo central a exploração de conhecimentos e bens da população.

Outro problema social que se apresenta é que os conflitos agrários entre os proprietários das fazendas e a população local são históricos no Marajó. Os mais comuns, dentre estes, são as disputas territoriais e os embates pelo uso dos recursos naturais. Ambos ocorrem tanto por via judicial quanto através da violência dos fazendeiros que, muitas vezes, justificam tais ações no roubo de gado que ocorre na região. Sobre isto Gallo (1997, p. 57) denunciou: “o roubo organizado não é manifestação de pobreza, é uma típica forma de exploração da pobreza, realizada por quem pobre não é”.

O absenteísmo é uma característica dos fazendeiros da região do Arari e, neste, é comum que recrutem administradores e vigias – os chamados “pistoleiros” – em outras regiões e estados. Os confrontos causados por invasões de terras são agravados pelo julgamento de propriedade dos fazendeiros em relação aos recursos naturais, conforme descrito em denúncia do Ministério Público Federal do Pará, sobre um dos casos de conflito mais antigos da região do Arari. Tal pretexto, na verdade, serve apenas para justificar o “direito” à exploração do pescado abundante nos lagos, especialmente no período imediatamente posterior às chuvas.

Uma das queixas mil vezes repetidas, é que até a legislação brasileira está defasada e omissa. O nosso ambiente marajoara é completamente diferente da situação do Brasil em geral. Aqui é difícil, senão impossível aplicar regras comuns, porque ninguém sabe dizer onde termina o rio e começa a terra firme. A água está sempre em movimento. Uma área que no verão é só terroada, no inverno vira uma imensa lagoa. Então é propriedade da Marinha ou da fazenda? Quem será o dono de um lago no meio de uma propriedade ou de um açude cavado com os tratores do dono do terreno e que, a cada inverno, se enche de peixes? Daí a eterna disputa entre as duas partes interessadas, os pescadores e os fazendeiros, todos com a certeza de serem donos da verdade. (GALLO, 1996, p.181).

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1.2 TUDO É ÁGUA10

As estações do ano, aqui, tem um nome definido: água, lama e seca. Em última análise é sempre a água que, com sua presença ou ausência, denomina e caracteriza. (GALLO, 1997, p. 53).

Apenas inverno e verão são estações bem marcadas na região amazônica, não coincidindo, porém, com as estações oficiais, pois o período de chuvas é denominado inverno e o de seca, ou verão. Este aspecto é comum, portanto, ao arquipélago do Marajó, onde, por sua influência sobre as condições de vida dos habitantes, são denominados inverno e verão marajoaras. O inverno dura os seis primeiros meses do ano e possui índices pluviométricos entre 2000 e 4000 mm, excesso que provoca a interligação dos canais hidrográficos e alagam os campos do Marajó. Na região do rio Arari, onde está o município de Cachoeira, esta ocorrência é agravada pela impermeabilidade específica de seu solo argiloso e tem como consequência o fenômeno que traz abundância e conflito à região. Imediatamente à interrupção das chuvas, as águas baixam em ritmo acelerado impedindo o escape de toneladas de peixes e outros animais aquáticos, que permanecem presos em lagos perenes e/ou igarapés, tornando-se presas fáceis. Schaan (2005) descreve este fenômeno e relaciona a fartura de alimentos, trazida por ele, ao povoamento indígena pré-colombiano no arquipélago marajoara. Em hipótese complementar a esta, a autora pondera que essas populações teriam começado a manejar os recursos hídricos através da construção de barragens, podendo, assim preservar alimento durante o verão. Com a terra retirada das escavações teriam erguido barreiras artificiais onde construíram suas casas e sepultaram seus mortos, localmente chamados de “tesos”.

A chuva na região do Arari é um fenômeno cuja influência perpassa diversos períodos históricos e se perpetua com tal importância que é a partir dela que se estuda, como vimos, o contexto arqueológico da região, bem como sua formação social e sua contemporaneidade. É a água quem determina a relação entre os habitantes do Marajó e o ambiente ou, conforme Gallo enfatizou, é ela quem a dita:

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Quem manda aqui não é o presidente da república, não é o governador, não é o prefeito. Aqui domina uma ditadura absoluta e incontestável, não baseada na Constituição das Forças Armadas. É um dado de fato, quem manda é a água. É a água quem dá o sustento e cria as dificuldades, consola e leva ao desespero, condiciona a saúde, o trabalho, a vida da gente. Sem levantar a voz, sem violência, mas implacável e total (GALLO, 1997, p. 53).

A presença concreta e semântica da água e sua conexão com vida no Marajó foram retratadas em obras literárias como “Chove nos Campos de Cachoeira” e “Marajó” de Dalcídio Jurandir (1909 – 1979). Dalcídio foi um romancista marajoara que viveu e foi reconhecido como tal à mesma época que seus amigos e escritores Jorge Amado, Drummond de Andrade e outros de igual mérito. Foi, também, um dos primeiros autores a arrazoar a exploração dos recursos naturais e simbólicos do povo marajoara.

Dalcídio soube, de maneira muito acurada, retratar as características psicológicas dos marajoaras e seus sentimentos, quase sempre, submersos em águas naturais e sobrenaturais. Penso que essa presença – vital e mística – determina o recolhimento interior e (inter) coletivo que, por sua vez, produz o silêncio individual e contemplativo, gerador do conhecimento sobre o meio natural e social e de uma engenhosidade peculiar no Marajó. É, também, nas águas que habitam alguns dos Caruanas – energias naturais responsáveis pelo equilíbrio ambiental e pela magia das coisas, fenômenos e lugares dali, bem como a função mágica de rituais como a “pajelança cabocla amazônica” (feita no Marajó)11

e a pajelança marajoara12. Os Caruanas dão aos marajoaras uma noção inversa sobre o caminho evolutivo (ou involutivo) do espírito, já que, ao evoluir, “os Caruanas descem por uma Escadinha de Coral encantada, onde gradativamente são submetidos a uma transformação decrescente” (Caruanas, 2012) que, em nível máximo, transforma o espírito em água – o elemento primeiro, fundamento da vida nos Marajós.

A estação seca ou verão marajoara compreende o período entre julho e dezembro – assinalado pela diminuição das chuvas e seca de lagos e rios intermitentes. A paisagem natural do Marajó se modifica completamente de acordo

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Para Maués (2002) uma forma de pajelança distinta da indígena e próxima do xamanismo, contudo, sem identidade própria.

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Ritual onde os únicos seres recorridos são os Encantados ou Caruanas, que incorporam o curandeiro(a) para receitar as ervas a serem consumidas em firmas de chãs, garrafadas (infusões de ervas mistas), banhos etc. para a cura de males físicos e espirituais.

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com as estações climáticas (seca e chuvosa) – sendo o período de maior fluxo de visitantes ao arquipélago.

As peculiaridades geográficas, históricas e culturais do Marajó dificultam a caracterização do local. Contudo, entendo que é o desconhecimento sobre a região que mais causa interferência na correlação destes elementos para a compreensão da atual formação das sociedades dali. A partir deste ponto de vista, procurei, neste capítulo, sintetizar algumas das particularidades regionais e enfatizar a influência, por vezes coercitiva, que a água possui na vida dos habitantes dos Marajó(Figura 5).

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2 A (DES) CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO MARAJOARA

O banqueiro Edemar Cid Ferreira vai perder a coleção de 765 peças arqueológicas que mantém no Instituto Cultural Banco Santos. O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) decidiu cassar a licença que concedeu ao instituto em 4 de dezembro de 2002, nos últimos dias do governo de Fernando Henrique Cardoso. É o único acervo do gênero no país sob a guarda de instituição privada. [...] A legalização da coleção permitiu também, de acordo com Neves, a criação de um corpo de especialistas em cerâmica marajoara no país. Nem o museu Goeldi, de Belém, nem o Museu Nacional, no Rio, têm uma equipe de seis restauradores, como o instituto do banqueiro mantinha. [...] "O Edemar deu um tratamento fantástico para a coleção que comprou dos fazendeiros. É um trabalho único no país em restauro. Nem o Goeldi faz isso", elogia Denise [Schaan]. A contraface, diz ela, é que o comércio estimula o saque e a instituição que o banqueiro criou não estava preocupada com pesquisa --assemelha-se mais a um gabinete de curiosidades. [...] Há outras particularidades na coleção. As peças de cerâmica marajoara, que representam 80% da coleção, formam um acervo único no país, segundo Denise Schaan: "A coleção tem uma importância fantástica porque foi formada por peças de uma só região da Ilha de Marajó" (Folha de São Paulo, fev. 2005. On-line).

Como pode ser visto no texto acima, a cerâmica marajoara é conhecida e valorizada, servindo ao colecionismo de personagens conhecidos, ao contrário do Marajó e sua população. Esta reportagem também serve para levantarmos diversas questões, e entre elas, a de como é possível que 750 peças de cerâmica marajoara tenham chegado às mãos de Edemar Cid? Teria o banqueiro visitado o Arari? Por que uma região com tão relevante patrimônio é tão pobre?

A concepção de patrimônio aplicada ao campo cultural aparece, quase sempre, em expressões desprovidas de reflexão sobre seu significado - ou seja, da relação entre o sujeito e sua cultura. Nesse sentido, merece destaque a “educação patrimonial” e seus contrapontos, uma vez que, pela ótica da ‘autenticidade’13

, não seria possível educar alguém quanto ao valor do que lhe é precioso. Sendo assim, o objetivo deste capítulo é discutir os contrastes entre a concepção deste patrimônio a partir de concepções acadêmico/científicas e o relacionamento que seus “detentores” mantêm com os bens que expressam sua criação humana, social e simbólica – seu patrimônio, aqui, o patrimônio histórico-cultural marajoara.

13

Benjamin (1987 p. 188) considera que “a autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico”.

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O conceito de patrimônio cultural difundido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, apud IPHAN, 2012), o divide em imaterial e material. O patrimônio imaterial é composto pelas “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”. Já o patrimônio material é subdividido em bens móveis e imóveis. Dos bens imóveis fazem parte os núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais, enquanto que os bens móveis possuem como elementos integrantes as coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos.

Trazendo o conceito de patrimônio cultural à esfera nacional, encontramos no artigo 216, da Constituição de 1988, que “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 1988, p. 85). Entretanto, no decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, consta que para que os bens acima referidos sejam considerados resguardados pelo IPHAN, faz-se necessário que estejam devidamente registrados em um dos quatro livros do tombo. A saber: arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas.

A institucionalização do patrimônio cultural, descrita nas referidas leis, remete-nos ao entendimento de que, muito embora seja feito um recorte do termo patrimônio ao campo cultural, o sentido coletivo agregado à palavra como requisito à sua preservação, requer que sejam interpretadas questões sobre o ‘para quem’ e ‘o que’ pode ser categorizado como um patrimônio cultural. Rodrigues (1994), afirma que a concepção de patrimônio enquanto representação coletiva resultou do momento histórico em que se buscava sustentar a construção dos Estados-nação. Em outro trabalho (1996) a mesma autora argumenta que, embora esta noção tenha se deslocado do nível de nação ao de sociedade, ela permanece como um traço marcante de práticas preservacionistas e “disfarce” das diferenças sociais e culturais.

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As discussões sobre patrimônio, tomadas a partir o ponto de vista nativo, alcançam um nível mais abstrato. Gonçalves (2002, p.24) argumenta que “ainda que possamos usar a categoria patrimônio em contextos muito diversos, é necessário adotar certas precauções. É preciso contrastar cuidadosamente as concepções do observador e as concepções nativas”. Porém, as políticas e discussões sobre o tema evidenciam que grande parte do que se considera como ponto de vista local é, na verdade, um constructo de reinterpretações. Embora seja claro que qualquer tentativa de apreensão das visões nativas sempre serão interpretações das interpretações nativas (Gertz, 1978) a questão é recolocada como uma orientação à busca em direção aos diversos significados que podem adquirir os patrimônios, principalmente para a população local.

2.1 UM ARQUIPÉLAGO DE HISTÓRIAS E PATRIMÔNIOS

Penso que ‘arquipélago de histórias e patrimônios’ seja uma metáfora adequada para aludir à uma realidade marajoara constituída por instâncias que possuem formas diferenciadas de raciocínio lógico e/ou reflexão.

As pesquisas sobre o patrimônio arqueológico marajoara se dividem, principalmente, em duas abordagens: a estética e a arqueológica. Embora as discussões desses estudos sejam feitas (em geral) a partir do ponto de vista acadêmico/científico, a fala nativa, utilizada como base para defender os argumentos tecidos, traz implicitamente, a percepção local, que entendo como importantes e, por isso, trouxe às considerações deste trabalho. Assim, optei por me aproximar sequencialmente do significado que a cerâmica marajoara possui para a estética, a arqueologia e para o nativo. Entretanto, procurei deter-me na concepção deste último elemento, pois, não obstante esteja em vias de extinção devido ao processo de “desenvolvimento” que tem se dado no local, constitui o eixo da problemática aqui exposta.

Referências

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