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3.1 A NOVA MUSEOLOGIA PARAENSE: GALLO E O MUSEU DO MARAJÓ

3.1.1 Os Novos Jesuítas Na Amazônia

A atuação das ordens religiosas na história brasileira é permeada pela ambiguidade em suas ações. Isto pode ser comprovado pelo fato de que, dependendo do momento histórico e/ou do objeto investigado, esses agentes aparecem ora aliados aos interesses políticos do Estado, ora ocupados das demandas sociais da região onde atuam. É usual que, por este último motivo, muitos religiosos sejam apontados como mártires. Santos (2009) aponta que, na região amazônica, a fixação dos missionários se deu a partir do interesse da coroa portuguesa em manter o controle político-administrativo do então Estado do Maranhão e Grão-Pará, sendo, a estes, dada a missão de fazer aliança com as populações indígenas dali.

Sobre a ordem mais atuante na Amazônia brasileira – a jesuítica – Dias (apud BRASIL, 2006) relata que a mesma foi expulsa durante a reforma pombalina, em meados do século XVIII. O mesmo autor argumenta que a concentração de poder político-econômico da ordem, aliada às questões estratégicas do Estado brasileiro da época, teriam sido as causas de sua expulsão. Brasil (2006) fala sobre a supressão mundial da ordem, sua restauração no Congresso de Viena (1814) e de seu retorno para o Brasil, no inicio do século XX, e, para a região amazônica, em meados do mesmo século.

Quando foi restabelecida na Amazônia, a companhia de Jesus trouxe as demandas sociais como preocupação central. Acredito que este ponto em muito contribui para explicar as atuais relações entre a igreja e a população amazônica nativa. Zachariadhes (2009) argumenta que, embora a Companhia de Jesus já se houvesse anteriormente envolvido em litígios sociais, foi apenas na Congregação Geral XXIX, de 1946, que a questão social passou a ter um peso elevado em seu sistema doutrinal, quando “pela primeira vez na história, uma Congregação se ocupou do apostolado social como tema dum decreto” (Jesuítas, apud ZACHARIADHES, 2009, p.35). O autor também ressalva que a atenção ao campo social foi intensificada em todo o mundo, sendo os jesuítas educados em “Centros de Estudos e Ações Sociais” para melhor desenvolverem seu apostolado e que

houve, neste sentido, uma atenção especial ao continente latino-americano, que na época sofria com as ditaduras.

A inclusão das demandas sociais como cerne da educação religiosa dos missionários, não só da Companhia de Jesus como também de outras instâncias da igreja católica, parece ter surtido efeitos não esperados por ela. Isto porque, é a partir da reafirmação do social como justificativa às obras religiosas, que observamos notórios casos de conflitos entre as concepções religiosas dos sacerdotes e as práticas da igreja. O surgimento de correntes religiosas, como a Teologia da Libertação ilustra este fato.

No contexto amazônico, Maués (1991) aponta uma relação ambígua entre o catolicismo oficial e aquele praticado por muitos dos sacerdotes que convivem com as populações locais. O autor destaca que, mesmo sendo formados na Europa, muitos clérigos acabam entrando em conflito com as leis eclesiásticas por encontrarem-se “divididos entre suas lealdades” (p.77). Maués (2002) intitula como “Catolicismo Popular Amazônico” a admissão – por parte dos missionários – de uma religiosidade que compreende o contexto histórico-social da região. O autor entende por catolicismo popular a prática da religião católica ajustada às especificidades culturais de onde se manifesta sendo, esta, adotada pela maioria dos fiéis católicos e diferente, contudo, daquela preconizada pelas autoridades eclesiásticas. Sobre a diferença entre o catolicismo popular e o catolicismo popular amazônico, Maués (2011) não aponta aspectos que os diferenciem, porém, sugere que eles existam (ao tempo em que se interroga sobre quais seriam) dado que suas especificidades são representadas e oficialmente aceitas na maior festividade religiosa da região e uma das maiores do mundo – o Círio de Nazaré.

Acredito que as questões acima apontadas foram as principais influências sobre a vida de Giovanni Gallo. Este jesuíta viveu por mais de trinta anos entre a população marajoara e tentou modificar a realidade local, entrando em choque com a prelazia do Marajó e terminando por desligar-se da Ordem por conta das pressões sofridas.

3.1.1.1 O Homem que Implodiu49

Deixando pra lá toda forma de inútil modéstia, posso dizer que conheço este recanto do Marajó como poucos. Não fiz minha aprendizagem engolindo monografias eruditas, mas através de uma caminhada na água, na lama, na terroada. Todo mundo me conhece aqui: eu sou Giovanni, Galo, Galinho, Galinho de ouro, Padre, Mestre, Galo da campina, Garnizé. Para as crianças simplesmente Lalá: A benção Lalá. (GALLO 1997, p. 12).

Sacerdote da Companhia de Jesus nascido em Turim, na Itália, o padre Giovanni chegou ao Brasil no ano de 1970, estabelecendo-se na vila de Jenipapo, município de Santa Cruz do Arari, três anos após sua chegada a país. Antes de escolher o Marajó, o padre participou de missões na Ilha da Sardenha, Itália, na Espanha e na Suíça, onde foi capelão dos italianos que emigraram para aquele país em decorrência da era Mussolini. O padre Gallo foi etnógrafo, museólogo autodidata e fotógrafo, recebendo diversas premiações por seus ofícios. O reconhecimento de sua importância para a sociedade paraense, sobretudo a marajoara, lhe trouxe o título de “Cidadão do Pará”.

Durante sua vivência na vila de Jenipapo e, após, em Cachoeira do Arari, o padre Giovanni envolveu-se com questões de cunho político e social da região, desenvolvendo diversos projetos assistenciais. Seus protestos à desassistência governamental à população do Marajó eram feitos através de artigos, muitos deles publicados nos principais jornais da capital paraense. Tais publicações eram verdadeiros manifestos pelo socorro da gente marajoara, como no artigo que dizia: “o povo fica calado, o povo aguenta. Não é fatalista, é gente nobre, e gente nobre não chora, enfrenta as dificuldades de cabeça erguida, calado. Mas eu não fico calado, não, porque eu não suporto essa situação absurda” Gallo (1997, p.54). A popularidade do padre entre os nativos, bem como seu posicionamento em relação às condições de vida destes, o levou a uma relação conflituosa com os políticos locais e com a prelazia do Marajó. Em sua autobiografia, Giovanni evidencia ter sido a acusação de desobediência aos votos eclesiásticos, feita por esta entidade, que o impelira a pedir desligamento da Ordem Jesuítica, em 1984.

O padre “Galo”, como era chamado, viveu durante trinta anos nos municípios de Santa Cruz e Cachoeira do Arari, sendo um dos maiores defensores da gente

49Este texto foi baseado no livro “Marajó: a Ditadura da Água” Gallo (1997), uma coletânea de artigos

publicados nos jornais “O Liberal” e “O Estado do Pará”, além de entrevistas e observações de campo.

marajoara e divulgadores de sua cultura e sua herança cultural. Recebeu apoio da população local para criar o MdM, instituição da qual foi o idealizador, criador e mantenedor. O MdM surgiu com a visão de que “resolver o problema de comida, em outras palavras, de sobrevivência não é tudo. Para conseguir um verdadeiro desenvolvimento é necessário que o homem também cresça, daí a necessidade de dar impulso à cultura” (Gallo, 1996, p.255). As pretensões do padre eram ambiciosas, embora ele tivesse a consciência de que não seria fácil conseguir que o museu atingisse seu objetivo:

O nosso museu em Cachoeira do Arari quer ser um pólo de desenvolvimento através da cultura. Um projeto corajoso que vai na contramão escolhendo como sede uma comunidade particularmente carente de infraestruturas básicas que seriam essenciais para a vida de um Museu, com o intuito de ser o elemento catalisador que vai provocar a realização dessas infra-estruturas” (GALLO, 2005, p.12).

Giovanni Gallo deixou ao povo marajoara o presente que demorou uma vida de dedicação e sacrifícios para ser construído. Morreu em 2003, após mais de trinta anos de vivência com a comunidade marajoara. Seu corpo foi sepultado no terreno do museu, passando a integrar o acervo deste. – Não por um pedido dele! Afirma o atual vice-diretor do museu – mas para atender a um pedido nosso (Associação dos Amigos do Museu) e segue o relato:

(...) quando ele chegava comigo e dizia assim: ah meu filho, o Galo ta ficando velho, ta pra morrer – porque ele pensava muito nesse museu, porque a vida dele era esse museu.

– O galo ta ficando velho, ele ta pra morrer.

Aí eu dizia pra ele: Galo o senhor ainda não vai morrer! Ele disse: - O Galo vai morrer.

- Vai morrer, mais ainda não vai ser agora.

Então eu dizia pra ele: o dia que o senhor morrer, galo, nós vamos lhe enterrar aqui no museu. Ele então dizia: depois do Galo morto, faz do Galo o que quiser! Se quiser ficar olhando pro Galo: põe na vitrine, se não quiser, enterra o galo. (OTACIR GUEMAQUE, entrevista em 12 jan. 2012).

O padre Gallo foi enterrado com suas vestes sacerdotais, como desejou, já que entendia nunca ter-se afastado de suas concepções religiosas, informa O.G. Seu túmulo hoje é uma espécie de santuário, cercado por réplicas de igaçabas marajoaras e velas permanentemente acesas. No quadro pendurado com sua foto há a inscrição “Giovanni Vive” além de diversos ex-votos (Figura 9) em forma de

mensagens, atitudes que demonstram um reconhecimento devotado por todo empenho do padre em amenizar os problemas locais.

Figura 9 Ex-voto no Túmulo de Giovanni Gallo. Fonte: acervo próprio.

Em diversas passagens de sua autobiografia, Giovanni intui que seu nome seria tornado importante, como quando diz que cometera “o grande pecado de me revoltar contra a estrutura, o sistema, e quem não aceita o sistema nunca tem vez, é condenado ao sucateamento progressivo, com a esperança de uma hipotética reabilitação post mortem. Será que compensa?” (GALLO, 1996, p.257).

Como intuído pelo jesuita, Gallo hoje é reconhecido como “o marajoara que veio de longe”, sendo importante personagem para o Marajó e o Pará. Seu nome e trabalho são frequentemente utilizados na produção de obras como documentários, reportagens, filmes e propagandas turísticas. As fotografias que fez enquanto viveu no Marajó, muitas das quais ilustram as paredes do MdM, também são constantemente utilizadas em exposições sobre o arquipélago, a cerâmica marajoara e a vida na região. Entretanto, a precariedade da existência do MdM e as dificuldades para sua manutenção denunciam a exploração perversa de uma instituição cuja finalidade principal era representar o homem nativo – “que não é nada mais que o elo entre o visitante e a realidade marajoara” (GALLO, 1996, p.261).