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2 OS PRIMÓRDIOS DO DEBATE ACERCA DO APROVEITAMENTO DA

2.1 O governo Dutra (1946-1951): o Brasil na era nuclear

2.1.5 Álvaro Alberto em Nova York

Os encontros da comissão de energia atômica da ONU foram realizados ao longo de inúmeras sessões entre 1946 e 1948. Na sessão inaugural da comissão, em 14 de junho de 1946, os Estados Unidos apresentaram uma proposta para o controle da energia nuclear baseado no Relatório Acheson-Lilienthal, também conhecido como Report on the

International Control of Atomic Energy. O relatório serviu de base para a proposta norte- americana acerca do controle internacional do uso da energia nuclear, conhecida como Plano Baruch, sobrenome do representante Bernard Baruch, que previa a criação de uma Autoridade de Desenvolvimento Atômico Internacional (International Atomic Development Authority), com as seguintes funções gerais:

1) Managerial control or ownership of all atomic-energy, activities potentially dangerous to world security.

2) Power to control, inspect, and license all other atomic activities. 3) The duty of fostering the beneficial uses of atomic energy.

4) Research and development responsibilities of an affirmative character intended to put the Authority in the forefront of atomic knowledge and thus to enable it to comprehend, and therefore to detect, misuse of atomic energy. To be effective, the Authority must itself be the world’s leader in the field of atomic knowledge and development and thus supplement its legal authority with the great power inherent in possession of leadership in knowledge.88

87 Telegrama recebido da embaixada brasileira em Washington, em 09/09/1946. Maço Temático 624.25(00). Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro.

88 Conforme o documento Baruch Plan, Presented to the United Nations Atomic Energy Commission, June 14,

1946. As funções da autoridade internacional, a partir desses pontos gerais, foram detalhadas na fala de Baruch em 14 pontos: 1) General; 2) Raw Materials; 3) Primary Production Plants; 4) Atomic Explosives; 5) Strategic Distribution of Activities and Materials; 6) Non-Dangerous Activities; 7) Definition of Dangerous and Non- dangerous Activities; 8) Operations of Dangerous Activities; 9) Inspection; 10) Freedom of Accesses; 11) Personnel; 12) Progress by Satages; 13) Disclosures; 14) International Control. Disponível em: </www.atomicarchive.com/Docs/Deterrence/BaruchPlan.shtml>. Acesso em: 14 jun. 2014.

A proposta estadunidense, detalhada nos 14 pontos de Baruch, tinha como meta principal a centralização da gestão de todas as atividades relacionadas ao aproveitamento da energia nuclear na entidade internacional a ser criada, desde a prospecção de matérias-primas (controle físico do material nuclear), a fiscalização das atividades de preparação de combustíveis nas usinas, a concessão de licenças e a realização de medidas em prol da não proliferação de novas armas atômicas, não estando suas decisões submetidas ao veto dos membros do Conselho de Segurança. Defendia Baruch que a entidade deveria também ter poderes para punir aqueles que descumprissem as regras da autoridade internacional, uma vez que somente o comprometimento moral por meio de um tratado internacional não impediria o uso de armas de destruição em massa do tipo nuclear.89

No dia 19 do mesmo mês, a União Soviética apresentou outra proposta por meio de seu representante, Andrei Gromyko, que previa a proibição da fabricação de armas nucleares e que a própria Unaec fosse responsável por requerer informações sobre o aproveitamento de minérios atômicos e a produção de energia nuclear no globo, estando sujeita ao veto dos membros do Conselho de Segurança (GUILHERME, 1957, p. 42-46). O governo soviético temia que a criação de um organismo internacional, autônomo com relação à comissão, e a vontade dos membros permanentes pudessem comprometer as pesquisas nucleares soviéticas em andamento, por isso resistiu à proposta norte-americana de criação de uma instituição internacional autônoma. A delegação norte-americana, por seu turno, entendia que, para evitar a produção clandestina ou o uso indevido da energia nuclear, a existência de uma entidade internacional fazia-se imprescindível.

A questão gerou impasse entre Estados Unidos e União Soviética. O governo norte- americano, preocupado em assegurar o controle sobre o uso da energia nuclear, aprovou, em agosto de 1946, o McMahon Atomic Energy Act, que definiu a nova política nuclear do país, bem como criou a Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos, instituindo o monopólio sobre o conhecimento científico e tecnológico para exploração da energia nuclear.90 Além disso, também foi proibido o intercâmbio de informações com outros países, para fins de quaisquer propósitos, ficando suspensas as atividades de cooperação

89 Baruch Plan, Presented to the United Nations Atomic Energy Commission, June 14, 1946. Disponível em:

</www.atomicarchive.com/Docs/Deterrence/BaruchPlan.shtml>. Acesso em: 14 jun. 2014.

90 Para mais informações sobre os primórdios e a evolução do sistema de regulação do uso da energia nuclear nos Estados Unidos, consultar MAZUZAN, George; SAMUEL, Walker. Controlling the Atom: The Beginnings

of Nuclear Regulation, 1946-1962. University of California Press, 1985; HEWLETT, Richard; FRANCIS,

Duncan. Atomic Shield, 1947-1952. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press,1990; HEWLETT, R. G.; HOLL, J. M. Atoms for Peace and War: 1953–1961, Eisenhower and the Atomic Energy Commission,

University of California Press, Berkeley, CA (1989); HOLL, Jack M et al. United States Civilian Nuclear Power

internacional. Segundo Batista (2000), a proibição justificava-se em nome da segurança nacional e do controle sobre o uso da energia nuclear para evitar a fabricação e a consequente proliferação de novas armas nucleares. A nova lei entrou em vigor imediatamente. Truman indicou David Lilienthal como primeiro presidente do órgão.

Segundo Lamaziére (2010, apud GARDNER, 1995), a proposta da Lei McMahon era mais realista, enquanto o Plano Baruch foi pautado em uma visão assentada no internacionalismo idealista. Assim, constata-se a incoerência de posições, uma vez que, no plano externo, parte da proposta previa a promoção do uso pacífico mediado pela autoridade internacional, por exemplo, em contraposição à restrição de qualquer cooperação imposta pela lei nacional que regularia o programa nuclear estadunidense.

Andrade (2006, p. 23) destaca que houve grande polêmica entre os militares e os cientistas norte-americanos, entre eles o renomado físico Leo Szilard, acerca da política nuclear instituída. Enquanto os militares defendiam o sigilo absoluto, os cientistas advogavam que os conhecimentos sobre a liberação controlada da energia nuclear não era segredo para a comunidade científica internacional. Diferente do Projeto Manhattan, a nova Comissão de Energia Nuclear, proposta pelo senador Brian McMahon, ficaria submetida ao controle dos civis, mas suas decisões estariam sujeitas à aprovação do Senado e à manutenção de sigilo completo e obrigatório do conhecimento científico e tecnológico no tocante ao emprego da energia nuclear. De acordo com Andrade (idem), a própria Lei McMahon mostrava-se incompatível com as propostas do Plano Baruch, especialmente no que dizia respeito ao controle do uso da energia nuclear por parte de uma autoridade internacional. O sigilo nuclear não fazia sentido em face da proposta de criação de um órgão que demandaria a transparência de informações sobre o programa nuclear americano e a inspeção de instalações, por exemplo. Por outro lado, a proposta de internacionalizar o controle sobre as reservas de minérios atômicos, ou seja, as minas de urânio, tório e areias monazíticas, principalmente, permitiria à autoridade internacional exigir a cooperação dos países possuidores de matérias-primas no provimento do acesso a tais reservas. Contudo, não seria oferecida nenhuma contrapartida por parte dos países integrantes da autoridade internacional em compartilhar os avanços científicos e tecnológicos provenientes da utilização desses recursos no desenvolvimento do uso da energia nuclear. Conforme Conant e Gold (1978), essa seria uma cooperação de mão única, antecipadamente formalizada pela Lei McMahon.

Conforme Marques (1992), Rocha Filho e Garcia (2006) e Andrade (2006), o Brasil apoiou91 a proposta norte-americana de criação de uma autoridade internacional que promovesse o controle do uso da energia nuclear para fins pacíficos, mas discordou quanto à proposta de internacionalização das reservas atômicas mundiais. A proposta de controle internacional sobre as reservas atômicas mundiais, formalizada no 1º Relatório da Comissão de Energia Atômica de 1946, afetaria diretamente os países detentores de jazidas de minérios atômicos, como tório e urânio. Os países prejudicados com essa proposta seriam o Brasil, o Canadá, a Índia e a Bélgica (considerando as reservas disponíveis no território do então Congo Belga, na África). Batista (2000) argumenta que o Brasil não obstruiria o Plano Baruch, pois desejava obter a colaboração norte-americana em outros setores, e que, mesmo adotando a posição de condicionar o apoio à cooperação para o desenvolvimento científico e tecnológico, manteria a colaboração com a Casa Branca na venda de minérios.

Álvaro Alberto, contudo, reforçou o entendimento de que ao Brasil não caberia somente o papel de provedor de matérias-primas estratégicas já que poderia utilizar os recursos nacionais em proveito do desenvolvimento científico, tecnológico e econômico do país em uma área cujo interesse de progresso não era restrito somente às grandes potências ou atrelado exclusivamente à política do poder. O representante brasileiro, para obstar a proposta americana, alegou que a Constituição brasileira assegurava à nação a posse de todas as riquezas minerais contidas no solo e no subsolo nacionais e que, se um acordo fosse assinado, este somente seria válido após ratificação no Congresso. Insatisfeito com o encaminhamento da proposta, o representante brasileiro sugeriu o estabelecimento de cotas preferenciais de minérios atômicos para os países possuidores de reservas, com vistas a manter a soberania nacional sobre parte dos recursos.92 A posição de Álvaro Alberto foi noticiada no jornal norte- americano Herald Tribune de 27 de dezembro de 1946, que acompanhava a evolução das discussões na Comissão de Energia Atômica da ONU e destacou a insistência de Álvaro Alberto em assegurar, de algum modo, a soberania brasileira sobre os minérios atômicos. A discordância de Álvaro Alberto buscava a defesa de uma proposta que beneficiasse também o

91 Telegrama nº 72 de 18 de julho de 1946 do Itamaraty, endereçado a Álvaro Alberto (em reposta a dois memorandos enviados anteriormente solicitando instruções para a Comissão), recomendando “que o “representante do Brasil devia apoiar firmemente o Plano Baruch e prestigiá-lo de todas as maneiras” (GUILHERME, 1957, p. 92).

92 O presente relato acerca da participação de Álvaro Alberto na Comissão consta da Correspondência nº 771, enviada pelo secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, Aguinaldo Caiado de Castro, para o presidente Getúlio Vargas, intitulada “Relatório sobre política governamental no setor da energia atômica”, em 25/11/1953. Maço Temático 563.80. Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro. O documento, composto de 30 páginas, apresenta a evolução do setor nuclear no Brasil desde a criação da Cefme no governo de Dutra até a descoberta dos acordos secretos assinados entre Brasil e Estados Unidos no segundo governo Vargas.

progresso mais amplo dos países possuidores dos minérios utilizados na produção de energia nuclear para fins exclusivamente pacíficos e em prol do desenvolvimento nacional.

Para tentar resolver o impasse entre Estados Unidos e União Soviética na comissão em relação à criação de uma autoridade autônoma internacional, a Assembleia Geral da ONU recomendou, por meio da Resolução nº 41, de dezembro de 1946, e em atendimento ao princípio geral da Carta de São Francisco de regulação e redução dos armamentos (Capítulo 11) e às medidas recomendadas pela Resolução nº 1, que criou a Unaec, a busca do consenso para a proposição, o quanto antes, do texto de uma convenção ou acordo para o controle internacional do uso da energia nuclear. Houve menção à necessidade de se estabelecer um sistema de salvaguardas por meio de inspeções que assegurassem o uso pacífico da energia nuclear, bem como a proibição da fabricação de novos armamentos e a eliminação das armas existentes.93 As negociações, entretanto, não avançaram naquele ano.

Ao longo de 1947, os debates prosseguiram na comissão. O Conselho de Segurança, mediante a Resolução nº 20,94 de março de 1947, reforçou que a Unaec apresentasse proposta de convenção ao Conselho de Segurança antes da próxima sessão da Assembleia Geral, como forma de buscar o entendimento entre os membros da comissão. A resolução reforçava que as emendas e objeções apresentadas pelo delegado soviético à proposta norte-americana deveriam ser analisadas concomitantemente à continuação dos estudos do comitê de trabalho da comissão, encarregado de definir a organização, as funções e os poderes da autoridade internacional. Segundo Osvaldo Aranha, integrante da delegação brasileira no Conselho de Segurança da ONU, a resolução tinha como objetivo principal assegurar que o comitê de trabalho avançasse na elaboração de um acordo sem que fosse interrompido pelas discussões nessa instância ou em virtude do exame das emendas russas.95

No que diz respeito à emenda de Álvaro Alberto para o estabelecimento de cotas preferenciais para os países possuidores de minérios atômicos, não houve apoio por parte dos demais países. Insistiu o representante brasileiro em assegurar tratamento privilegiado aos países possuidores de reservas e propôs o estabelecimento de cotas de combustível produzido a partir dos minérios atômicos oriundos das reservas dos países possuidores como forma de obtenção de “compensações específicas” por parte dos países possuidores de tecnologia. A

93 Conforme A/RES/41 (I), Principles governing the general regulation and reduction of armaments. Disponível em:< http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/41(I)&Lang

=E&Area=RESOLUTION>. Acesso em: 17 abr. 2013.

94 S/RES/20 (1947). Atomic Energy: international control. Disponível em:<http://www.un.org/ga/search /view_doc.asp?symbol=S/RES/20(1947)>. Acesso em: 18 abr. 2013.

95 Correspondência enviada pela delegação do Brasil junto ao Conselho de Segurança da ONU, em 18/04/1947. Maço Temático 624.25(00). Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro.

proposta de Álvaro Alberto recebeu apoio da delegação inglesa (Índia) e da australiana. As compensações específicas propostas por Álvaro Alberto deslocaram os seus argumentos de defesa da soberania sobre as matérias-primas in natura para a participação em parcela da produção de combustíveis, mostrando que sua real intenção era assegurar ao país os benefícios dos desdobramentos tecnológicos, industriais e econômicos da conversão dos minérios em combustível.96 Nesse segundo caso, certamente a destinação de parcelas de combustíveis aos países possuidores estimularia o desenvolvimento tecnológico de equipamentos e instalações onde os combustíveis seriam produzidos e utilizados, dando-lhes fim economicamente favorável ao país. Assim, o argumento das cotas preferenciais deslocou- se das matérias-primas para os combustíveis e, posteriormente, para a energia resultante.

Em depoimento a Rocha Filho e Garcia (2006 p. 63), o ex-ministro de Ciência e Tecnologia, Renato Archer, afirmou que a falta de apoio à proposta de internacionalização das reservas mundiais levou a delegação dos Estados Unidos a desviar as negociações para a discussão do preço a ser pago pelo combustível produzido a partir dos minérios extraídos dos países possuidores de reservas, conforme o pleito de Álvaro Alberto. Bernard Baruch propôs o estabelecimento de um “preço remunerador” para atender à reivindicação de Álvaro Alberto, que insistia em defender uma posição que favorecesse o progresso científico, tecnológico e econômico que adviria do aproveitamento da energia nuclear para fins pacíficos. O representante brasileiro defendeu que o preço remunerador era requisito indispensável, mas seu interesse era garantir o acesso aos combustíveis a partir da produção nos respectivos países onde os minérios fossem extraídos, o que propiciaria o comprometimento dos países em transferir a tecnologia de reatores e instalações para os países possuidores de reservas. Em síntese, a tese das compensações específicas de Álvaro Alberto pautava-se nas seguintes demandas, as quais constaram formalmente como uma emenda ao 2° Relatório da Comissão de Energia Atômica de 19 de julho de 1947:

a) preço remunerador, como base necessária, porém, não suficiente; b) representação permanente no Órgão Internacional de Controle; c) cotas preferenciais de energia, resultando das matérias-primas nacionais; d) instalação, em território nacional, de reatores primários (pilhas de tório ou de urânio) para produzir os chamados “combustíveis nucleares” urânio-233 e plutônio; e) instalação, em território nacional, de reatores secundários, destinados a produzir energia, à custa dos combustíveis nucleares.

96 Correspondência nº 771, enviada pelo secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, Aguinaldo Caiado de Castro, para o presidente Getúlio Vargas, intitulada “Relatório sobre política governamental no setor da energia atômica”, em 25/11/1953.

Ao propor a transferência de tecnologia, Álvaro Alberto via na cooperação internacional um meio para desenvolver no país o conhecimento científico e tecnológico para o aproveitamento da energia nuclear, já que, em termos de matérias-primas, possuíamos reservas de minérios atômicos. As discussões em torno do controle internacional do uso não poderiam impedir os demais países de ter acesso ao conhecimento e à tecnologia, inclusive para desenvolvimento autônomo das ditas “ciências puras”, como era o caso da física nuclear. Com o prosseguindo das reuniões da Comissão de Energia Nuclear, Álvaro Alberto enviou um memorando confidencial ao embaixador João Carlos Muniz, chefe da delegação do Brasil na ONU, reforçando novamente a necessidade de o governo brasileiro criar mecanismos internos para estabelecer os propósitos nacionais quanto ao desenvolvimento da energia nuclear, proceder à nacionalização de todas as jazidas de minérios atômicos e iniciar a revisão das concessões de exploração e comercialização desses minérios – tornando todas as atividades referentes ao uso da energia atômica um monopólio do Estado ou executadas de governo a governo sob concessão especial (MEMORANDO Nº 1, 25 de novembro de 1947, apud ROCHA FILHO; GARCIA, 2006, p. 209). Tal entendimento daria origem a uma política de fiscalização dos recursos atômicos que permitiria, inclusive, maior conhecimento governamental do potencial mineral existente no Brasil.