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2 OS PRIMÓRDIOS DO DEBATE ACERCA DO APROVEITAMENTO DA

2.1 O governo Dutra (1946-1951): o Brasil na era nuclear

2.1.1 Depois da bomba: uma política para o átomo no pós-guerra

O lançamento das bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki selou o término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e inaugurou, concomitantemente, a era nuclear no âmbito da política internacional. A comprovação perante o mundo da existência de um novo recurso de poder afetou as relações políticas, de segurança e defesa da nascente ordem internacional, introduzindo novo parâmetro no equilíbrio de poder entre os Estados. A arma atômica de guerra foi noticiada com grande preocupação pelos meios de comunicação da época, pois se tratava de uma “descoberta misteriosa” (LEITE, 1997, p. 130) cujo impacto radioativo ainda era desconhecido.

Os avanços da física nuclear para desvendar o processo de fissão dos elementos radioativos possibilitaram o desenvolvimento, no decurso da década de 1930, dos meios tecnológicos necessários para o aproveitamento da energia atômica, o que provocou uma mudança de paradigma não somente no campo da política do poder, mas igualmente no campo da geração de energia para fins não militares. Alguns cientistas acreditavam que uma nova revolução industrial estaria baseada na energia nuclear, impelindo os governos a apoiar o conhecimento científico e o desenvolvimento tecnológico que permitissem a fabricação de reatores, equipamentos e instalações necessários para a produção da nova fonte energética.

No contexto da política internacional, o tema do controle civil sobre o uso da energia nuclear esteve presente nas discussões interaliadas no pós-guerra. Nos Estados Unidos, o então presidente Franklin Delano Roosevelt (1933-1945) desejava assegurar o monopólio do conhecimento científico e tecnológico – tanto das etapas de projeto quanto de processo – que havia permitido o emprego pioneiro da energia nuclear para a fabricação da bomba atômica (GUILHERME, 1957, p. 86).

Desde 1941, com o avanço das atividades de pesquisa do Projeto Manhattan, o desenvolvimento de tecnologia para o aproveitamento da energia nuclear esteve sob o

comando de militares e envolveu vultosos investimentos feitos pelo governo norte-americano para garantir o monopólio do país sobre a nova arma de guerra.64

Com a morte de Roosevelt, em 12 de abril de 1945, o vice-presidente Harry Truman assumiu a presidência. Nessa época, os Estados Unidos ainda não dispunham de uma legislação nacional que estabelecesse o controle sobre o uso da energia nuclear no país, ainda mantida em sigilo. Henry L. Stimson, então secretário de Guerra, escreveu para Truman logo após sua posse para informar acerca da necessidade de o país estabelecer o quanto antes uma política de uso da energia nuclear: “The control of the atomic bomb will undoubtedly be a matter of the greatest difficulty and would involve such thoroughgoing rights of inspection and internal controls as we have never heretofore contemplated” (FISCHER, 1997, p. 17-18). Do ponto de vista diplomático, Stimson recomendou a Truman que as negociações para o controle da energia nuclear deveriam ser uma prioridade também da política externa, especialmente no que concernia às relações com Moscou. Stimson fez tal alerta meses antes do lançamento das bombas, temendo que, após a detonação, houvesse grande desconfiança por parte da União Soviética quanto às pretensões norte-americanas e uma corrida indiscriminada para a fabricação de novas armas nucleares.

As desconfianças soviéticas foram confirmadas após a Conferência de Potsdam, realizada em julho de 1945, quando Stalin acordou a declaração de guerra contra o Japão no contexto da ofensiva final aliada, negociada na Conferência de Yalta em fevereiro do mesmo ano. Stalin fora surpreendido pelo lançamento das bombas atômicas por parte dos Estados Unidos, em agosto de 1945, o que tornou a mobilização do exército vermelho inútil. Em Yalta, Truman havia ressaltado a necessidade do envolvimento militar soviético na ofensiva final aliada. Paralelamente, os EUA se preparavam para realizar o primeiro teste atômico da bomba Trinity, desenvolvida no Laboratório Nacional de Los Alamos, no estado do Novo México.

Em 15 de novembro de 1945, o presidente Truman, o primeiro-ministro britânico Clement R. Attlee (1945-1951) e o presidente canadense William L. Mackenzie King (1935- 1948), cujos governos haviam colaborado no Projeto Manhattan, se encontraram em uma primeira reunião para tratar do tema do aproveitamento da energia nuclear. Em Washington,

64 Para mais detalhes acerca da política nuclear norte-americana e o desenvolvimento da bomba atômica, ver RHODES, Richard. The making of the atomic bomb. New York: Pinguin, 1986; CIRINCIONE, Joseph. Bomb

scare: the history and future of nuclear weapons. New York: Columbia University, 2007; GROVES, Leslie R.

Now It Can Be Told, The Story of the Manhattan Project. New York: Harper, 1975; SMYTH, Henry D. Atomic

Energy for Military Purposes. Princeton: Princeton University Press, 1976; HEWLETT, Richard; OSCAR,

as lideranças dos três países assinaram o documento conhecido como “Three Nation Agreed Declaration on Atomic Energy”.65 No documento, as três nações se comprometiam:

a) Ao intercâmbio recíproco de informações científicas acerca da energia nuclear, inclusive com outros países interessados no uso pacífico da energia atômica, sob o princípio da reciprocidade e tão logo fosse criado um mecanismo internacional de controle que garantisse a aplicação para uso civil;

b) Ao intercâmbio de informações referentes às reservas de minerais atômicos existentes no globo; e

c) À não fabricação de novas bombas nucleares.

Além de mencionar o controle internacional sobre o uso da energia nuclear, o documento também sugeriu a criação de uma comissão na recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU), responsável por definir as regras e um mecanismo de controle internacional para a aplicação da energia nuclear.

No mês seguinte, houve a Conferência Interaliada de Ministros de Relações Exteriores, em Moscou, da qual participaram os ministros James Byrnes, dos Estados Unidos, Ernest Bevin, do Reino Unido, e Vyacheslav Molotov, da União Soviética. Na ocasião, foi reiterada a proposta de criação de um órgão na ONU responsável pelo controle internacional do uso da energia nuclear. O órgão seria subordinado ao Conselho de Segurança e teria como função tratar dos problemas oriundos do uso da energia atômica e suas implicações no campo da segurança internacional (FISCHER, 1997, p. 18). Ficou acordado que, na primeira sessão da Assembleia Geral da ONU, a ser realizada em janeiro de 1946, as três potências apresentariam um projeto preliminar para a constituição do referido órgão.

Buscando preparar a delegação norte-americana, o secretário de Estado norte- americano, James Byrnes (1945-1947), nomeou uma comissão composta por notáveis para delinear a posição a ser adotada pelos Estados Unidos quanto ao controle do uso da energia nuclear. Tal discussão estaria fundamentada na proposta de uma política nuclear nacional que levaria em conta a proibição do desenvolvimento de novas bombas atômicas e o rígido controle do uso, via fiscalização, para aplicação civil. Tal comissão foi chefiada pelo subsecretário de Estado Dean Acheson, que assumiria posteriormente como secretário de Estado, e por David Lilienthal, que havia trabalhado como chefe da agência pública federal da

65 O documento pode ser consultado na íntegra em: <http://www.nuclearfiles.org/menu/key-issues/nuclear- energy/history/dec-truma-atlee-king_1945-11-15.htm>. Acesso em: 15 nov. 2014.

Autoridade do Vale do Tennessee, criada em 1933, na gestão de Roosevelt, responsável por promover o desenvolvimento da região do Vale do Tennessee, no sudeste do país, desde a navegação até a geração de eletricidade.

O estabelecimento de uma política nuclear nacional era uma preocupação de Truman. Desde a rendição japonesa, o presidente americano já havia sugerido ao Congresso o estabelecimento de um comitê que propusesse a criação de um órgão nacional responsável por normatizar e estabelecer os propósitos quanto ao aproveitamento da energia nuclear, considerando que:

a) O país não poderia manter o monopólio das pesquisas no uso da energia nuclear, por isso deveria ser criado imediatamente um organismo internacional para fiscalizar o desenvolvimento tecnológico para aplicação da energia nuclear ao redor do globo; b) Enquanto o organismo não fosse criado, os Estados Unidos deveriam proteger e

assegurar o monopólio do conhecimento científico e tecnológico do “segredo nuclear” (ROCHA FILHO; GARCIA, 2006, p. 57-58).

Segundo Camargo, o segredo nuclear compreendia as seguintes categorias:

A primeira é a dos princípios científicos; a segunda é das questões relativas à engenharia de produção – táticas de produção como, por exemplo, os métodos que funcionam e os que não; e a terceira consiste de informações detalhadas, desenhos, planos, mapas, plantas de engenharia e de construção (CAMARGO, 2007, p. 117 apud SUDOPLATOV; SUDOPLATOV, p. 178- 181; RHODES, 1988, p. 529).

Do ponto de vista científico, a manutenção do sigilo seria questionada pela comunidade científica e pelos demais governos, dadas as potencialidades de uso da energia nuclear para fins pacíficos, ainda que seu desenvolvimento inicial estivesse umbilicalmente atrelado à destinação para uso militar. Ademais, o conhecimento dos princípios científicos era de domínio dos cientistas alemães, uma vez que os físicos Otto Hahn e Fritz Strassmann, juntamente com a cientista austríaca Lise Meitner, foram os responsáveis pelo experimento que revelou a possibilidade de obtenção de energia a partir da fissão nuclear do elemento radioativo urânio, em 1938, amplamente divulgada nos periódicos especializados da época. Do mesmo modo, os cientistas soviéticos também acompanhavam os avanços das pesquisas nos laboratórios da Alemanha e dos Estados Unidos.

A espionagem nuclear após 1945 passou a ser amplamente utilizada por países como a União Soviética para poupar esforços humanos e financeiros na realização de pesquisas e experimentos para o aproveitamento da energia nuclear. Muitos cientistas que haviam participado direta ou indiretamente das etapas de projeto, processo e estudo de materiais para o aproveitamento da energia nuclear no âmbito do Projeto Manhattan – e que haviam acompanhado, por exemplo, o processo de controle da reação em cadeia em reatores, a conversão do urânio e de seus isótopos em combustível e os seus mecanismos de detonação – foram responsáveis por disseminar essas informações e os projetos para construção de plantas de reatores para agentes soviéticos.66

Assim, restava ao governo norte-americano pensar em uma estratégia de monopólio não do conhecimento científico e tecnológico, mas da própria matéria-prima necessária para a produção de combustível a ser utilizado nos reatores como alternativa para inibir novas pesquisas e experimentos (GUILHERME, 1957, p. 29-30). Em virtude de os Estados Unidos não possuírem reservas significativas de urânio, o governo incentivou a estocagem de minérios radioativos durante o desenvolvimento do Projeto Manhattan. Após o lançamento das bombas, o controle sobre a matéria-prima seria uma estratégia também para evitar uma “corrida do urânio” no globo (ROCHA FILHO; GARCIA, 2006, p. 57-58), decorrente do que H. Stimson previra como a “corrida pela bomba atômica”.

Diante desse cenário, o Brasil ocupou lugar de destaque nos planos norte-americanos, pois se constituía em um dos países com as maiores reservas de areia monazítica e tório no globo. De fato, já no início da década de 1940, houve os primeiros contatos do presidente Roosevelt com o presidente brasileiro Getúlio Vargas (1930-1945) para tratar da compra de minérios atômicos brasileiros, dentre outros minérios estratégicos para a indústria bélica. Convém rememorar que as relações entre Brasil e Estados Unidos nos anos do governo Vargas foram marcadas, até 1939, ano da Missão Aranha67 a Washington, por um impasse

66 Análise pormenorizada acerca do papel desempenhado pela espionagem nuclear no pós-guerra, com a narrativa dos eventos envolvendo cientistas e agentes dos serviços de inteligência na troca de informações atômicas, bem como os casos que se tornaram mais emblemáticos no contrabando de informações, pode ser encontrada em Camargo (2007, p. 109-142).

67 Respondendo ao convite do governo norte-americano, o então ministro das Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, visitou os Estados Unidos nos meses de fevereiro e março de 1939, com o intuito de promover entendimentos entre os dois países nas áreas política e econômica. O aumento da influência alemã no comércio exterior brasileiro via modalidade de comércio compensado, a partir de 1934, e a decretação do Estado Novo de cunho autoritário, em 1937, preocupavam Washington na manutenção de seu bloco de poder nas Américas. Assim, ao longo da visita, Osvaldo Aranha, identificado como um dos principais representantes da corrente pró- norte americana no governo, buscou negociar a colaboração econômica dos EUA em troca do estreitamento de laços políticos com o Brasil. Nesse sentido, o governo Roosevelt prometeu conceder créditos para a construção de uma usina siderúrgica, bem como para o reaparelhamento das Forças Armadas – cujo objetivo era também

quanto à ajuda financeira do governo norte-americano ao projeto de construção de uma indústria siderúrgica no Brasil, vinculado à estratégia de modernização econômica preconizada por Vargas. A contrapartida brasileira seria o apoio político às diretrizes de Roosevelt para a América Latina, em detrimento da aproximação com a Alemanha. A política pendular de Vargas, também conceituada por Moura (1991) como equidistância pragmática, que ora oscilou entre a Alemanha de Hitler e ora entre o tradicional parceiro da América do Norte, chegou ao fim diante das promessas de ajuda financeira e de cooperação técnica (incluindo a área militar) formalizadas nos Acordos de Washington, resultantes da Missão Aranha. A preocupação com o rearmamento brasileiro e a capacitação do setor de defesa também estiveram presentes nesse acordo. A solidariedade interamericana seria demandada nos esforços de guerra para salvaguardar o sistema de poder norte-americano no continente (CERVO, BUENO; 2011).

Posteriormente, o Brasil assinou o primeiro Programa de Cooperação para a Prospecção de Recursos e Minerais Radioativos com os Estados Unidos no ano de 1940, no qual ficou acertada a realização de um levantamento minucioso das reservas de minérios atômicos nacionais, até então pouco exploradas, especialmente para a localização de reservas de areia monazítica, urânio e tório (MOREL, 1979, p. 96 apud GIROTTI, 1984, p. 20).

Segundo Moura (1991, p.17-18), no decorrer da Segunda Guerra, o governo norte- americano assinou inúmeros acordos de cooperação com os países latino-americanos para o fornecimento exclusivo de recursos estratégicos, como bauxita, berilo, cromita, ferro-níquel, diamantes industriais, minério de manganês, mica, cristais de quartzo, borracha, titânio e zircônio. Em nome da defesa e da segurança hemisférica, o governo norte-americano afirmava que tal medida evitaria que os países do Eixo tivessem acesso aos minérios estratégicos utilizados potencialmente na indústria de guerra. No mesmo ano, o Brasil assinou um acordo com os Estados Unidos, comprometendo-se a exportar grandes quantidades de minérios para utilização na indústria bélica estadunidense.68

Durante a III Conferência dos Chanceleres do Rio de Janeiro, realizada em janeiro de 1942, foi demandado do governo brasileiro que aumentasse a produção desses minérios, uma vez que os Estados Unidos haviam formalmente declarado guerra ao Eixo. O presidente do Export-Import Bank (Eximbank) norte-americano, Warren Pierson, apresentou ao governo brasileiro um plano conjunto para a concessão de empréstimos que previa:

conquistar a simpatia dos elementos germanófilos no seio do estamento militar, a exemplo do general Góis Monteiro (CERVO; BUENO, 2011, p. 270-271).

68 O acordo relativo ao fornecimento recíproco de matérias de defesa e informações sobre defesa entrou em vigor por meio do Decreto-Lei nº 4.323, de 21 de maio de 1941.

a) A abertura de uma mina em Itabira (MG) e a melhoria do acesso ferroviário para transportar os carregamentos dos minérios estratégicos até a cidade de Vitória (ES); b) Um empréstimo à Central do Brasil para transportar grandes cargas de manganês e

ferro para o porto do Rio de Janeiro; e

c) O melhoramento do porto do Rio de Janeiro.

A extensão da venda de minérios foi acordada nos Acordos de Washington por ocasião da missão Artur de Souza Costa aos Estados Unidos, de fevereiro a março de 1942 (MOURA, 1991, p. 17-18; 1996).

Em decorrência desses entendimentos, em 10 de julho de 1945, ainda no contexto da guerra, o então presidente Getúlio Vargas assinou o primeiro acordo atômico com os Estados Unidos para o fornecimento de três mil toneladas de areia monazítica, ao preço de 31 a 40 dólares a tonelada, extraída do estado do Espírito Santo. Dado o contexto vigente à época, o acordo era secreto. De acordo com Girotti (1984), a negociação desse acordo teve início na Conferência Interamericana de Chapultepec, no México, entre fevereiro e março de 1945. O acordo foi assinado poucos dias antes da realização do primeiro teste de detonação de artefato nuclear no âmbito do Projeto Manhattan, a bomba Trinity.

Dessa forma, a corrida do urânio e de outros elementos radioativos já havia sido iniciada durante a guerra pelos Estados Unidos por meio de acordos e programas de colaboração internacional. O receio quanto à corrida atômica se centrava como um dos principais temas no campo da segurança internacional. O término do conflito não assegurou a permanência das alianças contraídas entre as potências aliadas após a derrota dos países do Eixo. Os Estados Unidos reuniam as condições militares, econômicas e tecnológicas, incluindo o monopólio do conhecimento e da tecnologia para fabricação da bomba atômica, para assumir o papel de superpotência no sistema internacional e garantir sua hegemonia. A construção do projeto de poder norte-americano pós-1945 teve como base a construção de alianças militares ao redor do globo e da criação de mecanismos multilaterais na área de segurança, como a implantação do sistema de segurança coletiva com base no capítulo VII da Carta de São Francisco (SARAIVA, 2007).

Em decorrência do fim da guerra, diversos países passavam por crises de instabilidade devido ao colapso de suas estruturas políticas e econômicas internas. No dia 12 de março de 1947, o presidente Truman, em discurso no Congresso, solicitou a aprovação de um programa de ajuda financeira para remediar a crise política e econômica vivenciada pela Grécia, em

apoio ao regime constitucional e democrático contra grupos comunistas armados, bem como assegurar a continuidade de apoio financeiro à Turquia, alvo de pressões comunistas externas em região estratégica no globo. A manutenção da liberdade desses povos e da integridade territorial dos seus Estados se tornara uma responsabilidade dos Estados Unidos, que promoveriam a segurança não somente naquela região, mas em todo o globo (BOROSAGE, 1970, p. 9).

A interpretação dada por Washington às ameaças comunistas no pós-guerra foi o ponto de partida da Guerra Fria, somando-se às divergências entre Truman e Stalin verificadas nas negociações de paz interaliadas por ocasião das Conferências de Yalta e de Potsdam, ocorridas em 1945. Ainda que não mencionasse a União Soviética de forma expressa (apenas menções às “ameaças comunistas armadas”), Truman lançou em seu discurso as diretrizes para a nova política de segurança nacional norte-americana, conhecida como a Doutrina Truman ou doutrina da segurança nacional.69 Em julho de 1947, o Congresso estadunidense aprovou o National Security Act (Lei de Segurança Nacional), que redefiniu a estrutura institucional do sistema de defesa e inteligência norte-americano.70 Um ano antes, o National War College foi criado com o objetivo de disseminar a nova política de segurança norte-americana, bem como orientar estudos específicos sobre o tema da guerra e da defesa (GURGEL, 1975 apud FRAGOSO, 1971).

Assim, o comunismo era o novo “inimigo” a ser combatido no âmbito de uma “guerra generalizada”, travada nos meios político, econômico, militar (incluindo a esfera nuclear), ideológico e científico contra Moscou. A contenção do inimigo se daria onde quer que ele estivesse, e não somente no país que o abrigasse. O conceito de fronteiras geográficas cederia lugar ao de “fronteiras ideológicas”, e a “teoria dos dominós” justificaria as intervenções norte-americanas ao redor do globo (COMBLIN, 1978, p. 39-40).

A expansão do comunismo para a América Latina, zona de influência norte-americana, também era uma preocupação do governo Truman. A postura nacionalista de alguns governos latino-americanos tornava-os focos de disseminação de ideias antiamericanas por grupos da

69 Escrevendo sob o pseudônimo de “X” na revista Foreign Affairs, o diplomata norte-americano George Kennan ressaltou o perigo comunista e a necessidade de contenção da URSS por parte de Washington, por meio de uma estratégia política e militar de longo prazo. O artigo é tido como a base da doutrina Truman de contenção ao comunismo. Para mais detalhes, consultar: “The source of soviet conduct”, by X, Foreign Affairs, summer, p. 566-582, 1947.

70 A lei instituiu o National Security Council (NSC) e o National Security Resources Board (NSRB), além da Central Intelligence Agency (CIA). A essa agência caberia prover “a comprehensive outline of national intelligence objectives applicable to foreign countries and areas to serve as a guide for the coordinated collection and production of National Intelligence”. Conforme documento do National Archives and Records Administration. Disponível em: < http://history.state.gov/historicaldocuments/frus1945-50Intel/d422#fn- source>. Acesso em: 05 abr. 2014.

esquerda comunista, críticos à hegemonia norte-americana na região (AYERBE, 2002, p. 81).