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2 OS PRIMÓRDIOS DO DEBATE ACERCA DO APROVEITAMENTO DA

2.2 O segundo governo Vargas (1951-1954) e a gestão Café Filho (1954-955)

2.2.1 Vargas e o novo momentum nacional

O retorno de Getúlio Vargas ao poder, em 1951, pelas vias eleitorais simbolizou a retomada do projeto nacional-desenvolvimentista. A industrialização acelerada era componente essencial do progresso nacional a ser conduzido pelo Estado. A adoção do modelo econômico liberalizante na gestão Dutra, cujos resultados foram oscilantes, deixou como herança o déficit no setor público e a tendência de aumento da inflação. Ainda que o Produto Interno Bruto (PIB) houvesse crescido, impulsionado pelo crescimento industrial, ao final do governo, persistia o déficit na balança comercial e a má distribuição interna da riqueza (FAUSTO DEVOTO, 2004, p. 304-305).

A ascensão de Vargas à Presidência gerou muitas especulações acerca dos rumos do programa econômico do governo, uma vez que o presidente buscaria conciliar o desenvolvimento econômico em bases autônomas, conforme as expectativas dos setores sociais favoráveis ao nacionalismo econômico, sem descuidar da necessária cooperação econômica e financeira internacional, de acordo com os anseios dos setores favoráveis ao associativismo liberal. A forte polarização do debate político em torno dessas duas visões colocou em lados opostos os ditos nacionalistas, que defendiam um modelo mais autônomo e conduzido pelo Estado, e os ditos liberais ou “entreguistas”, que primavam por um modelo associado ao capital estrangeiro com interferência mínima do Estado. O debate em torno das questões de desenvolvimento e o papel do setor externo, especialmente no âmbito das relações com os Estados Unidos e organismos financeiros internacionais, gerou a clivagem da opinião pública nos mais diferentes setores – político, tecnoburocrático, militar, social, econômico, imprensa –, sendo oportunamente acionada por Vargas para alavancar bases de apoio às medidas impulsionadas pelo Executivo.

A intenção do projeto de Vargas era robustecer o modelo econômico iniciado em sua primeira gestão por meio do fortalecimento do capital privado nacional via sua articulação com a empresa pública, núcleo dos investimentos industriais. O gargalo principal que comprometia tal articulação era o acesso às tecnologias para a modernização dos setores estratégicos da economia, como os setores energético e siderúrgico, por exemplo. Apesar dos avanços na estrutura gerencial e administrativa do Estado brasileiro, a barreira do desenvolvimento tecnológico limitou a liderança da empresa pública estatal em face do processo modernizador. Os objetivos do governo de minimizar a participação das empresas estrangeiras como vetores dinâmicos nos setores estratégicos em prol do desenvolvimento do capital privado nacional remetiam ao retorno do nacionalismo econômico avesso ao liberalismo, principalmente em virtude da adoção de políticas de controle e confisco cambial adotadas pelo governo. Assim, na década de 1950, Vargas buscou articular os interesses privados e públicos nacionais aos das grandes corporações multinacionais, aumentando a regulação do Estado na economia e direcionando os investimentos estrangeiros para as áreas de interesse do Estado (MENDONÇA, 1990, p. 333-334).

No plano externo, Vargas ascendeu ao poder diante do acirramento de tensões entre Washington e Moscou no contexto da Guerra da Coreia (1950-1953).108 Em decorrência do

108 Segundo Saraiva (2007), desde a divisão do país pelo Paralelo 38 que estabeleceu a República Popular Democrática da Coreia (socialista, aliada da URSS) e a República da Coreia do Sul (capitalista, aliada dos EUA), em 1948, as tensões ideológicas entre os dois países animaram a Guerra Fria nessa porção da Ásia.

conflito, o Congresso norte-americano aprovou a Lei de Controle de Assistência para Defesa Mútua, impondo embargo das nações integrante do mundo livre à exportação dos seguintes itens: armas, munições e outros artefatos bélicos; materiais de energia atômica; petróleo; materiais de transporte de valor estratégico; e itens de importância estratégica para a URSS e seus aliados. Tal orientação se baseava no entendimento de que as nações do Ocidente e aliadas a Washington deveriam colaborar para a preservação da hegemonia norte-americana diante do bloco rival soviético, cooperando para a manutenção da supremacia norte-americana no globo e, consequentemente, da paz mundial e dos objetivos das Nações Unidas. A legislação fazia menção à suspensão de qualquer ajuda econômica, militar ou financeira dos Estados Unidos aos países aliados caso fosse verificado o descumprimento do embargo, e a estas caberia cooperar irrestritamente nos termos da lei.109 Em 1950, ainda sob a gestão Dutra, houve as primeiras manifestações do governo norte-americano para que o Brasil enviasse tropas para aumentar os contingentes de combate liderados pelos Estados Unidos na Guerra da Coreia, pedido negado pelo presidente em seu último ano de governo.

Nesse sentido, a política externa do segundo governo Vargas foi inaugurada pela busca de uma revisão nas relações com os Estados Unidos. Durante seu mandato, dois nomes ocuparam o cargo de ministro das Relações Exteriores: João Neves da Fontoura (1951-1953) e Vicente Ráo (1953-1954). O país mantinha-se como aliado político da Casa Branca e do mundo ocidental de nações no contexto da ordem bipolar. Entretanto, demandaria melhor tratamento da cooperação econômica para fins do desenvolvimento industrial, priorizando as metas de industrialização nacionais. A desilusão quanto ao status de potência associada no pós-guerra, como previra erroneamente Vargas, marcou a postura crítica assumida pelo governo no quadro das relações interamericanas. O marco no início das reivindicações foi a participação brasileira na IV Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos, realizada entre março e abril de 1951, na qual havia a expectativa de superação das vantagens obtidas na negociação realizada por Osvaldo Aranha à época dos Acordos de Washington (HIRST, 1996, p. 213).

Liderados por Kim II-Sung, grupos antiamericanos na Coreia do Norte deram início a revoltas e ultrapassaram ao sul os limites estabelecidos pelo Paralelo 38. Tal ação ainda foi motivada por declarações do novo secretário de Estado norte-americano, George Marshall, de que a Coreia do Sul não estava mais incluída na linha de defesa dos Estados Unidos na região. A agressão ao governo sul-coreano de Syngman Rhee, aliado de Washington, causou indignação da ala conservadora do Congresso norte-americano, liderada por Douglas MacArthur. Por pressões de MacArthur, Truman autorizou os Estados Unidos a enviarem contingentes militares e tomarem parte formalmente no conflito, com o apoio de tropas enviadas pelo Conselho de Segurança. Moscou não se envolveu formalmente no conflito, mas o confronto acirrou as tensões entre as superpotências e trouxe a ameaça de uma nova guerra.

109 Conforme Lei Battle (embarques para o bloco soviético), s/n, s/d, Ministério das Relações Exteriores, Divisão Econômica. Maço Temático 563.80. Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro.

Em decorrência das preocupações norte-americanas quanto ao alastramento do comunismo na região, o presidente Truman requereu das nações latino-americanas o apoio necessário para o fortalecimento das relações econômicas em prol dos objetivos de defesa do hemisfério, cujas posições deveriam ser consoantes às diretrizes da política externa norte- americana. Foi o momento oportuno para Vargas reivindicar maior atenção e ação, por parte dos Estados Unidos, quanto aos problemas de desenvolvimento econômico brasileiro. O governo brasileiro associou a defesa do continente ao necessário desenvolvimento das nações mais atrasadas por meio de concessão de linhas de financiamento privilegiadas aos aliados políticos da região. Como consequência, o argumento de Vargas de que a cooperação política deveria ser traduzida em cooperação econômica assertiva deu origem ao estabelecimento de uma Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, de caráter bilateral, responsável por formular projetos de incentivo ao desenvolvimento e cujos recursos adviriam do Bird e do EximBank (CERVO; BUENO, 2011, p. 298-299).

Ademais, segundo Hirst (1996, p. 213-214), as negociações no âmbito da reunião de consulta envolveram a oferta do governo brasileiro de exportar minerais estratégicos, incluindo as areias monazíticas, em troca de financiamento para a industrialização desses recursos e para os projetos de desenvolvimento a serem recomendados pela comissão mista. O governo norte-americano, em nome da defesa hemisférica, também tinha a expectativa de que o Brasil enviasse contingentes militares para lutar na Guerra da Coreia, obtendo maior apoio do Brasil na política anticomunista perpetrada pela Casa Branca.

A ajuda financeira norte-americana não afastaria Vargas, contudo, de realizar medidas contrárias aos interesses norte-americanos no país em prol de um programa econômico que visasse ao desenvolvimento autônomo do país, inclusive em relação à aplicação da energia nuclear. De acordo com Bandeira (2011, p. 51-52), Vargas teve que administrar as pressões internas e internacionais em torno das medidas nacionalistas adotadas em seu governo, a exemplo da fixação da Lei de Remessa de Lucros e da criação de uma empresa pública para o controle da exploração do petróleo (a Petrobras), o que feria especialmente os interesses de empresas norte-americanas no país. As negociações envolvendo o suprimento de novas cargas de minérios com potencial atômico foram articuladas de modo a utilizar esses recursos como estratégia política em nome da segurança coletiva, quiçá econômica, paralelamente às diretrizes que estabeleciam as novas regras quanto à aplicação da energia nuclear no âmbito do CNPq. Concomitantemente, estabeleceram-se duas diretrizes diferenciadas quanto ao aproveitamento dos minérios atômicos, o que resultou na polarização dos atores

governamentais e em acusações inflamadas de descumprimento da lei vigente em prol do desenvolvimento científico e tecnológico nacional.