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CAPÍTULO II — O AGIR MORAL NO EXERCÍCIO DA CIDADANIA

2. Ética, liberdade e responsabilidade

2.2. Ética da responsabilidade, segundo Emmanuel Lévinas

No início do cristianismo, a proposta desenvolvida pelo apóstolo Paulo consistiu em harmonizar liberdade e responsabilidade. Na Primeira Carta que envia aos Coríntios afirma: «Posso fazer tudo, mas nem tudo me convém» (1Cor 6,12). Esta afirmação foi parte integrante das aprendizagens mobilizadas na terceira aula da Unidade Letiva 4, Promover a

concórdia. Através do projetor de vídeo, exibimos a afirmação: «Posso fazer tudo aquilo

que eu quero». Em seguida perguntámos quem concordava e quem discordava da afirmação. A maior parte dos discentes discordava, embora alguns mostrassem o desejo de efetivamente poderem fazer tudo. Na exposição, que se seguiu, apresentámos a figura do apóstolo, o seu percurso missionário na bacia do mediterrâneo, assinalando a cidade de Corinto. Em seguida dissemos que, ausente de Corinto, São Paulo escreveu uma carta aos cristãos dessa cidade onde podemos ler a afirmação referida. Com isto explicamos que, mediante várias opções possíveis, se gera a hipótese de concretizá-las todas, ainda que não em simultâneo, mas pode ocorrer que nem todas sejam convenientes, caso sejam nefastas para nós ou para os outros.

A conquista da afirmação da liberdade é fruto do cristianismo. O pensamento pagão, que ainda hoje subsiste em forma de superstição, movia-se na antiguidade clássica entre a fatalidade e o destino. O fatum greco-romano cedeu ante a Revelação, que mostra que a vontade de Deus respeita o homem como um ser livre e responsável dos seus atos. A liberdade, em sentido moral, não assenta sobre o poder fazer, mas no dever fazer. Por isso, a liberdade reflete-se na conduta ética. A postura paulina parte do princípio de que todos os seres humanos são dotados de liberdade, tendo sido criados para fazerem as suas opções livremente, de acordo com critérios ou valores pessoais. São Paulo tem consciência de que

pode fazer. As possibilidades são imensas, mas não inevitáveis. À luz da Revelação, tal

como São Paulo, o crente sabe o que deve fazer. O agir ético paulino pressupõe uma liberdade exercida com responsabilidade, dado que somente um comportamento responsável é comportamento moral113. É a fidelidade aos princípios e valores que nos permite falar de uma ética da responsabilidade. Esta responsabilidade não pode ser alheia à promoção do bem comum.

Até ao advento da modernidade, a metafísica foi preponderante no itinerário filosófico ocidental. A partir daí, constata-se uma dissociação no exercício da atividade racional que teorizava sobre o ser. A abordagem metafísica permitiu reconhecer o ser como verdade, isto é, como o ser Absoluto, passível de ser reconhecido. A partir de Descartes, a

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certeza formal da razão é a única que pode ser vista como verdadeira certeza. Esta mudança metodológica tem o seu ponto alto no pensamento kantiano, impondo ao espírito humano uma crítica da razão pela própria razão, tarefa avivada pelo idealismo, no qual a pessoa só é capaz de reconhecer em última instância a sua própria obra, como sujeito pensante. Esta posição foi superada pelo existencialismo, para quem o sujeito humano se revê e projeta nas suas ações, sentimentos e existência114.

Destacamos dois autores emblemáticos das escolas idealista e existencialista, Friedrich Hegel e Jean-Paul Sartre, com a finalidade de correlacionar a liberdade com a responsabilidade, dentro do espetro conceptual dos respetivos campos filosóficos.

No idealismo hegeliano, o fundamento da liberdade é interno ao sujeito e a ideia de liberdade encontra-se conectada com a categoria de necessidade. Aqui, a liberdade é a autodeterminação do sujeito, que se manifesta de forma concreta no agir pessoal115. Deste registo emerge a categoria de espírito, não como algo meramente abstrato, mas ativo, enquanto pensamento pessoal, que se sabe a si mesmo, está consigo, tem o seu centro em si mesmo e, enquanto assim o é, é livre. Neste espírito reside, para Hegel, a autoconsciência. Sendo o espírito atividade, a liberdade não será completa, nem plenamente realizada, se carecer de um exercício concreto, que busca o seu aperfeiçoamento, no âmbito do mundo e da história pessoal. Este entendimento de liberdade não compromete o sujeito com outrem, pelo que não se pode estabelecer uma relação direta entre liberdade e responsabilidade. Em suma, para Hegel, a consciência da liberdade é condição para a sua efetiva realização. Ao mesmo tempo, a consciência da liberdade é condição de possibilidade da sua própria realização. Assim, quanto mais consciência se tem da liberdade, mais possível se torna a sua realização.

Por seu turno, Jean-Paul Sartre, na sua hermenêutica existencial, confere à liberdade um estatuto ontológico fundamental e considera-a condição primordial da ação116. Sartre não discute se o ser humano é ou não livre, mas ocupa-se em afirmar a liberdade como um imperativo ontológico, atribuindo-lhe uma anterioridade ontológica em relação à essência. Nela articula as categorias de paixão, verdade, desejo, vontade e escolha, fazendo convergir tudo na questão da liberdade, como um espécie de determinação necessária, não como o fim de um processo, mas ponto de partida. Assim, para Sartre, a liberdade é fundamento da

114

Cf. RATZINGER, Joseph, Introdução ao Cristianismo, São Paulo: Edições Loyola, 2000, 44-60.

115

Cf. MORA, José, Liberdade, in MORA, José (coord.), Dicionário de Filosofia de Bolsillo, Madrid: Alianza Editorial, 1988, 472; cf. WEBER, Thadeu, Hegel: Liberdade, Estado e História, Petrópolis, Vozes, 1993, 192.

116

SARTRE, Jean-Paul, O ser e o nada. Ensaio de ontologia fenomenológica, Petrópolis, Vozes, 200715, 536- 592.

multiplicidade de ações, escolhas, desejos e vontades humanas117. A vontade livre não só é possível, como é condição indispensável para a realização humana plena. Se o ser humano é, e pode escolher ser, só o é e só pode escolher ser, enquanto for livre118. Portanto, liberdade absoluta e responsabilidade absoluta marcam a perspetiva existencialista de Sartre, pelo que o agir moral se enquadra no campo da responsabilidade.

Emmanuel Lévinas desliga-se destas posições. À luz da Bíblia e do Talmude, que regista a ética e os costumes judaicos, Emmanuel Lévinas concede à moral um papel preponderante na sua construção filosófica, através do reconhecimento do outro. Para ele, toda a existência é criada e, por isso mesmo, não é autónoma, mas dependente. Dado que o Criador é maior que a criatura e retém uma perfeição superior, todos tendemos, por vocação criacional, a aspirar a uma perfeição última, infinita, transcendente e absoluta. Como veremos, esta é alcançada exclusivamente através de uma via única, mas com dois destinos. A via exige, para Lévinas, o sair de si mesmo para ir ao encontro do outro. O duplo destino é o outro e o absolutamente Outro, isto é, o Criador. Assim, a aspiração à perfeição é também evocada por Santo Agostinho, nas «Confissões», como inquietude119: «Criaste-nos para ti e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousar em ti». Para Lévinas, esta aspiração é um imperativo que apela ao diálogo com o outro e o absolutamente Outro, através do amor oblativo. Neste enquadramento, o outro e o absolutamente Outro não são vistos como objeto, mas como outro sujeito.

Partindo da tradição do pensamento crítico europeu, aludindo ao «cogito» cartesiano120, Lévinas chega ao conceito de liberdade, não com o objetivo de uma clara demonstração ou formulação do conceito, mas para o operacionalizar, pois, para este autor, «justificar a liberdade não é demonstrá-la, mas torná-la justa»121. A liberdade é uma realidade humana necessária incontestável, que não admite limites:

«A espontaneidade da liberdade não se põe em questão. Só a sua limitação seria trágica e faria escândalo. A liberdade só se põe em questão na medida em que se encontra de algum modo imposta a ela própria: se eu tivesse podido ter escolhido livremente a minha existência, tudo estaria justificado»122.

117

Cf. Ibidem, 732-750.

118

Cf. MORA, José, Liberdade, in MORA, José (coord.), Dicionário de Filosofia de Bolsillo, Madrid: Alianza Editorial, 1988, 472.

119

«Fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te»: AUGUSTINUS, Aurelius,

Confessionum, Estugarda: Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana, 1969, I, 1, 1, 1.

120

Cf. LÉVINAS, Emmanuel, Totalidade e infinito, Lisboa: Edições 70, 1980, 72.

121

Cf. Ibidem, 70.

122

Se, por um lado, é verdade que a tradição do pensamento europeu sente a limitação da liberdade como trágica e escandalosa, por outro lado, também se verifica que o espontâneo e desordenado exercício da liberdade tem provocado situações trágicas. Lévinas tem presente, por exemplo, o uso indecoroso da liberdade pelo sistema nazi, quando se impôs sobre a Europa, numa voracidade irrefreável. A liberdade do eu, quando se expande pode decepar a liberdade do outro. Esta dificuldade é superada por Lévinas propondo o respeito pela alteridade do outro:

«Uma relação tal com o ser, que o ser cognoscente, deixa o ser conhecido manifestar-se, respeitando a sua alteridade e sem o marcar, seja no que for, pela relação de conhecimento»123.

Na relação com o outro existe o perigo de o sujeito absorver, de algum modo, o objeto e, assim, o reduzir a mero produto de si mesmo. Esta postura atingiu o extremo no idealismo solipsista124, em que o outro perde a sua alteridade pura, ficando preso no círculo da abrangência do sujeito. A proposta levinasiana implica a impugnação livre desta possibilidade pela presença do outro, que se impõe, o que coloca limites à própria liberdade. Ou seja, acolher outrem é por a nossa liberdade em questão. A isto chama Lévinas ética da alteridade125, que acarreta o cuidado por conhecer o ser conhecido sem o marcar com as notas do cognoscente. Posição que equivale ao total respeito pela alteridade do outro, abrindo espaço à liberdade do outro, pelo acolhimento126.

Em suma, liberdade é uma característica fundamental do ser humano. O seu uso, na convivência com o outro, pode levar ao desentendimento e provocar dificuldades. Por isso, o exercício da liberdade, para ser responsável, deve respeitar o exercício da liberdade dos outros e a procura do bem comum127.