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CAPÍTULO II — O AGIR MORAL NO EXERCÍCIO DA CIDADANIA

2. Ética, liberdade e responsabilidade

2.4. Bem comum, paz e justiça

Quando lecionámos a Unidade Letiva 2, sobre o tema da A água, fonte de vida verificámos que, no que diz respeito à utilização deste bem natural, os discentes evidenciaram ter noção dos valores cívicos a ele associados, entre os quais a necessidade não só de o não desperdiçar como recurso escasso, mas também de o preservar da contaminação. Isto significa que encontrámos na consciência dos alunos a noção de bem comum, já estabelecida liminarmente na forma cívica de utilização da água.

A justiça na repartição deste bem, por não ser um dado adquirido para a toda a humanidade, deixa em aberto um espaço à ação solidária, pois ela é «vital e insubstituível para todos os seres vivos, especialmente para os humanos, que têm direito ao acesso a ela»133. A possibilidade de partilhar a água, com um sentido de justa distribuição e utilização, foi debatida com os alunos e alunas e, de certa forma, experimentada em aula. Efetivamente, na primeira das quatro lecionações desta Unidade Letiva, foi entregue um copo a todos os discentes e distribuída água apenas a 16, fincando 4 alunos com os copos vazios. Esta estratégia teve o propósito de alertar para o facto de que nem toda a população mundial tem acesso a água potável. Em seguida, numa dinâmica alinhada com o modelo de aprendizagem ativa, pediu-se aos alunos e alunas que tinham água nos seus copos que descobrissem um modo de fazer com que não faltasse água nos copos de nenhum colega. Imediatamente teve início uma espontânea ação de partilha da água, daqueles que a tinham

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BOFF, Leonardo - ESCOTO Miguel, Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade, Artigo 5, disponível em: http://www.wftl.org/pdf/declaracao_boff_e_escoto.pdf. Acedido em: 01 de maio de 2013.

com aqueles que não tinham água, dando, deste modo, solução ao problema que o docente havia levantado e permitindo sublinhar a partilha como um valor humano.

Partimos deste exemplo simples, mas real, colhido de uma das nossas lecionações, para mostrar que, mesmo discentes do segundo ciclo têm uma ideia aproximada não só de bem comum, mas também de justiça, como um valor e uma virtude. Nas palavras de Paul Ricoeur, a ideia de justiça aponta no sentido da felicidade: «Ter a justiça por uma virtude e valor, ao lado da prudência da temperança — para evocar o famoso quadro medieval das virtudes — é admitir que ela contribui para orientar a ação humana para um cumprimento, uma perfeição da qual a noção popular de felicidade oferece uma ideia aproximada»134.

Entre os deveres do aluno inscritos no recente Estatuto do Aluno e Ética Escolar consta o de «contribuir para a harmonia da convivência escolar e para a plena integração na escola de todos os alunos»135. Este princípio faz com que, na escola, alunos e alunas se tornem agentes ativos de cidadania, implicados na procura dos valores que nutrem e dão sentido ao bem comum, à paz e à justiça interpares.

O Concílio Vaticano II apresenta-nos uma definição de bem comum que desejamos, desde já adotar:

«O bem comum, compreende o conjunto das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição»136.

Em consequência, o bem comum integra um conjunto de condições sociais como, entre outras, a paz, a justiça, o reconhecimento das liberdades fundamentais e a segurança. Integra ainda um conjunto de direitos fundamentais, como, por exemplo: trabalho, alimentação, saúde, ensino e cultura. Estas condições sociais não se referem unicamente ao indivíduo, mas também à família e às associações. Por outro lado, quando se invadem os direitos ou se arruínam as condições sociais de um indivíduo, quebra-se o primeiro princípio do bem comum, que consiste em facilitar a perfeição de cada pessoa. Efetivamente, conforme diz João Paulo II:

«Cada pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-28) e por conseguinte orientada radicalmente para o seu Criador, está em relação constante com quantos se encontram revestidos da mesma dignidade. Assim, a promoção do bem do indivíduo

134

RICOEUR, Paul, Amor y Justicia, Madrid: Caparrós Editores, 1990, 37-38.

135

Lei n.º 51/2012, de 05 de setembro, in Diário da República, I Série, 172 (2012) 5105.

136

SACROSANCTUM CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II, “Constitutio Pastoralis Gaudium et spes”, n.º 74, in AAS, 58 (1966) 1025-1115, 1096.

conjuga-se com o serviço ao bem comum, quando os direitos e os deveres se correspondem e reforçam mutuamente»137.

O bem comum não resulta da soma dos bens totais dos cidadãos, mas é um valor novo resultante de uma conceção de vida social que não se identifica nem com o bem individual, nem com a soma dos bens particulares. Não se trata, pois de uma questão entre o individualismo e o coletivismo, mas uma síntese que harmoniza indivíduo e sociedade. Este princípio parte da antropologia que explica o ser humano na sua singularidade de indivíduo e na dimensão social da pessoa. Por isso, no plano teórico, não pode haver contraposição entre bem particular e bem comum.

O conflito surge na vida prática quando se trata de harmonizar a esfera privada com a esfera pública, particularmente quando entram em colisão os direitos pessoais com as exigências da sociedade. Habitualmente, o bem comum demanda que o bem particular ceda, ante um bem maior. Algo similar deve ser considerado em relação aos grupos, conforme diz a mensagem de João Paulo II para o Dia Mundial da Paz de 1979:

«Os interesses legítimos de determinados grupos devem ter em consideração também os interesses legítimos de outros grupos aos quais digam respeito e as exigências do bem comum superior»138.

O exercício da cidadania é sustentado por um corpo de valores e de virtudes aceitáveis universalmente, que concorrem também para a construção do bem comum e da concórdia: união, harmonia, entendimento, acordo, conciliação e paz. Para prevenir conflitos e violência na escola, é necessário que a concórdia comece a ser vivida como um valor a promover, pois, como diz o número 495 do Compêndio da Doutrina Social da Igreja: «só num clima difuso de concórdia e de respeito pela justiça, pode amadurecer uma autêntica cultura de paz»139. Um clima de paz pressupõe que todos os alunos e alunas se sintam acolhidos e integrados. Como preconizam alguns autores, também nós acreditamos que, à medida que se progride em igualdade e solidariedade, se verifica um decréscimo da violência em geral140.

137

JOÃO PAULO II, No respeito dos Direitos Humanos o segredo da verdadeira paz. 1 de janeiro de 1999, in Mensagens para a Paz. Textos de Paulo VI a João Paulo II, Lisboa: Principia, 2002, 263-264.

138

JOÃO PAULO II, Para alcançar a paz, educar para a paz. 1 de janeiro de 1979, in Mensagens para a

Paz. Textos de Paulo VI a João Paulo II, Lisboa: Principia, 2002, 84.

139

CONSELHO PONTIFÍCIO JUSTIÇA E PAZ, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n.º 495, Cascais: Editora Principia, 2005, 312.

140

ARREGI, Goenaga, Los Jóvenes y la violencia, in PANTOJA, L. (org.), Nuevos espacios de la educación