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ÉTICA DO DISCURSO, SENSIBILIDADE À DIFERENÇA E OUTRO GENERALIZADO

RACIONALIDADE JURÍDICA ENTRE DIREITO E MORAL EM JÜRGEN HABERMAS

2. ÉTICA DO DISCURSO, SENSIBILIDADE À DIFERENÇA E OUTRO GENERALIZADO

Como segundo passo do exame proposto, far-se-á agora um breve apanhado da ética do discurso, mantendo a ênfase da consideração no tipo de alteridade que esta abordagem é capaz de incorporar. Como se verá, trata-se de outra versão do outro generalizado, embora mais dialógica e inclusiva que na matriz kantiana.

Neste apanhado, dar-se-á exclusiva atenção à versão da ética do discurso proposta por Habermas, só levando em conta as contribuições de Apel, Alexy, Günther etc. na medida em que estas já se mostram na formulação habermasiana. Embora sabendo que, ao longo dos anos, esclarecimentos, modificações e acréscimos foram feitos por Habermas, incluindo a importante reformulação dos princípios D e U, tratar-se-á a ética do discurso, para fins desta breve explicação, como um corpo uniforme e estático de teses. Para este estudo, serão tratados como principais os textos: “Notas programáticas para a fundamentação de uma Ética do Discurso”, em Consciência moral e agir comunicativo (1983); Comentários à ética do discurso (1991); e a versão reformulada exposta no Cap. V de Direito e Democracia: Entre facticidade e validade (1992), à qual se dará preferência para a formulação dos princípios.

A exemplo da ética kantiana, a ética do discurso é, além de cognitivista, também formalista, universalista e deontológica. Não examina máximas subjetivas, e sim normas gerais. Mas considera que estas são válidas não quando promovem algum fim valioso ou quando produzem consequências de felicidade, mas quando atendem a certos critérios, neste caso, os princípios do discurso (D) e de universalização (U). Reivindica independência em relação a contextos éticos, históricos e culturais particulares, valendo para qualquer falante capaz de propor, aceitar, criticar e rejeitar razões por meio da linguagem. Não impõe requisitos de corporeidade, individuação ou socialização, nem está disposto a levar em conta diferenças trazidas por estes processos. Além disso, deixa para o indivíduo a determinação das questões de vida boa, atendo-se exclusivamente ao que é obrigatório em termos de justiça no espaço público.

Seu ponto de partida é que quem quer que use da linguagem para chegar a um acordo com outro com base em razões precisa assumir, desde o princípio, uma série de pressupostos pragmático-transcendentais implícitos, na ausência dos quais a discussão seria impossível: tem

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que supor que o outro é livre para aceitar ou rejeitar razões; que o outro está em igual posição ao falante e que sua opinião tem tanto valor quanto a dele; que não pode conhecer de antemão a posição e as razões do outro, sem deixá-lo falar por si e trazer à discussão a contribuição de seu ponto de vista e experiência singular; que a condição do outro de ser afetado pelo resultado da discussão e capaz de tomar parte nela basta para que sua inclusão seja obrigatória etc. Estes pressupostos, de liberdade, igualdade, diferença e inclusão, estão sempre e necessariamente presentes em qualquer uso da linguagem para alcançar consenso racional com o outro.

Além disso, como a dimensão pragmática da linguagem faz com que cada afirmação feita no discurso carregue consigo a pretensão de convencer o ouvinte de que ela é aceitável, pode-se arrolar certas pretensões de validade que estão sempre em jogo nos enunciados dos falantes. A primeira é a pretensão de verdade, isto é, de que aquilo que se diz pode ser intersubjetivamente comprovado como verdadeiro por comparação com o mundo objetivo que todos os falantes compartilham. A segunda é a pretensão de correção, de que aquilo que se diz está em conformidade com normas e princípios aceitos pelos falantes como parte de seu mundo sócio-histórico-cultural. E a terceira é a pretensão de veracidade ou sinceridade, de que aquilo que se diz corresponde às crenças e vivências do mundo subjetivo do falante, que, embora diretamente inacessível para os demais, se revela indiretamente para eles em seus comportamentos e atitudes, anteriores e posteriores ao enunciado. Por fim, além de pretender verdade, correção e sinceridade, cada enunciado carrega também a pretensão de inteligibilidade, de que pode ser compreendido pelos outros falantes ou de que, se não pode, pode ser esclarecido por enunciados adicionais ou substitutivos.

Desta forma, ao lado dos pressupostos de liberdade, igualdade, diferença e inclusão que um falante deve assumir perante o outro, há as pretensões de verdade, correção, sinceridade e inteligibilidade que cada enunciado do falante deve carregar. Em ambos os casos, o sentido deste “deve” não é normativo, e sim transcendental fraco: não se trata de uma norma que se deve seguir, à qual se poderia obedecer ou não, mas de um pressuposto que se precisa assumir, sob pena de contradição performativa entre o que se diz e as condições pragmáticas e intersubjetivas de validade do que é dito.

Supondo, então, falantes que se engajassem num discurso prático racional para avaliar se certas candidatas a normas gerais mereceriam ou não sua aprovação, a ética do discurso indica dois princípios que teriam que ser observados. O primeiro, o princípio do discurso,

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chamado Princípio D (que, segundo Habermas, tem caráter pré-moral, apenas pragmático-discursivo, capaz de valer para o discurso moral e para qualquer outro discurso prático: ético, pragmático, negocial, jurídico etc.), admite como válidas somente as normas cujas consequências de sua observação generalizada pudessem ser aceitas por todos os possíveis afetados. Já o segundo, o princípio de universalização, chamado Princípio U (que Habermas reconhece ser uma exigência exclusiva do discurso moral), exige que as normas somente sejam consideradas válidas se todos os possíveis afetados puderem aprovar suas consequências para os interesses de cada um colocando-se, para isso, no lugar e na perspectiva de todos os demais. Estes princípios, no assunto que toca este estudo, que é a alteridade, não apenas exigem a participação de (e a consulta real a) cada um dos afetados na discussão sobre a norma, mas também tornam igualmente relevantes os pontos de vista e experiências de todos eles, na medida em que a validade da norma se torna dependente de sua aprovação universal. Rompe-se, a princípio, com o casulo monológico da ética kantiana para tornar indispensável o diálogo com o outro, cujo ponto de vista e cujas razões não podem, também a princípio, ser simplesmente presumidos num raciocínio moral silencioso e solitário. Não se trata do outro virtual, que é apenas uma segunda instância do mesmo, presumível a partir do mesmo, mas do outro real (embora não concreto), que comparece e fala com voz própria, trazendo à discussão vivências e razões que podem ser diversas das que se estaria disposto a levar em conta até então e inteiramente surpreendentes para o coparticipante. Abre-se a porta, então, para uma alteridade imprevisível.

Além disso, o Princípio U manda que se adote o ponto de vista de todos e cada um dos afetados. O falante não tem apenas que ouvir razões e vivências diversas da sua, mas tem também que aprofundar seu descentramento ao adotar a posição do outro para avaliar se elas fazem sentido. Há não só mais abertura, como também mais aprendizado para cada falante. Ele se deixa tocar e modificar pelo discurso do outro.

É verdade que boa parte dos usos que se fazem da ética do discurso para demonstrar por que certa candidata a norma geral não seria válida se baseia numa versão silenciosa e solitária de aplicação dos princípios D e U, presumindo que tal ou tal afetado não daria sua aprovação à dita norma. Normas, por exemplo, que excluíssem as mulheres de votar, os homossexuais de casar ou os negros de frequentarem escolas e universidades. Sem questionar o mérito destas

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presunções, nestes casos é um outro presumido, segunda instância do mesmo, que acaba sendo levado em conta.

A situação se agrava quando se considera a afirmação, que Habermas faz em Direito e Democracia (1992), de que há uma complementaridade funcional entre moral racional e direito positivo, em que este complementa alguns déficits cognitivos, motivacionais e organizativos que aquela possui. A propósito do déficit cognitivo, Habermas diz que os princípios da moral racional só fornecem orientação adequada para situações ordinárias da interação social, que não suscitam maior complexidade nem despertam maior divergência. Para estes últimos casos, mais desafiadores e fronteiriços, apenas o direito positivo fornece orientação prática generalizada. Ora, entre outras coisas, isso quer dizer que boa parte das questões morais mais urgentes e controversas, como questões bioéticas e identitárias, estão fora do que leque de assuntos para os quais uma ética universalista de princípios pode dizer o que é ou não correto. Como estas seriam as questões em que a inclusão e oitiva do outro real seriam mais necessárias e transformadoras, este déficit cognitivo da moral racional limita o papel da alteridade aos casos em que a consideração ou violação dos interesses do outro são mais patentes e presumíveis, o que enfraquece o ganho aparente que a abordagem parecia trazer.

Algo semelhante pode ser dito em relação ao déficit organizacional: Se diante de problemas cuja solução exige atuação institucional e transformação estrutural a moral racional tem pouco ou nada a dizer, então, problemas como o racismo, o patriarcado e a heteronormatividade só poderão achar solução no direito positivo. Negros, mulheres e homossexuais não podem desafiar as normatividades injustas prevalentes por meio da inclusão de alteridade da ética do discurso, pois esta se limita a questões que possam ter abordadas e solucionadas dentro do âmbito de ação individual e cotidiano.

Então, sim, por um lado a alteridade da ética do discurso se tornou, comparada à da ética kantiana, mais dialógica e inclusiva, trocando a presunção pela consulta real ao outro, expondo-se, inclusive, a seu discurso diverso e surpreendente. Por outro, o modo como a ética do discurso costuma ser usada e os déficits funcionais que confessa ter são um retrocesso ou frustração da mesma alteridade que ela anuncia ter ampliado. Aquela passagem do outro virtual para o real, do outro presumido para o imprevisível, do outro que se projeta para aquele com que se aprende, se mostra menor do que parecia.

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Contudo, claro, do ponto de vista do interesse desta análise, a constatação mais importante é que o outro cuja consideração se tornou mais dialógica e inclusiva é, no entanto, ainda o outro generalizado, que reproduz a exclusão feminina. Por três razões.

Primeiro, porque a ética do discurso é uma ética universalista de princípios. Seu legalismo e racionalismo se inspiram no modelo kantiano, tendo com este apenas uma diferença de grau, mas não de proposta. Pessoas e relações não são levados em conta. Círculos de cuidado, confiança e lealdade são irrelevantes. O raciocínio moral mais próprio da experiência feminina não tem lugar em sua lógica discursiva. Seus participantes comparecem na condição de falantes universais, que têm para com cada um os mesmos deveres que teriam para com todos os outros.

Segundo, porque a ética do discurso não leva em conta indivíduos cuja identidade é corporificada e cuja individuação e socialização é atravessada pelo sistema sexo-gênero. Seus participantes comparecem na simples condição de falantes capazes de razão e de linguagem. A condição moral da qual irradiam seus problemas e reivindicações não está marcada em seus corpos nem modalizada por seu lugar social. Mesmo que tragam à tona as injustiças que sofrem, estas serão propostas e discutidas na condição de injustiças que poderiam estar ocorrendo a qualquer dos outros.

E terceiro, porque a ética do discurso mantém a distinção entre questões de justiça do âmbito público e questões de vida boa do âmbito privado. Embora, em tese, questões sobre a cultura de assédio, a objetificação do corpo e a assimetria salarial das mulheres possam ser discutidas como questões de justiça (mesmo que seja da forma legalista, racional, incorpórea e impessoal já citada), questões sobre inferiorização, desigualdade e violência no âmbito doméstico, nas relações pessoais e familiares, podem ainda usar o escudo da separação público-privado para se imunizarem contra crítica sob o disfarce de questões de vida boa. Desta forma, reproduz a autorização para os homens da vida ética dupla, do respeito entre livres e iguais na vida pública e da exclusão, dominação e exploração unilateral na vida privada.

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