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A MORALIZAÇÃO OU MATERIALIZAÇÃO DO DIREITO

RACIONALIDADE JURÍDICA ENTRE DIREITO E MORAL EM JÜRGEN HABERMAS

1. A MORALIZAÇÃO OU MATERIALIZAÇÃO DO DIREITO

Na modernidade, o direito não se relaciona mais de perto com uma tradição que possa lhe fornecer de fora, ou seja, factualmente, sua base normativa a fim de integrar a sociedade. O direito racional é aquele que retira sua legitimidade de uma auto-certificação reflexiva, ou seja, de uma justificação que possa ser aceita racionalmente por cada indivíduo, sem referências heterônomas. Portanto, na modernidade, as normas jurídicas não têm mais sua legitimidade fundada fora da reflexividade. Isso já permite ver que certa racionalidade atravessa o direito. Ocorre que essa reflexividade, do ponto de vista da filosofia da ação, apesar de racional, ainda passa por uma relação de subordinação do direito para com a moral, fazendo com que o direito

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tenha que se remeter a uma validade que não lhe é própria. A racionalidade que atravessa o direito ainda tem em vista discursos práticos morais para justificar a ação dos indivíduos. Desta forma, o direito é visto sob o ângulo de uma razão prática que, como esfera moral superior, lhe confere imediatamente normatividade. O direito acabava se fundamentando exclusivamente pela moral.

Esse é, por exemplo, o caminho percorrido por Kant, que relaciona direito racional e filosofia do sujeito para que, partindo de leis da razão prática, possa legitimar as liberdades subjetivas de ação dos indivíduos. Sua teoria do direito se submete ao imperativo categórico, do qual se inferem os direitos subjetivos de cada um. O direito que se encontra submetido a imperativos da razão pressupõe, por isso mesmo, um direito natural deduzido aprioristicamente da razão prática. Enfim, uma lei geral da liberdade vigora por sobre as liberdades subjetivas, e é dessa lei geral que se desdobra a legitimidade do direito. O direito natural de Kant não advém de um ambiente metafísico-religioso, tal como ocorre antes da modernidade, mas permanece pensando uma moral racional que submete o direito a uma validade deontológica, a qual, por sua vez, sustenta as relações sociais vividas por pessoas morais como sujeitos de direitos possuidores de um espaço de ação livre de qualquer restrição advinda de outro arbítrio ou mesmo da autoridade constituída. É neste espaço que se encontra a liberdade jurídica, deduzida de uma autorização dada pela lei moral. Portanto, no limite, uma teoria moral superior oferece as diretrizes a serem seguidas pelos destinatários das normas jurídicas, tidos como pessoas morais portadoras de arbítrios que, por vezes, se chocam:

Na sua “Introdução à metafísica dos costumes”, Kant procede diferentemente. Ele parte do conceito fundamental da lei da liberdade moral e extrai dela as leis jurídicas, seguindo o caminho da redução. (...) Segundo Kant, o conceito do direito não se refere primariamente à vontade livre, mas ao arbítrio dos destinatários; abrange a relação externas de uma pessoa com outra.1

A ideia kantiana é que existe um espaço de ação assegurado por um direito natural. Nesse espaço de ação os interesses fluem, sendo apenas limitados de acordo com a lei, uma vez que a coerção pode ser autorizada por acordo originário. O próprio direito moderno surge desse espaço de ação, pois tem em sua base direitos privados, tais como o contrato e a propriedade, que conduzem a uma concepção de direitos subjetivos como limites ao arbítrio de outrem e à

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atuação da autoridade estabelecida nos limites da lei. É um verdadeiro espaço de liberdade conferido ao indivíduo que levanta a ideia de que tudo o que não é proibido é permitido, sendo que o proibido só pode ser baseado em princípios morais fundamentais.

Esses direitos subjetivos foram endossados pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e mais tarde recebidos como direitos humanos. Ora, com essa concepção restrita de liberdade, qual seja, a liberdade jurídica como espaço livre de ação, o direito não pode pensar uma racionalidade que lhe seja própria, sendo deduzido de uma lei geral determinada pela razão, ou seja, de um direito natural, de uma razão pura prática:

No artigo 4 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, podemos ler o seguinte: “A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudica a um outro. O exercício dos direitos naturais de um homem só tem como limites os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo de iguais direitos. Esses limites só podem ser estabelecidos através de leis”. Kant apóia-se neste artigo, ao formular o seu princípio geral do direito, segundo o qual toda ação é equitativa, quando sua máxima permite a convivência entre a liberdade de arbítrio de cada um e a liberdade de todos, conforme uma lei geral.2

Enfim, na modernidade, o direito é visto de uma perspectiva instrumental como uma norma de ação secundária, pois submetida e determinada por uma norma de ação superior, a qual lhe confere legitimidade. Na verdade, o direito configura uma cópia da moral, pois se legitima exclusivamente por ela. “Subjaz a essa construção a idéia platônica segundo a qual a ordem jurídica copia e, ao mesmo tempo, concretiza no mundo fenomenal a ordem inteligível de um ‘reino de fins’.” 3

Várias são as consequências desse modo de pensar o direito, pois sua legitimidade acaba ficando restrita a um conteúdo moral, sendo que este, diante da complexidade cada vez maior das sociedades, e dos vários discursos práticos que fundamentam as pretensões de validade levantadas nessas sociedades – como vimos anteriormente – não pode dar conta sozinho da integração social, uma vez que suas exigências morais são fardos demasiadamente pesados para indivíduos vistos como sujeitos racionais solipsistas. Se, por um lado, exigências morais cognitivas, motivacionais e organizacionais pesam sobre sujeitos racionais na modernidade,

2 Habermas, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. 1, 2012, pp. 113-114.

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por outro lado, esses sujeitos se encontram em sociedades plurais cada vez mais complexas, inclusive do ponto de vista procedimental e, por isso, incorporam justificações práticas também complexas para suas ações. A moral não pode mais ser vista como a única fonte para a validade das normas de ação, sem bem considerar uma teoria da sociedade que engloba o direito, sobretudo por conta de seu aspecto ambíquo.

Claro que certa universalidade deve existir, mas a moralização do direito, ou seja, sua materialização, parece não acompanhar o próprio processo de racionalização da modernidade. Ao mesmo tempo em que o direito se afasta da moralidade, precisa dela para obter seu fundamento. Na ótica de Habermas, o direito, ao menos em seu procedimento, não pode violar a moral, o que não significa subordinar-se a ela. É possível ao direito respeitar a moral sem se vincular, mas será que pra isso é preciso descolar o direito da moral, assumindo certa concepção positivista do direito? A complementaridade entre as duas normas de ação não seria exatamente o direito possuir um núcleo procedimental discursivo que mantém um ponto de vista imparcial sem se subordinar à moral? Aceitar a complementaridade entre direito e moral de uma perspectiva discursiva não seria se afastar de uma concepção positivista e assumir uma racionalidade própria ao direito que não contrarie a moral, uma vez que esta permanece em seu bojo via procedimento ou mesmo como um dos discursos práticos institucionalizado?

2. OUTRA CONCEPÇÃO DE PODER, OUTRA RACIONALIDADE E OUTRO

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