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AS ORIGENS OU COMO TUDO ISSO COMEÇOU

O CONCEITO DA ESFERA PÚBLICA DE HABERMAS EM UMA PERSPECTIVA FEMINISTA E O DIREITO À CIDADE

1. AS ORIGENS OU COMO TUDO ISSO COMEÇOU

A respeito da organização da família entre os povos primitivos Engels em a Origem da Familia, da Propriedade Privada e do Estado, destaca:

Em todas as formas de família grupal, não se sabe ao certo quem é o pai de uma criação, mas sabe-se bem quem é a mãe. Mesmo que esta considere suas todas as crianças da família e tenha obrigações de mãe para com todas elas, ela distingue das demais crianças que ela própria gerou. Está claro, portanto,

7 Em 2018, segundo um levantamento do Datafolha, encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 16 milhões de mulheres acima de 16 anos sofreram algum tipo de violência: 3% ao se divertir num bar, 8% no trabalho, 8% na internet, 29% na rua e 42% em casa. https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/02/26/mais-de-500-mulheres-sao-agredidas-a-cada-hora-no-brasil-diz-pesquisa.ghtml Acessado em 15/09/2019

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que, enquanto existe casamento grupal, é possível comprovar a linhagem apenas pelo lado materno e, portanto, somente a linha materna é reconhecida9. Alguém poderia questionar a relevância de nos voltarmos para Engels neste momento. Embora a relação ainda que tensionada entre marxismo e feminismo tenha sido sempre profícua para o avanço das lutas e a produção do conhecimento, nos últimos 10 anos mais ou menos essa relação se intensificou a partir da necessidade de novas sínteses, relativamente ao ideário feminista produzido em anos anteriores.10

Engels prossegue associando o surgimento do excedente da produção, com a criação de riqueza e a mudança de padrão na organização da família, uma vez que a produção desse excedente ficou associada exclusivamente ao homem e, ainda que em grossas pinceladas, abriu-se o caminho para o questionamento do direito materno no caso da herança em razão do surgimento da propriedade privada.

A derrubada do direito materno representou a derrota do sexo feminino no plano da história mundial. O homem assumiu o comando também em casa, a mulher foi degradada, escravizada, tornou-se escrava do desejo do homem e mero instrumento de procriação. Essa posição humilhante da mulher, que aflora principalmente entre os gregos do período heróico e, mais ainda, do período clássico, foi gradativamente floreada e dissimulada e, em parte, revestida de formas atenuadas; mas de modo algum foi eliminada.11

Tendo em vista que a sucessão pelo direito materno contemplava os graus de parentesco dela, quando o controle do excedente e da propriedade passa a ser assumido pelo homem, este vai promover uma sucessão ligada diretamente a ele. E é assim que em seguimento surge o casamento monogâmico para garantir uma geração de filhos com paternidade inquestionável. Na consolidação da família monogâmica o laço matrimonial não pode ser dissolvido quando aprouver a qualquer das partes. Só o homem pode repudiar a esposa da mesma forma que a infidelidade conjugal também lhe é permitida. No caso da mulher qualquer prática fora do casamento passaria a ser castigada com uma severidade sem precedentes.

9 Engels, Friedrich A Origem da Familia E, da Propriedade Privada e do Estado p. 48.

10 Moschkovich, Marilia p. 173

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O casamento monogâmico (...) entra em cena como a subjugação de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, desconhecido em toda a história pregressa. Em um artigo manuscrito inédito, elaborado por Marx e por mim em 1846, encontro o seguinte: A primeira divisão do trabalho foi a que ocorreu entre homem e mulher visando à geração de filhos. E hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher no casamento monogâmico e a primeira opressão de classe coincide com a do sexo feminino pelo sexo masculino. O casamento monogâmico foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, inaugura, ao lado da escravidão e da riqueza privada, a época que perdura até hoje, em que cada progresso constitui simultaneamente um retrocesso relativo, em que o bem estar e o desenvolvimento de uns se impõem pela dor e opressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza dos antagonismos e das contradições que nela se desdobrão plenamente.12

Lutas e enfrentamentos entre homens e mulheres têm ocorrido desde então ao longo da história. É possível destacar alguns exemplos nas lutas de envergadura mais significativas, como a partir da modernidade iluminista. Tania Morin em seu livro Virtuosas e Perigosas, afirma que, à despeito da participação das mulheres na revolução francesa a Declaração dos Direitos do Homem nunca as atendeu, ainda que avançasse em algumas concessões como o divórcio não instituia o direito a voto e nem a participação política na Assmbléia Constituinte. Olympe de Gouges que escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, dizendo que se a mulher tinha direito de subir ao cadafalso, também deveria ter o direito de subir na tribuna, foi guilhotinaa em 1793 acusada de se esquecer das virtudes de seu sexo.

Na revolução russa, os ideais compartilhados de libertação da mulher no inicio do exercício do poder tiveram de enfrentar duas guerras: uma interna e outra externa que levaram um sofrimento profundo ao povo russo em especial a fome acompanhada de toda sorte de privações. Mesmo assim o Código do Casamento, da Familia e da Tutela ratificado em 1918 varreu séculos de dominação patriarcal e eclesiástica e firmou uma nova doutrina baseada em direitos individuais e igualdade de gênero. Todo esse processo está descrito no livro de Wendy Goldman.13

Contudo a premência de resolver o problema principalmente da fome de forma mais imediata, resultou em várias concessões e beneficios adicionais aos camponeses em regime de

12 Idem, p. 68

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propriedade privada, em lugar de avançar para a coletivização da agricultura e a extinção da propriedade privada. Ora a propriedade privada é razão de ser docasamento monogâmico,por sua vez elemento de sustentação do capitalismo, e o que acabou acontecendo foi a extinção por Stalin em 1930 do Zhenotdel, organismo encarregado do debate sobre as condições da mulher e da família. Daí para frente aconteceram retrocessos sucessivos.

Essas são lições que não podemos esquecer sob o risco de repetir os mesmos erros.

Nesse sentido, o tensionamento presente no modelo atualmente estabelecido, associado a uma critica política e estrutural desse modelo enquanto dispositivo da manutenção do capitalismo, parece absolutamente necessário, para não cometermos o mesmo erro duas vezes. Afinal, se desejamos construir uma nova sociedade inteiramente baseada em novos princípios, porque isso não se aplicaria a absolutamente todas as relações sociais – inclusive o gênero, a sexualidade e o parentesco.14

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