• Nenhum resultado encontrado

A Índia no Contexto Regional e Mundial

2. Capítulo II – O Protagonismo dos BRICS na Cena Internacional

2.3 Índia – A China do Futuro?

2.3.2 A Índia no Contexto Regional e Mundial

A Índia, segundo Barry Buzan56, ainda é fundamentalmente uma potência regional num complexo com duas grandes potências: a China e o Japão. A realidade da última década demonstra que a ação da Índia está, de facto, bastante condicionada por estes dois atores regionais e mundiais. Além disso, tem ainda de enfrentar o maior desafiador à sua liderança regional no sudeste asiático: o Paquistão. A questão está em saber se estes constrangimentos regionais colocam a Índia num plano exclusivamente regional, ou se, por outro lado, a crescente força económica, política e nuclear da Índia anula estes constrangimentos e a coloca num plano cada vez mais internacional.

A China é o primeiro elemento a ter em conta neste complexo. Apesar da recente cooperação entre a Índia e a China no desenvolvimento dos BRICS, a verdade é que subsistem tensões regionais históricas que provam precisamente o contrário em relação à homogeneidade deste grupo. As rivalidades entre os BRICS começam sobretudo entre estes dois gigantes asiáticos.

Em primeiro lugar, importa recordar que a Índia e a China travaram uma guerra – em 1962 – num conflito fronteiriço que terminou com a derrota da Índia. Antes, em 1959, a Índia já assumira uma posição contrária a um dos grandes objetivos políticos da China: a ocupação do Tibete. Precisamente em 1959, a Índia concedeu asilo político ao

56

“Asia contains two great powers (China and Japan) and a third state (India) that is the leading aspirant to elevation from regional to great power standing.” Barry Buzan, Regions and Powers: The Structure of International Security, Cambridge University Press, Cambridge, 2003, p. 93

Dalai Lama e a cerca de cem mil tibetanos, numa afronta ao poder político chinês e tornando o Tibete numa disputa regional57. Atualmente – e apesar da recente renúncia do Dalai Lama à liderança política do Tibete, em Março de 2011 (permanecendo apenas como líder religioso) – o facto é que a Índia continua a controlar o Tibete do Sul, uma pequena área territorial contestada pela China. A esta disputa acrescem ainda os testes nucleares realizados pela Índia, em 1998, e a sua subsequente auto-declaração enquanto potência nuclear, gerando uma reação hostil por parte da China cujo poder nuclear fica evidentemente contrabalançado. Resta, por fim, referir a presença indireta da China no conflito Índia – Paquistão, sob a forma de apoio militar ao governo paquistanês. Apesar de não existir nenhum tratado formal de ajuda militar, a verdade é que a China tem sido o país da região que mais tem ajudado militarmente o Paquistão, o que dificulta naturalmente as relações com a Índia58.

Por outro lado, importa salientar um outro elemento de enorme importância nas relações Índia – China: os EUA. A razão é recente e evidente: face ao gigantesco crescimento mundial da China, a estratégia dos EUA tem estado muito mais próxima da Índia, numa tentativa de conter o peso mundial e regional da China. Prova disso é a declaração inédita dos EUA, em 2010, em como apoiam a entrada da Índia no Conselho de Segurança da ONU59. Com efeito, considerando que a Índia só poderá ser bem sucedida regionalmente se tiver o apoio dos EUA (sobretudo porque não tem aliados de peso na sua região), este apoio surge como um trunfo da estratégia indiana para ascender regional e mundialmente.

Mas os constrangimentos regionais à Índia não terminam na China. Desde a data da independência, em 1947, a Índia mantém uma relação de permanente tensão e conflito com o Paquistão, sobretudo devido à província de Caxemira. Em termos regionais, o Paquistão – com cerca de 170 milhões de habitantes – é o principal rival da Índia – com mais de um bilião de habitantes – na liderança do sudeste asiático. Surge aqui precisamente a primeira questão: por que razão se sente a Índia tão ameaçada por um Estado que é quase dez vezes menor em termos populacionais? A resposta tem sobretudo razões históricas relacionadas com a descolonização britânica e com a divisão do território. A maior e mais grave consequência foi, evidentemente, a guerra, que em pouco mais de 60 anos já foi travada por quatro vezes entre a Índia e o Paquistão.

57

Dados do livro de Stephen Philip Cohen, India: Emerging Power, Brookings Institution Press, Washington, 2001, p. 259

58

Stephen Philip Cohen, op. cit. p. 210

59

Destes quatro conflitos, aquele que agravou as animosidades futuras foi, sem dúvida, a guerra de 1971, de onde o Paquistão saiu derrotado e com uma enorme perda territorial: o Paquistão Oriental, atual Bangladesh. A partir desta data, a rivalidade entre a Índia e o Paquistão aumentou exponencialmente, agravando ainda mais a disputa territorial de Caxemira, já existente desde 1948. A estes factos acresce ainda a separação religiosa entre hindus e muçulmanos, cuja rivalidade foi sobretudo gerada e acentuada pela verdadeira índole do conflito Índia – Paquistão: a disputa territorial.

Ora, independentemente da enorme disparidade demográfica, a Índia tem razões suficientes para temer um Paquistão que permanece extremamente revoltado com a divisão territorial existente. O Paquistão, por seu lado, tem uma perceção e convicção claras de que a Índia pretende acabar com o seu território enquanto Estado60. Estas posições ficaram, naturalmente, mais acentuadas após o desenvolvimento nuclear em ambos os países, no final dos anos 90, o que só prova a extrema animosidade entre estes dois rivais regionais. Atualmente, o centro da grande rivalidade entre a Índia e o Paquistão permanece o mesmo desde 1948: a região de Caxemira, que mais do que um conflito regional, arrisca tornar-se num conflito internacional.

O conflito de Caxemira abrange uma amálgama de questões em disputa. Nas palavras de Stephen Philip Cohen: “The conflict in Kashmir is as much a clash between

identities, imagination, and history, as it is a conflict over territory, resources and peoples”61. A questão religiosa constitui o centro das reivindicações: por um lado, o Paquistão entende que Caxemira, enquanto território de maioria muçulmana, deveria integrar o seu território; a Índia, por outro lado, entende que esta razão não é suficiente, e evoca o secularismo da identidade indiana para rejeitar o exclusivismo do Paquistão, sobretudo porque a própria Índia abrange uma parte considerável de muçulmanos62.

Contudo, e embora esta diferença religiosa seja a parte mais destacada pelos intervenientes no conflito, a verdade é que oculta outras razões de maior importância, entre as quais, desde logo, o controlo de um território estratégico rico em água. Além disso, Caxemira está situada entre vários países importantes na região (China, Índia, Paquistão e Afeganistão), o que confere uma maior relevância regional ao Estado que a controlar (atualmente a Índia controla a maior parte do território). Ora, independentemente de os adversários serem Estados seculares ou religiosos, a verdade é

60

Stephen Philip Cohen, op. cit. p. 36

61

Stephen Philip Cohen, op. cit. p. 42

62

que Caxemira é estratégica em termos territoriais, e essa é a verdadeira motivação do conflito, ao contrário de uma ideia de confronto entre civilizações ou religiões. A questão religiosa assumiu maior relevância no início desta década, após o envolvimento direto da Al-Qaeda (resultando num aumento do terrorismo na região), mas a disputa é eminentemente territorial e política.

Com efeito, face a estes desenvolvimentos, torna-se evidente que a liderança regional da Índia permanece bastante contestada. O próprio investimento militar da Índia prova a grande rivalidade que o país enfrenta: em 2004, e para um período de oito anos, a Índia fez encomendas militares superiores às da Arábia Saudita, no valor de 15,7 mil milhões de dólares63.

Paralelamente a esta contestação regional, a última década provou, por outro lado, que a influência internacional da Índia tem aumentado, fruto de dois elementos chave: o enorme vigor económico, que atraiu os Estados vizinhos e aumentou a influência económica da Índia na região; e o sistema democrático indiano, através do qual a Índia tem conseguido manter na sua esfera de influência Estados mais pequenos como o Nepal, o Butão, o Bangladesh e o Sri Lanka.

Qual é então o balanço do poder regional e mundial da Índia? Em primeiro lugar, é certo que as tensões com a China podem ressurgir a qualquer momento, e que o Paquistão é, sem dúvida, um entrave ao seu poder regional. Além disso, a relação de tensão histórica entre a Índia e a China constitui uma das grandes diferenças nos BRICS, o que contribui para a falta de homogeneidade do grupo. Todavia, importa referir que o grande desenvolvimento económico da Índia e o apoio dos EUA têm anulado, por enquanto, a força da contestação regional. A Índia é encarada como uma potência emergente e como uma futura grande potência mundial. Nas palavras do primeiro-ministro indiando, Manmohan Singh, o objetivo da Índia é comum a todos os BRICS e centra-se em tornar a ordem internacional multipolar: “We support a

multipolar, equitable, democratic and just world order with the United Nations playing a central role in tackling global challenges”64. É este objetivo que evita o aumento das tensões entre a Índia e a China, e é também este objetivo concertado que tem permitido à Índia contornar os constrangimentos regionais durante a última década.

63

José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 122

64

Primeiro-Ministro da Índia, Manmohan Singh, Conferência de Imprensa após a Cimeira dos BRICS em 15 de Abril de 2010 (discurso disponível em: http://pmindia.nic.in/speech/content.asp?id=912, acedido no dia 09/06/2011).

2.4 China – A Grande Desafiadora da Ordem Unipolar