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A Diplomacia Brasileira e as Relações com os Estados Vizinhos

2. Capítulo II – O Protagonismo dos BRICS na Cena Internacional

2.1.1 A Diplomacia Brasileira e as Relações com os Estados Vizinhos

A questão sobre se o Brasil pode já ser considerado um importante ator internacional tem merecido um amplo destaque, não apenas devido ao seu crescente potencial energético (tema analisado no subcapítulo 2.1.2), mas também devido à sua estratégia de liderança na América do Sul e, em especial, devido ao protagonismo que assumiu na mediação do acordo relativo ao programa nuclear do Irão, em 2010.

Efetivamente, a questão do Irão é a que merece maior destaque, por uma razão clara e evidente: o Brasil saiu da sua esfera de intervenção regional. É preciso recuar até à participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial para encontrar uma tomada de posição internacional semelhante. De resto, todas as intervenções do Brasil situaram-se ao nível regional: desde a Guerra do Paraguai (1864), passando por algumas disputas territoriais com a Argentina (1895) e com a Bolívia (1899), até, mais recentemente, à missão da ONU para a estabilização no Haiti, com início em 2004 e cuja coordenação está a cargo do Brasil. O envolvimento do Brasil numa região tão complexa e sensível, como é o Médio Oriente, demonstra bem o avanço do protagonismo da diplomacia brasileira. Já não se trata de um protagonismo meramente circunstancial ou de cooperação com as decisões da ONU, mas de um entendimento próprio do mundo que o Brasil faz questão de querer assumir. Esta posição ganhou ainda maior relevância pelo facto de recolher o apoio e a participação ativa de outra potência emergente: a Turquia.

Apesar da estratégia fracassada (as sanções ao Irão acabariam por ser aprovadas no Conselho de Segurança, em Junho de 2010), importa salientar que a ação do Brasil e da Turquia marcou o início de uma intervenção mais ativa das potências emergentes em questões que antes eram tratadas, quase em exclusivo, pelos EUA e pela Europa. Acresce que o facto de se tratar de uma ação no âmbito do Conselho de Segurança (tanto o Brasil como a Turquia eram, à data, membros não-permanentes1), revela o quão crescente é o protagonismo destas potências em instâncias internacionais. De resto, esta ação é em tudo condizente com a estratégia do Brasil para conseguir um lugar de membro permanente no Conselho de Segurança. O ex-presidente Lula da Silva foi

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O mandato da Turquia começou em 1 de Janeiro de 2009 e terminou em 31 de Dezembro de 2010. O mandato do Brasil começou em 1 de Janeiro de 2010 e terminará em 31 de Dezembro de 2011.

particularmente incansável nesta questão: “Os países pobres e em desenvolvimento têm

de aumentar sua participação na direção do FMI e do Banco Mundial. (…) Não é possível que as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança sejam regidos pelos mesmos parâmetros que se seguiram à Segunda Guerra Mundial”2.

A reforma do Conselho de Segurança tem sido, aliás, um dos grandes objetivos do Brasil, mas também um dos pontos centrais de discórdia e de disputas regionais entre diversos países, e mesmo entre os próprios BRICS3. No caso do Brasil, este objetivo tem estado alinhado com o protagonismo que tem assumido nesta instância. A sua ação tem sido continuada, e voltou a revelar-se aquando da decisão sobre a intervenção militar na Líbia, na resolução 1973 do Conselho de Segurança, de Março de 2011, onde o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, em conjunto com a Alemanha, se abstiveram e demonstraram uma posição contrária à dos EUA e à maioria da Europa. A decisão da Rússia e da China já era previsível. Mas já não era tão previsível a decisão do Brasil e da Índia, o que prova que as potências emergentes e, em particular, os BRICS, têm noção da sua força crescente e já não delegam a sua decisão nos EUA e na Europa, alinhando cada vez mais com a Rússia e com a China. A diplomacia brasileira mostra- se, pois, muito mais forte internacionalmente, como nunca antes acontecera. Demonstra igualmente a inteligência estratégica de revelar-se sobretudo no âmbito do Conselho de Segurança, justamente porque é aqui que recai o seu objetivo principal de reestruturação da ordem internacional.

Se o protagonismo internacional do Brasil é, de facto, assinalável, isso deve-se também à sua consolidação enquanto potência regional. O Brasil tem assumido uma postura regional de cooperação e de construção de um bloco sul-americano forte, sobretudo durante a presidência de Lula da Silva, que levou inclusivamente muitos Estados vizinhos a aceitarem o protagonismo internacional do Brasil4. O Mercosul, e mais recentemente a UNASUL5, constituem os dois maiores instrumentos de afirmação

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Presidente Lula da Silva, Discurso no Debate Geral da 64ª Sessão da Assembleia-geral das Nações Unidas, Nova York, 23 de Setembro de 2009, disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de- imprensa/discursos-artigos-entrevistas-e-outras-comunicacoes/presidente-da-republica-federativa-do- brasil/discurso-no-debate-geral-da-64a-sessao-da, acedido no dia 12/04/2011

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As disputas para os lugares de membro permanente do Conselho de Segurança são reflexo do regionalismo mais ofensivo atual, desvendando também algumas incongruências dentro dos próprios BRICS: ver ponto 4.3 do Capítulo IV.

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“During Lula’s presidency, other South American leaders have come to recognize Brazil as the continent’s leading representative at the international level.” Riordan Roett, The New Brazil, The Brooking Institution, Washington, 2010, p. 132

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A UNASUL foi criada em 2008, fruto da união do Mercosul com a Comunidade Andina de Nações, numa tentativa de iniciar um projeto semelhante ao da União Europeia.

da América Latina enquanto bloco. Mas existe uma particularidade em relação ao Brasil: o seu objetivo está muito mais centrado na utilização destes blocos para a sua própria afirmação enquanto potência regional, do que no desenvolvimento de uma comunidade semelhante à União Europeia com instituições regionais6. O Brasil tem, naturalmente, todo o interesse em desenvolver a integração e interdependência económica da América do Sul, mas a sua realidade leva-o muito mais além.

O Brasil é o maior país da América do Sul; é maior do que os EUA (excetuando o Alasca); é rico em recursos energéticos renováveis e não renováveis; e possui trocas comerciais que têm como primeiro parceiro a Ásia (onde se destaca a China), seguida da União Europeia, e só depois o Mercosul, seguido dos EUA7. O Brasil tem, portanto, todas as razões para demonstrar maior interesse por outros mercados emergentes do que pelo seu próprio mercado regional. Daí que a sua diplomacia acompanhe justamente estas trocas comerciais e a expansão da economia brasileira, em detrimento das trocas comerciais com os Estados vizinhos e da criação de um bloco político semelhante à União Europeia. Na verdade, a criação de um bloco como a UNASUL dificilmente suscitará outro interesse – que não regional – a um país como o Brasil, que constitui, sozinho, um ator colossal ao nível dos EUA, da China ou da União Europeia.

Qual é então a índole atual do Mercosul e da UNASUL? Apesar do distanciamento do Brasil, estes blocos económicos e políticos (no caso da UNASUL) permanecem um importante ponto de confluência regional. O Brasil não precisa, de facto, do Mercosul nem da UNASUL para se expandir, mas precisa certamente destes instrumentos para consolidar a sua liderança regional. O interesse é, pois, eminentemente político. A recente adesão da Venezuela ao Mercosul é prova disso mesmo: tratou-se de uma estratégia de integração em relação a um país que tem vindo a seguir uma estratégia revolucionária e de crescente protagonismo regional. Ora, integrando a Venezuela, o Brasil pretende não apenas introduzir estabilidade na América do Sul, mas sobretudo atenuar este protagonismo regional de outros Estados. O objetivo do Brasil é, justamente, ser encarado e considerado pelos outros Estados como uma grande potência,

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“The fact that MERCOSUR today is neither a common market nor a complete free trade area is partly a consequence of Brazilian foreign policy, which is focused much more on national sovereignty than on the country’s integration into regional institutions in the long run.” Daniel Flemes, “Brazilian foreign policy in the changing world order”, South African Journal of International Affairs, Routledge, Londres, 2009, p. 176

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Dados da balança comercial brasileira, referentes a Janeiro de 2011, disponíveis no site do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do Brasil, http://www.mdic.gov.br//sitio/interna/interna.php?area=5&menu=3173&refr=1161, acedido no dia 09/05/2011.

e a estratégia para com a Venezuela é prova disso. Um dos grandes exemplos é a política em relação aos EUA: tanto a Venezuela como o Brasil concordam, no essencial, com a necessidade de alterar regras internacionais, mas enquanto o presidente Hugo Chávez desafia e ataca direta e constantemente todas as ações dos EUA, o presidente Lula prossegue uma estratégia moderada, dialogante e respeitadora, mantendo boas relações com os EUA e exigindo, ao mesmo tempo, a reforma das instituições e a alteração de políticas económicas internacionais. Na análise do general Loureiro dos Santos: “o Brasil (…) ganhou dois aliados em conflito entre si – os EUA e a Venezuela.

As ações de cada um deles, enfraquecendo-se mutuamente, favorecem as posições estratégicas brasileiras. Tanto no plano continental como no plano global.”8.

Em termos regionais, o Brasil enfrenta, contudo, outros entraves à sua liderança. Além da Argentina – que se opõe fortemente à entrada do Brasil como membro permanente no Conselho de Segurança – surgiu recentemente a Bolívia que, com Evo Morales, nacionalizou as reservas bolivianas de gás natural e petróleo, afetando diretamente os investimentos da empresa brasileira Petrobrás. A realidade, porém, é que o Brasil é o comprador exclusivo do gás natural boliviano e, além disso, a Petrobrás descobriu recentemente reservas de gás natural no campo de Júpiter (no Estado do Rio de Janeiro)9. Ora, estes factos permitem que o Brasil continue a ter uma palavra de peso na América do Sul, sobretudo porque consegue contornar os constrangimentos impostos pelos Estados vizinhos.

A par desta liderança regional, a análise aqui patente prova também que a influência do Brasil já ultrapassa o foro regional, através de uma estratégia de soft power que consegue cativar os EUA, e que contrasta com o discurso de hard power da Venezuela. É neste sentido que o Brasil, além de uma potência regional, pode já ser considerado como uma potência média – à semelhança do Canadá ou da Austrália. Segundo Daniel Flemes: “Brazil can be defined as a middle power in order to frame its foreign policy

behaviour and options at the global level” 10. A este estatuto acresce ainda um enorme potencial para o futuro: a sua enorme capacidade energética.

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José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 143

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"(Bolivia) needs Brazilian demand to sustain its gas setor (...). And the new Tupi and Jupiter discoveries will probably alter the dynamics of gas consumption in South America." Ricardo Ubiraci Sennes e Thais Narciso, “Brazil as an International Energy Player”, in Brazil as an Economic Superpower?, Brookings Institution, Washington, 2009, p. 46

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Daniel Flemes, “Brazilian foreign policy in the changing world order”, South African Journal of International Affairs, Routledge, Londres, 2009, p. 163