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CAPÍTULO 5 MICROCRÉDITO

5.2 O Microcrédito no Mundo e no Brasil

5.2.2 Últimas pesquisas

O Instituto Francês de Pondicherry (Índia), em 2004, publicou o resultado das experiências e pesquisas realizadas na Índia, Indonésia Bangladesh e Filipinas para responder a questão: as microfinanças permitem o empoderamento dos beneficiários ou ao contrário, tem efeito desestruturante dentro da sociedade onde é desenvolvida?

“Não é perigoso atribuir às microfinanças virtudes que elas não têm, qualquer que seja a qualidade de seus serviços e a boa vontade de seus promotores? As pesquisas indicam que o vínculo entre microfinanças e empoderamento não é automático” (GUERIN & PALIER, 2004).

As autoras afirmam que somente o acesso aos serviços financeiros não pode ser considerado por si mesmo um fator de empoderamento. Em grande parte das experiências, as mulheres são priorizadas para o financiamento. Mesmo neste grupo, no qual são observados interesses comuns, não são obtidos resultados promissores. A título de exemplo, um estudo de 1998-1999 sobre os vinte e seis estados da Índia evidenciaram que as mulheres continuavam pobres, mesmo com uma ofensiva política governamental de uma dezena de anos em matéria de microfinanças e, em muitos lugares, com grupos de auto-ajuda dando suporte às atividades de microfinanças.

A mesma consulta realizada há seis anos atrás foi reaplicada e não houve mudança nos indicadores, em matéria da participação das mulheres nas decisões, mesmo nas que dizem respeito à sua própria saúde, o acesso à educação (a metade é iletrada contra 25% dos homens), a sua possibilidade de se deslocar livremente (somente uma mulher em três pode andar sem pedir permissão, e uma em quatro pode ver qualquer amiga sem autorização).

É evidente que as os programas de microfinanças, sozinhos, não vão reduzir todas as diferenças evocadas. Os programas enfrentam múltiplos desafios, pois tanto podem conduzir ao empoderamento, como podem se transformar em desempoderamento ou subempoderamento, para utilizar a expressão de Suadnya (apud GUÉRIN & PALIER, 2004). Entre os efeitos negativos, pode-se evocar a frágil capacidade de pagamento dos pobres, e as taxas exorbitantes cobradas, as mulheres abandonadas, ou, ainda, as vilas desestruturadas depois das dificuldades de reembolso.

O empoderamento está intimamente ligado à idéia de abordagem participativa; ela é freqüentemente visualizada, mas ela nem sempre traduz os fatos. Por exemplo, organizar

qualquer comício de mulheres não é sinônimo de participação; o ponto de vista dos principais interessados no processo de empoderamento tem que ser valorizado ou não será possível falar de empoderamento se há uma tentativa de impor critérios.

O papel das estruturas organizacionais e dispositivos das microfinanças na eficácia do processo de empoderamento não pode deixar de ser levado em consideração. A experiência mostra a importância crucial de uma boa governança (transparência e divisão clara das responsabilidades entre as diferentes partes), não mais como tal ou tal “modelo” ou uma tendência oposta (individual, cooperativa, grupos de auto-ajuda, etc.). Os conflitos e as tensões engendradas pelo acesso aos serviços financeiros por certas categorias da população são globalmente subavaliadas. Os efeitos negativos ocasionados pelo trabalho, a fadiga, o aumento das responsabilidades e o reforço dos papéis tradicionais são ocultados. Notórias, enfim, as eventuais contradições entre o particularismo das ações de microfinanças e uma abordagem global da justiça social: os resultados positivos, mas de curto prazo e/ou o progresso de um ou outro grupo social, não conduzem necessariamente a uma redução das desigualdades em longo prazo: “Evidentemente, as microfinanças não são uma panacéia para combater a pobreza e as desigualdades, convém ser realista quanto aos efeitos encontrados” (GUERIN & PALIER, 2004).

Com base nas experiências da Índia, Guérin & Palier (2004) reforçam a abordagem do empoderamento com a palavra chave “desenvolvimento”. Ela é um sinônimo de emancipação ou uma noção recuperada para uma classe da população estabelecer seu poder? O empoderamento serve à construção de boas instituições, de fato, ou os velhos poderes retomam os seus lugares?

Algumas experiências possuem a noção grandiosa de autopromoção do grupo, próximas da noção de auto-suficiência ou da autonomia do grupo que define suas próprias regras. Por outro lado, em alguns programas, a noção é mais calvinista, mais liberal da autopromoção, na qual qualquer um tem poder por si mesmo e pode desenvolver o seu próprio empreendimento.

Estudos feitos na Índia, em Bangladesh e nas Filipinas, demonstram que dentro das organizações de microfinanças não desapareceram os laços hierárquicos, os jogos de poder, político, social. A manipulação, instrumentalização dos membros das IMF, distancia-se da tão desejada participação.

Em relação ao ambiente financeiro informal, naqueles países as microfinanças não substituíram o sistema informal, sistemas de agiotagem e outros. Ao contrário, ele mostra bem que as microfinanças se conjugam aos outros sistemas existentes e permite um membro de IMF acessar mais de uma fonte de crédito a partir da credibilidade adquirida por participar de uma IMF. São aumentados os riscos, portanto, de endividamento.

A terceira parte do trabalho trata da questão da avaliação do impacto das microfinanças sobre o poder. Por meio dos exemplos de vários estudos, comprova-se que a avaliação das microfinanças não pode se limitar ao impacto econômico. É necessário apreender os efeitos sobre a partilha dos papéis no interior da família, o modo como as decisões mudam com o início do programa (alteração vinculada a uma nova forma de crédito, mas também dos níveis de risco, da informação e formação). Quais são os impactos sobre a autopromoção?

Quais são os impactos sobre o empoderamento político e social? De acordo com os métodos propostos, os resultados são contrastantes. Comparações entre os modos de intervenção dos organismos com sua filosofia ou sua subordinação aos financiamentos governamentais apontam que as ações sociais (formação, saúde, formação de redes) conduzem a efeitos que alavancam os créditos.

A conclusão daqueles estudos tem como pontos relevantes o seguinte:

• Diversas pesquisas mostram que as organizações do terceiro setor (de que fazem parte as ONGs) compartilham largamente os obstáculos seguintes: frágil capacidade de inovação, utilização dos empréstimos dos cômodos programas governamentais de desenvolvimento; liderança autoritária exercida pela figura central da organização, muitas vezes o fundador; separação, confidencialidade das informações e ausência de transparência (responsabilidade); condições de trabalho precárias para o pessoal assalariado, em particular as de “nível mais rasteiro”; dificuldades de achar novas formas de solidariedade e transcender as “marcas sociais” (em particular a divisão em castas); e déficit ou, ao contrário, excesso de profissionalismo. Com isso, alguns grupos se destacam. Uma parte de pequenas organizações tenta bem ou mal sobreviver ao cotidiano e sofre fortemente uma ausência de recursos humanos e financeiros. De outra parte, há um pequeno número de grandes

organizações, mais profissionais, largamente inseridas nas redes nacionais e internacionais, mas que nem sempre se adaptam àquela profissionalização. Elas são acompanhadas de uma crise identitária, qualificada por João Samuel (apud GUÉRIN E PALIER, 2004) como “esquizofrenia institucional” ou elas sofrem de uma discrepância irresoluta entre o processo de institucionalização e profissionalizante e o discurso dos militantes, portadores de valores fortes e elementos ideológicos.

Outro desses disfuncionamentos internos é também a articulação com o ambiente externo, o qual fragiliza esse setor. Na Índia, embora permaneçam vivos certos princípios gandianos em milhares de organizações da sociedade civil, que traduz um número importante de voluntários (benevolência como salário) e sua crença de fazer reviver os valores gandianos, a emergência de uma classe média caracterizada por preocupações altamente consumistas e individualistas reforçando as fraturas e tensões de castas e confessionais, ameaçam o comportamento de solidariedade. Os relacionamentos com as autoridades públicas são outra fonte de desalento. As pesquisas relatadas por Guérin e Palier (2004) mostram que as organizações do terceiro setor indiano são condicionadas pela natureza de suas relações com o poder público. Os termos dessa relação variam de acordo com alguns fatores: o domínio da atividade da organização e seu posicionamento em face das autoridades, o modelo de desenvolvimento escolhido pelo Estado e a agenda política das formações de poder, se há formação majoritária no nível federal ou formações de poder dentro dos Estados.

Alguns pesquisadores consideram igualmente que o intervencionismo estatal encoraja as organizações a concentrarem-se no nível mais baixo, cujas deliberações conduzem à desordem do terceiro setor em detrimento dos movimentos de mobilização de massa e luta contra as causas estruturais da pobreza e das desigualdades. Enfim, a atitude do poder público se traduz igualmente por uma forte instrumentalização: delegar as tarefas sem delegar as competências, externalizar os benefícios sociais, conservando o poder de definir o conteúdo e o objeto.

Os estudos apontam que, embora com todos os defeitos, os grupos de solidariedade que têm lugar nas microfinanças são uma base para a aprendizagem das práticas democráticas. A presença de um terceiro setor e, acima de tudo, um

acompanhamento ativo dos grupos de solidariedade permitem diminuir a impotência das manipulações políticas e da corrupção. Esses espaços permitem a expressão e a formulação de necessidades não conhecidas das autoridades públicas. É precisamente essa apreensão da palavra que permite lutar de maneira efetiva contra certas formas de desigualdades que sofrem alguns indivíduos e grupos sociais.

O conceito de empoderamento, o qual foi visto anteriormente, vincula-se a múltiplas definições. De maneira mais esquemática, dois campos aparecem. O primeiro considera empoderamento como um processo neutro, essencialmente individual, conduzindo à aquisição de poder para si mesmo e não sobre o outro. O segundo, em oposição, defende uma abordagem política, e, portanto, necessariamente conflitual, o empoderamento concebido em termos de relações de poder entre os grupos sociais. Pensar o empoderamento em termos de economia solidária ajuda a superar essas oposições: a eficácia e a legitimidade da economia solidária repousa sobre a combinação entre as ações pragmáticas capazes de responder às necessidades estritamente individuais (via oferta de serviços diretos às famílias) e uma ação política capaz de influir sobre as causas estruturais das desigualdades.

No meio dos anos 90, quando as microfinanças voltaram à moda, um artigo de Goetz & Gupta (apud GUÉRIN & PALIER, 2004) tiveram um efeito inesperado: sua pesquisa mostrou que uma grande parte de empréstimos concedidos por qualquer uma das grandes organizações de microfinanças de Bangladesh não foi utilizada por homens. Todavia, como se pode esperar um controle total dos empréstimos para as mulheres em um contexto no qual as mulheres não são autorizadas a penetrar em espaços públicos, principalmente nas feiras? Parece que a questão não é tanto o controle dos empréstimos, mas os efeitos em termos de redistribuição (há lucro nas rendas geradas?).

A combinação desse triplo nível de ação (social em resposta a uma demanda concreta dos problemas de todos os dias), econômica e política, tanto no nível local como no nível nacional (por meio das federações de agrupamentos) é ilustrado no livro de SEWA, uma ONG indiana dos anos 70, ao mesmo tempo Banco (SEWA, reconhecido como banco depois de 1974), como organismo de desenvolvimento (saúde, higiene, abastecimento de água), sindicato, centro de formação (SEWA Academia) e força política com participação em diversas instâncias de decisão.

O modo de funcionamento da SEWA repousa sobre a articulação entre dois tipos de espaços públicos: os espaços públicos locais, intermediários entre o público e o privado, e os espaços públicos de regulação, interface entre estes grupos e diversas instituições, em particular autoridades públicas, empregadores ou sindicatos. A discussão é a viga mestra do método de ação: uma atenção permanente é dada às necessidades das mulheres, e o ponto de partida, o essencial dos esforços e das realizações são trazidos, permitindo às mulheres se exprimirem com toda confiança sobre os problemas que elas encontram.

Por outro lado, os promotores da SEWA negam o discurso ingênuo, e agora largamente prevalecente, de acordo com o qual as mulheres se reagruparam e debateram os seus problemas. A discussão não funciona se as mulheres, e, em princípio, mulheres pobres, lá não encontrem um interesse preciso. Durante o começo de SEWA, por volta dos anos 70, a mobilização política, que era o objetivo de partida, é sobressaltada por um fracasso: como convencer mulheres preocupadas com sua sobrevivência cotidiana em consagrar um tempo às mobilizações que não trariam frutos senão em longo prazo? Rapidamente ela cumpre o seu papel de lobista com a oferta de serviços diretos às mulheres e suas famílias. Então as mulheres beneficiárias desses serviços aceitam se reagrupar para discutir a qualidade dos serviços em questão e a maneira que pode fazê-las evoluir, o que pode amenizar progressivamente a ser convencido por interesse lobista.

Diante da heterogeneidade dos agrupamentos, Guérin (2005) ressalta a impossibilidade de uma generalização. Ele propõe um esquema para identificar como o grupo articula interesses individuais e coletivos, interesse coletivo e interesse geral, conforme especificado abaixo:

Figura 05 – Articulação entre interesses individuais e interesse coletivo

O eixo vertical expressa a articulação entre interesses individuais e interesse coletivo e se baseia, ao mesmo tempo, no grau de coesão interna do grupo e a forma como o grupo atende às expectativas dos membros. O eixo horizontal expressa a articulação entre interesse coletivo e interesse geral, levando em consideração as relações estabelecidas com o ambiente (parcerias com organismos de apoio, instituições bancárias), a aptidão do grupo para mobilizar recursos externos sem inibir a dinâmica interna e sem se deixar instrumentalizar pelos parceiros e a influência que o grupo consegue exercer em instâncias de reflexão e decisão.

Assim, no esquema acima (GUÉRIN, 2005), o quarto noroeste combina uma forte coesão interna com a ausência de parceiros. O quarto nordeste combina uma forte coesão interna com a presença de parceiros que permitem estimular as atividades coletivas, os grupos líderes. No extremo leste, encontram-se os corretores do desenvolvimento, que essencialmente buscam juntar parceiros e financiadores por meio de sua presidência. Os assistidos foram implementados porque era a “moda”. Os grupos artificiais são apenas cascas vazias, criadas por uma pessoa ou um grupo restrito para obter fundos para utilização de modo pessoal.

Grupos assistidos Grupos líderes Grupos tradicionais Corretores do desenvolvimento Articulação entre interesse coletivo e interesse geral Grupos artificiais

Concluindo, seria ingenuidade, a exemplo de um certo número de pensadores da tradição liberal, que crêem na capacidade espontânea dos povos se organizarem em grupos representativos das diferentes camadas da sociedade. O acesso à esfera pública é, como se sabe, essencialmente não igualitário, e essa forma de desigualdade é concorrente de outras formas: freqüentemente, os pobres e as mulheres aparecem nos piores lugares. Se for admitido que a liberdade de expressão é tão justa quanto a liberdade econômica, e se for aceita que essa liberdade de expressão não é exatamente um exercício democrático, mas pressupõe uma democracia participativa capaz de manter um debate, uma formulação e uma expressão das necessidades, é responsabilidade dos Estados corrigir as desigualdades de acesso à esfera pública.

A “necessidade do Estado” não provavelmente na forma existente, mas numa forma diferente. O futuro da “sociedade civil” depende precisamente de seu reconhecimento pelos Estados e pelas organizações internacionais.