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CAPÍTULO 4 A ECONOMIA SOLIDÁRIA

4.2 Principais Abordagens Teóricas sobre a Economia Solidária

4.2.9 Novas sociabilidades?

Para compreender a emergência de novos paradigmas, faz-se necessário examinar as novas configurações do capitalismo.

Primeiro, é importante destacar a diferença entre economia de mercado e sistema de mercado (BRAUDEL, 1996). Pertencem à economia de mercado as trocas cotidianas, trocas transparentes que reúnem produtores e consumidores, lugar que existe desde que os grupos humanos conseguiram mais bens do que o necessário e começaram a trocar por outros produtos com grupos vizinhos. Nesse caso, o mercado não ocupa um lugar central na sociedade, pois somente o excedente é destinado ao mercado.

Na economia capitalista existe um sistema de mercado onde os produtores não produzem mais para o consumo, mas para trocar no mercado, e agora o mercado torna-se central na sociedade, “instância constituinte da sociabilidade, portanto produtora da integração social, a base que transforma todas as relações sociais em relações mercantis” (OLIVEIRA, 2003).

Como sistema de mercado, a economia capitalista foi vista de várias formas. Uma das formas vigente até a década de setenta, nos países ricos, foi o capitalismo estatal, no qual a economia estava a cargo das instituições privadas, mas o Estado tinha um papel

importante na redistribuição do produto social, por meio da arrecadação de impostos e na intervenção para a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora.

Uma outra forma que hoje é dominante globalmente é o capitalismo liberal, no qual a economia é orientada pelo capital privado e o Estado é apenas um agente subsidiário dos interesses privados e excludentes do grande capital (ARRUDA, 2001).

A afirmação básica desse novo momento do capitalismo é que o mercado é o único mecanismo capaz de enfrentar os problemas específicos da economia atual.

Esse processo de globalização competitiva foi facilitado pela revolução tecnológica, cujo resultado é a acumulação flexível, na qual há um explosivo aumento da produtividade, ganhos crescentes e uma competitividade nunca vista antes.

Outro efeito dessas mudanças é a financeirização do capital, a criação do capital virtual, no qual “os mercados financeiros criam títulos, bônus, papéis de todo o tipo que representam um capital que já não tem lastro na riqueza real do mundo” (ARRUDA, 2001, p.147).

Desastroso, nessa configuração do capitalismo, é a substituição da política pelo mercado na condução dos processos sociais, e, nesse sentido, a ação do Estado regulador desaparece. “È o capitalismo que provoca uma mercantilização das relações sociais, (...) e tende a subsumir todas as dimensões humanas – arte, religião, moral, ética, direito e política – sob os imperativos da livre circulação de mercadorias, do lucro e da mais-valia” (TOSI, apud OLIVEIRA, 2003, p. 4).

O cenário na América Latina é de total submissão à nova ordem do capital, priorização de indicadores macroeconômicos, política de juros altos, acelerada modernização tecnológica, abertura descontrolada de mercados e corte de gastos públicos. Felizmente não foi possível eliminar o projeto democrático, no qual coexistem os processos de democratização e de ajuste.

Vive-se, portanto, o tempo do triunfo da mercadoria absoluta. Como proclama Baudrillard (2000), o consumismo se faz modelo de vida e as relações humanas resumem- se em meras relações de trocas de objetos, restando ao homem a identidade de consumidor, um ser voltado para os seus interesses privados e indiferente ao bem público. Nesse tempo,

os valores vigentes são os da livre iniciativa e tudo o que favorecer o acúmulo de riqueza e poder, inclusive a especulação e a corrupção.

Todavia, esse sistema de mercado, o qual levou a humanidade a um progresso material nunca visto antes, convive com milhões de pessoas que estão abaixo dos limites da pobreza, impossibilitado-os de acessar os produtos, fruto desse progresso e alardeados pelos meios de comunicação social, que são em grande parte responsáveis pela hegemonia cultural do capital nas sociedades. “O cenário humano é de um materialismo radical orientador das relações dos seres humanos entre si, de sofrimento, de guerras e diferentes tipos de violência, de isolamento, de incerteza, insegurança, perda do sentido da vida” (OLIVEIRA, 2003, p. 5).

Partindo do pressuposto de que a “especificidade do ser humano como ser humano não é sua contraposição à natureza, mas uma conquista que se dá pela mediação do encontro com o outro ser humano” (OLIVEIRA, 2003, p.6), este ser só consegue desenvolver suas potencialidades quando há o reconhecimento recíproco da dignidade e somente no seio de comunidades humanas que respeitam a dignidade de cada ser humano e configuram suas relações na base da cooperação.

Há uma necessidade de serem estabelecidas relações simétricas, síntese entre identidade (todos os seres humanos são fins em si mesmos) e diferença (todos possuem o direito a serem reconhecidos naquelas diferenças que não põem em questão a igualdade fundamental).

A concepção do sentido de vida humana vigente no capitalismo é que o ser humano é solitário e carente, em face de sua natureza, e sua vida social aparece como remédio à sua solidão e como auxílio à satisfação de suas necessidades. A cooperação, quando aparece, é um instrumento para permitir maior proveito e prazer. O sujeito busca a auto-conservação e a acumulação de bens materiais e o consumismo como a razão de ser da sua vida

A visão de ser humano aqui explicitada é que este ser é igualmente individual e social e só pode realizar-se quando constrói as diferentes formas de interconexação e integração entre si mesmo e a natureza e os outros humanos. Há uma exigência fundamental de se construir uma sociabilidade que possa efetivar a conquista da liberdade solidária, na qual se configura uma vida coletiva que é igualmente personalizante e

socializante, baseada “em direitos e oportunidades iguais para todos, na cooperação em vez da competição, e no respeito pelos limites da natureza e pelos direitos das gerações futuras” (ARRUDA, 2001, p. 46).

Essa sociabilidade tem raízes na solidariedade e para que a comunhão entre os homens possa acontecer, a mediação de instituições sociais torna-se necessária para garantir os direitos fundamentais dos seres humanos.

Organizar o processo produtivo para alcançar uma sociabilidade simétrica torna- se, portanto, o grande desafio atual, e das experiências chamadas de economia solidária.

Mesmo sabendo que existem alguns limites, como a impossibilidade de criar uma sociedade plenamente justa e perfeita, é possível pensar numa sociedade que inicie e aprofunde o processo de realização do ser humano como ser livre e solidário.

No entanto, é necessário aproveitar as lições da história, as quais mostram algumas tentativas de superação da sociedade capitalista. Uma das alternativas para liberar as forças produtivas do grande capital das injunções do mercado foi o planejamento centralizado da produção, quando o mercado foi substituído pela burocracia estatal e a organização monopolista de todos os ramos da produção. Foi o modo conhecido como totalitarismo e nesse modo de organizar a vida coletiva o Estado se apropriou de todas as forças produtivas, em nome da sociedade, negando o próprio indivíduo, o qual foi reduzido a uma parte do todo coletivo, excluindo-os das decisões e da gestão da vida coletiva, conservando ainda o horizonte materialista de realização da vida humana pela acumulação de bens materiais (SINGER, 2000). Comprovou-se que essa alternativa não levou os seres humanos a se tornarem sujeitos do seu próprio desenvolvimento.

A alternativa que hoje se coloca para a ruptura com a ditadura do capital nas empresas e para as sociedades, que tenta viabilizar uma sociabilidade em que a economia esteja a serviço das necessidades reais das pessoas e da construção de relações integralmente humanas, é a gestão coletiva dos meios de produção, executada pelos produtores livremente associados, portanto, uma economia que tem a solidariedade como seu valor ético fundamental e as relações entre os sujeitos baseiam-se na cooperação, partilha, reciprocidade, complementariedade.

Essa proposta, denominada Economia Solidária, não anuncia o fim do mercado e do Estado, mas uma reconfiguração, a fim de que sejam instrumentos que garantam a participação de todos os trabalhadores no controle e gestão dos bens produtivos.

Todavia, é necessário ter cautela na análise de algumas experiências em curso. Pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, identificaram em pesquisa sobre políticas públicas de Economia Solidária no Brasil duas vertentes políticas:

Uma que foi denominada utilitarista preconiza que as políticas relacionadas à economia solidária são obrigações devidas ou pelo Estado contemporâneo a seus cidadãos ou pela sociedade civil organizada, ambos tratando de dinamizar empreendimentos que garantam renda ou trabalho. Quer dizer, as ações de Economia Solidária seriam parte do campo sempre em ampliação daquilo que podemos denominar cidadania social, cuja culminância é dada pelo Estado de Bem-Estar e na sua articulação histórica com o mercado e com o assalariamento. Nessa interpretação, cabe ao Estado garantir os recursos estratégicos (financeiros, tecnológicos, humanos etc.) adequados à melhoria das condições de vida das pessoas e necessários à promoção de seu bem- estar. Portanto, a economia solidária seria uma espécie do gênero de iniciativas que o Estado utiliza para alcançar os fins de uma política de bemestar em comunidades carentes. A outra interpretação que denominamos solidarista (ou comunitarista) está mais de acordo com tudo o que se observa acerca dos princípios da economia solidária. Afirma que esta é um espaço de mediação entre o Estado, o mercado e a comunidade, não sendo um campo a serviço exclusivo de um ou de outro, mas que se nutre das energias dinâmicas de ambos, trilhando os caminhos da autonomia. A economia solidária encontrar-se-ia na contingência de ter de lidar com o acesso a direitos sociais e proteção mínima do Estado e dos mercados, mas lidaria com a obrigação de certos deveres de solidariedade por parte da própria comunidade. Portanto, sua função enquanto rede institucional não poderia identificá-la com políticas estatais de cunho compensatório, nem com a inclusão pelo assalariamento ou pelo mercado. A economia solidária teria como fundamento as iniciativas de base local e promoção comunitária do bem-estar, sendo Estado e mercado, subsidiários das dinâmicas comunitárias (ARAÚJO & SILVA, 2005).

A interpretação solidarista propõe uma parceria entre Estado, Mercado e Comunidade, conforme a figura abaixo, o que parece conduzir à elaboração de um novo paradigma para a vida coletiva em todas as suas esferas.

Figura 04 – Mercado, Comunidade e Estado

Resumindo, a economia solidária, de acordo com os pressupostos aprovados no Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES, constitui o fundamento de uma globalização humanizadora, de um desenvolvimento sustentável, socialmente justo e voltado para a satisfação racional das necessidades de cada um e de todos os cidadãos da Terra, seguindo um caminho intergeracional de desenvolvimento sustentável na qualidade de sua vida.

4.3 Experiências Mundiais