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Produzir para viver: o paradigma emancipatório na visão de Boaventura de Sousa

CAPÍTULO 4 A ECONOMIA SOLIDÁRIA

4.2 Principais Abordagens Teóricas sobre a Economia Solidária

4.2.6 Produzir para viver: o paradigma emancipatório na visão de Boaventura de Sousa

O projeto de pesquisa internacional Reinventar a emancipação social: para novos manifestos, questiona a globalização neoliberal que dessocializou o capital, libertando-o dos vínculos sociais e políticos que, no passado, proporcionaram alguma distribuição social e submeteu a sociedade à lei do valor, onde o mercado é soberano. Em reação a essa globalização, desenha-se aos poucos uma globalização alternativa, contra-hegemônica, composta de redes e alianças transfonteiriças entre movimentos, lutas e organizações locais ou nacionais, em todo o mundo, comprometida na luta contra a exclusão social, a precarização do trabalho, o declínio das políticas públicas, a destruição do meio ambiente e

da biodiversidade, o desemprego, as violações dos direitos humanos, as pandemias, os ódios inter-étnicos. Embora diversificados, os projetos e análises baseados na idéia de desenvolvimento alternativo têm em comum cinco pressupostos, de acordo com Santos:

O primeiro é uma crítica de fundo à estrita racionalidade econômica que inspirou o pensamento e as políticas de desenvolvimento dominantes. Contra a idéia de que a economia é uma esfera independente da vida social, cujo funcionamento requer o sacrifício de bens e valores não econômicos (...), o desenvolvimento alternativo sublinha a necessidade de tratar a economia como parte integrante e dependente da sociedade e de subordinar os fins econômicos à proteção destes bens e valores. Essa argumentação leva à defesa da distribuição dos resultados do desenvolvimento prioritariamente entre os mais pobres. Nesse sentido, o desenvolvimento alternativo inspira-se nos valores da igualdade e da cidadania, isto é, na inclusão plena dos setores marginalizados na produção e no usufruto dos resultados do desenvolvimento.

A defesa da descentralização do processo decisório sobre a economia, a partir do fortalecimento da sociedade civil. Contra o desenvolvimentismo de cima para baixo (por e para o Estado e as elites econômicas), o desenvolvimento alternativo propõe a organização das comunidades e o debate democrático para formulação de projetos e eleição das prioridades. O caráter coletivo do desenvolvimento de baixo para cima gera um processo de construção de poder comunitário que pode criar o potencial para que os efeitos das iniciativas econômicas populares atinjam a esfera política e gerem um círculo virtuoso que contrarie as causas estruturais da marginalização.

A concentração das iniciativas e reflexões no espaço do local, compreendido como território para emergência de novos padrões de sociabilidade e para o enfrentamento contra-hegemônico.

A ênfase no caráter coletivo das iniciativas, em oposição, simultaneamente, à propriedade privada capitalista e à socialização centralizada pelo Estado. Destacam-se, nesse modelo, as empresas e organizações de propriedade e gestão solidária, assim como as experiências de vivência não-capitalista, como cultivos coletivos para sobrevivência, grupos de troca e criação de moeda social.

O estímulo à autonomia na implantação das estratégias econômicas, o que significa a promoção de iniciativas baseadas em autogestão e o suporte à construção de poder nas comunidades. (SANTOS, 2002, p. 46-47)

As experiências de estímulo ao desenvolvimento alternativo são uma entre três formas complexas de alternativas de produção. De acordo com Santos, essas experiências têm em comum três valores: a igualdade, por oposição à natureza concentradora de recursos e de poder do capitalismo; a solidariedade, por oposição às formas empobrecidas de sociabilidade sob o capitalismo, como a alienação e o individualismo; a proteção ao

meio ambiente, por oposição ao caráter destrutivo, de exploração crescente dos recursos naturais, do modo de produção capitalista. A sobrevivência dessas experiências implica reformas radicais no capitalismo, baseadas em princípios não-capitalistas, ou que propõem formas não-capitalistas de produção, troca e consumo. Tais alternativas econômicas emancipatórias “têm em comum o fato de, ainda que não pretendam substituir o capitalismo de um só golpe, procurarem (com resultados díspares) tornar mais incômoda a sua reprodução e hegemonia” (SANTOS, 2002, p. 29). Elas procuram aplicar a idéia de reforma revolucionária, desde dentro do sistema capitalista, mas que facilitam e dão credibilidade a formas não-capitalistas. Seus efeitos emancipadores se dão em duas dimensões: na melhoria das condições de vida dos atores individuais dessas experiências e na ampliação dos campos sociais em que vigem valores e formas de organização não- capitalista, de modo a permitir a transformação dos padrões de sociabilidade.

Nessa cartografia, Santos inclui, na categoria de formas cooperativas de produção, aquelas vivências que no Brasil têm sido denominadas economia solidária.

Sob o paradigma emancipatório, o microcrédito é visto como uma ferramenta para acelerar o funcionamento de atividades econômicas capazes de criar condições para o surgimento de novos modos de produção, solidários, sustentáveis. Para Santos (2002), o principal limite da teoria do desenvolvimento alternativo reside em sua ênfase exclusiva na escala local. O autor reconhece que essa ênfase fortaleceu o debate sobre a efetividade dos programas desenvolvimentistas, ao preço de levar a teoria a reificar o local e a desligá-lo de fenômenos e movimentos regionais, nacionais e globais.:

Esta concentração no local sustenta-se em uma concepção de comunidade como uma coletividade fechada e indiferenciada cujo isolamento garante o caráter alternativo das suas iniciativas econômicas. De acordo com esta visão, a marginalização dos setores populares cria as condições para a existência (e a desejabilidade) de economias alternativas comunitárias que operam sem conexão com a sociedade e a economia hegemônicas (SANTOS, 2002, p. 52).

O autor considera que essa concepção limita a expansão das formas alternativas de produção, consumo ou distribuição de bens ou serviços às atividades econômicas marginalizadas, além de ignorar que, no processo de globalização, essas iniciativas precisam freqüentemente competir com o capital transnacional para se manterem vivas e realizarem seus objetivos emancipadores. Esse ponto de vista tende a tangenciar um fenômeno:

(...) a colonização, por parte do capitalismo global, das atividades econômicas e das zonas geográficas que até agora tinham permanecido nas suas margens. Nestes casos, só uma articulação da ação local em estratégias alternativas de incorporação ou resistência em escala regional, nacional ou global pode evitar a extinção das iniciativas locais confrontadas com a concorrência capitalista (SANTOS, 2002, p. 53).

Santos propõe a formulação de modos de pensamento e ação que sejam ambiciosos também em termos de escala. As estratégias de relocalização como resposta à globalização podem ser algo “não apenas inviável – dada a profunda imbricação atual entre o local e o global –, mas também indesejável, porque a solidariedade gerada no interior da comunidade não se estende a membros de outras comunidades” (SANTOS, 2002, p. 53).

Romper o isolamento entre as diversas iniciativas é vital: a fragilidade das alternativas torna necessária a sua articulação interna, com o Estado e com o setor capitalista da economia. “Esta articulação em economias plurais em diferentes escalas que não desvirtuem as alternativas não capitalistas é o desafio central que enfrentam, hoje, movimentos e organizações de todo o tipo que procuram um desenvolvimento alternativo” (SANTOS, 2002, p. 53).