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CAPÍTULO 3 NECESSIDADES BÁSICAS

3.1 A Teoria Marxista-Helleriana das Necessidades

Apesar das afirmações de alguns autores como Doyal & Gough (1991) de que o conceito de necessidade nunca foi explicitado com a devida clareza por Marx, Heller (1986) busca demonstrar que esse conceito está subjacente a todos os conceitos desenvolvidos por Marx, quando se refere à crítica da economia política, destacando o caráter antropológico e extra-econômico das necessidades.

Para Heller (1986, p. 170), necessidade é “o desejo consciente, aspiração, intenção dirigida em todo o momento para um certo objeto que motiva a ação como tal. O objeto em questão é um produto social independente do fato de que se trate de mercadoria, de um modo de vida ou de outro homem”.

Segundo essa mesma autora (HELLER, 1986), há dois tipos de necessidades. As primeiras, chamadas existenciais, que são motivadas pelo instinto de autoconservação, mas não podem ser consideradas naturais, pois elas são tomadas enquanto tais num contexto social determinado. Para não deixar dúvidas sobre o caráter social, Marx (apud HELLER, 1986) afirma, em sua obra “Grundrisse”, que a fome saciada com faca e garfo é diferente daquela satisfeita com carne crua.

O segundo grupo, chamado de necessidades propriamente humanas, são aquelas determinadas historicamente e não são dirigidas para a mera sobrevivência: descanso superior ao necessário para a reprodução da força de trabalho, uma atividade cultural, a reflexão, a amizade, o amor, a realização de si na objetivação, atividade moral, etc.

As necessidades existenciais são características do homem particular e as necessidades propriamente humanas se identificam com o indivíduo, o ser, que se eleva da particularidade. Entre as necessidades humanas encontram-se aquelas que são alienadas, tais como o dinheiro, o poder e a posse. “Com o desenvolvimento do capitalismo (...) as necessidades alienadas têm tomado a dianteira sobre a maioria restante das necessidades propriamente humanas” (HELLER, 1986, p.172).

Observa-se que a maioria dos estudos sobre a pobreza e políticas para erradicá-las estão ancoradas na crença da existência de uma relação primária-secundária entre as necessidades existenciais e as propriamente humanas. Dever-se-ia atender, primeiramente, às necessidades de autoconservação e só posteriormente as outras.

Melo-Filho (1995), indagando onde estaria a base desse modo de pensar, remete ao prefácio de “Para a Crítica da Economia Política”, de Marx, onde está dito que “o modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, política e espiritual”. Esta afirmação tem propagado a crença de que “com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez” (MELO-FILHO, 1995, p.12).

Heller se contrapõe a essa forma de pensar e agir, dizendo que “a solução não é querer primeiro transformar o mundo e os sistemas institucionais acreditando que nossa personalidade mudará automaticamente, assim como não é racional pensar que – mudando a personalidade – o mundo mudará em seguida. Esses dois processos só podem ser realizados sincronicamente e – gostaria de sublinhar isto – não de forma espontânea. Isso significa que temos de agir levando em conta, constante e conscientemente, ambos os processos: a transformação das instituições e a transformação da personalidade” (HELLER, 1982, p.162).

Melo-Filho (1995) reflete, ainda, que esse modo de pensar hierarquizando as necessidades pode ser fruto da concepção do que seria o indivíduo.

Marx afirma, nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844, que: 68

(...) deve-se evitar antes de tudo fixar a sociedade como outra abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. A exteriorização da sua vida – ainda que não apareça na forma imediata de uma exteriorização da vida coletiva, cumprida em união e ao mesmo tempo com outros – é, pois, uma exteriorização da confirmação da vida social. A vida individual e vida genérica do homem não são distintas, por mais que, necessariamente, o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais geral da vida genérica, ou quanto mais a vida genérica seja uma vida individual mais particular ou geral (MARX, 1985, p.170).

Constata-se, assim, a impossibilidade de separar dois aspectos de uma mesma substância – a particularidade e a “genericidade”.

Heller (1991), ao diferenciar o homem-particular do indivíduo, ressalta que o homem particular aspira somente a autoconservação, satisfazendo, portanto, suas necessidades existenciais. O indivíduo não apenas conserva, mas recria sua vida, satisfazendo então as necessidades propriamente humanas e apropriando-se dos utensílios e produtos, linguagem, arte, ciência, filosofia, trabalho socialmente necessário, sentimentos e paixões.

O microcrédito, na forma como as instituições têm ofertado, satisfazem apenas as necessidades de autoconservação ou as necessidades propriamente humanas? Em um primeiro momento, pode-se considerar que as instituições que ofertam crédito não direcionado estariam preocupadas com o primeiro grupo de necessidades e com as que fornecem o crédito orientado para a produção, para o trabalho, as quais estariam atentas ao segundo grupo.

Para Mészáros (1981), Marx traça a linha conceitual de demarcação entre trabalho como Lebensäusserung (manifestação de vida) e como Lebensentäusserung (alienação da vida). Assim, há uma diferença entre o trabalho que é motivado por uma necessidade interior e o que é imposto por uma necessidade externa.

Heller (1991) vai além ao afirmar que, quando na sociedade moderna se deseja satisfazer outras necessidades que não estejam intimamente ligadas à autoconservação, mas que podem ser reduzidas ao possuir, não se pode dizer que elas visam à individualidade. Ou seja, este fenômeno pode ser denominado de inchamento da particularidade, e o trabalho é levado a cabo em função da conservação da particularidade.

Heller diz ainda que no momento em que o trabalho, como atividade genérica que transcende a cotidianidade, chega a ser totalmente alienado, a execução de um trabalho perde toda a forma de auto-realização e serve única e exclusivamente para a conservação da existência particular, ou seja, para a conservação da particularidade.

Portanto, não se pode afirmar que as instituições que ofertam crédito orientado estão atentas às necessidades propriamente humanas, sendo necessário uma investigação mais cuidadosa.

Supondo-se que as necessidades propriamente humanas estão sendo atendidas, poder-se-ia considerar que o indivíduo, na acepção marxista helleriana, está sendo o alvo?

Conforme Heller, se o alvo é o indivíduo, deve-se considerar as necessidades radicais ou carecimentos radicais, que apontam para a “genericidade”. Para ela, “carecimentos radicais são os carecimentos que se formam nas sociedades fundadas em relações de subordinação e de domínio, mas que não podem ser satisfeitos quando se resta no interior delas. Sao carecimentos cuja satisfação só é possível com a superação dessa sociedade” (HELLER, 1983, p.143).

Heller explicita alguns desses carecimentos:

A humanidade unitária como realidade (e não só como idéia), como comunidade de seres que se compreendem e se apóiam reciprocamente, como unidades de formas de vida diversas que volta sempre a eliminar os contrastes de interesse; dar a todo o homem a possibilidade de desenvolver em sua personalidade a faculdade de fruição; (...) os homens sejam postos em condição de decidir, no curso de uma discussão racional, sobre o desenvolvimento da sociedade, sobre o seu conteúdo, direção e valores; igualdade de todos os homens nas relações pessoais e eliminação do domínio social; demolir a discrepância entre a coerção ao trabalho socialmente necessário e a vacuidade do tempo livre; a eliminação da guerra e dos armamentos; eliminação da fome e da miséria e que se atue sobre a catástrofe ecológica; diminuir a defasagem entre alta cultura e cultura de massa.” (HELLER, 1983, p.143 e 144).

As experiências ocorridas mundialmente, denominadas de economia solidária, poderiam ser consideradas experiências revolucionárias no sentido de exprimir estes carecimentos radicais? Seriam capazes de transformar a sociedade capitalista?

Conceito similar ao de carecimentos radicais está presente na formulação do termo “interesses estratégicos”, encontrando-se no desenvolvimento da dimensão gênero

nos projetos da cooperação técnica e financeira nacionais e internacionais, principalmente os que envolvem a geração de renda.

Küchemann, Viezzer & Zimmermann (1996) diferenciam necessidades práticas de interesses estratégicos e afirmam que os últimos visam, sobretudo, o empoderamento das mulheres.

Apresenta-se a seguir o quadro em que são descritas as principais diferenças entre necessidades práticas e interesses estratégicos

Quadro 03 – Diferenças entre Necessidades Práticas e Interesses Estratégicos

NECESSIDADES PRÁTICAS INTERESSES ESTRATÉGICOS

Dizem respeito à condição, portanto a situações de carência.

Dizem respeito à posição, portanto estão relacionados com a conquista da equidade. Abrangem áreas específicas da vida, e se

referem à satisfação das necessidades básicas, tais como água, moradia, saúde, educação, etc.

Dizem respeito à construção da cidadania: acesso sobre os recursos e controle sobre os mesmos, oportunidades de desenvolvimento pessoal, autonomia, etc.

São facilmente observáveis e quantificáveis.

São invisíveis à primeira vista, porque implicam em mudanças nas relações de poder.

Referem-se a grupos sociais específicos dentro de um contexto específico.

São comuns a todas as mulheres. Sua manifestação varia de acordo com fatores tais como etnia, religião, etc.

Podem ser satisfeitas mediante recursos específicos, como equipamentos, treinamento técnico, crédito.

Exige consciência de sua posição e estratégias de médio e longo prazos.

Podem ser satisfeitas sem transformar os tradicionais papéis de gênero.

Implicam em transformações nas relações de gênero.

Podem ser satisfeitas por outros, ou seja,

outorgadas. Requerem processos pessoais e coletivos de apropriação.

Sua satisfação permite um melhor desempenho das atividades associadas aos tradicionais papéis de gênero.

Sua satisfação visa eqüidade entre homens e mulheres e mudanças substanciais no modelo sócio-econômico e cultural vigente. Fonte: KÜCHEMANN, B. A.; ZIMMERMANN, N.; VIEZZER, M. Relações de Gênero no Ciclo de

Projetos. Brasília: GTZ, 1996, p.97.

Um dos aspectos que mais se tem destacado nas discussões sobre as necessidades estratégicas relaciona-se com a questão do poder. As organizações internacionais como o Banco Mundial e o BIRD incorporaram no seu discurso o que é chamado de empoderamento.

No paradigma feminista, empoderamento ultrapassa o domínio econômico e aumento do bem estar, conduzindo a interesses estratégicos de gênero. Empoderamento é percebido como “um processo de mudança interna (poder dentro), aumento de capacidades (poder para) e mobilização coletiva de mulheres, e quando possível de homens (poder com), com o propósito de questionar e mudar a subordinação relacionada a gênero (poder sobre)” (MAYOUX apud GUÉRIN; PALIER, 2005, p.51). Esta noção de poder envolve também dois aspectos centrais – controle sobre os recursos (físicos, humanos, intelectuais, financeiros e do “eu”) e controle sobre ideologias (crenças, valores e atitudes).

Pode-se pensar, portanto, nesses conceitos como referencial para a análise do tema a ser investigado. O microcrédito tem respondido às necessidades práticas ou tem possibilitado também a satisfação de interesses estratégicos? Ele pode ser considerado uma possibilidade de mudanças socioeconômicas e culturais substanciais, ou seria apenas uma tentativa de reinserção das pessoas na lógica capitalista?

Considera-se que a discussão sobre necessidades básicas (DOYAL & GOUGH, 2001; PEREIRA, 2002) e a abordagem de Amartya Sen (2001, 1995) dos capacitadores são avanços na identificação das pessoas que estão excluídas da sociedade e que permitem uma proposta mais avançada das políticas públicas.

Porém, a partir da compreensão de que as alternativas para se alcançar a transformação da sociedade passam pelo surgimento de um indivíduo onde estão presentes os carecimentos radicais ou interesses estratégicos, enfoques que vão além das necessidades existenciais ou práticas, considera-se que as abordagens de Heller (1986), Küchemann, Viezzer & Zimmermann (1996) podem se aproximar da proposta conhecida como economia solidária.