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ÚTIL E INÚTIL – EXAPTAÇÃO

Figura 25 – Gabriel de la Corte – grotesco com flores, 1690 - óleo s/ tela, 61 x 81 cm - coleção particular.

Dois caules em sépia, voltados um para o outro, enroscam-se sobre um fundo escuro. Lembram a espiral naturalizada dos antigos romanos e parecem esculpidos na parte de baixo, mas dos arcos maiores cresce uma folhagem exuberante que os descasca e afina, e ainda que tenham formas semelhantes, as folhas são diferentes em cada um. Se estivessem unidos formariam o herzblatt, mas há entre eles um amontoado de flores que ocupa o centro da composição, mantendo-os afastados. Do alto, a cabeça coroada de um bebê – versão grotesca do anjinho barroco – observa impassível o desenrolar orgânico das espirais, donde ainda brotam flores menores.

Na história do ornamento as cabeças de bebê são uma solução que aparece desde os relevos romanos até os ícones barrocos e rococós, enquanto as flores e espirais são motivos milenares, reproduzindo-se desde o tempo dos faraós, a título de preenchimento ou complementos de beleza, e geralmente nas regiões menos nobres das imagens - espirais em

frisos, bordas ou rodapés; flores em molduras, estampas ou papéis de parede; e anjinhos voando ao redor de santos ou jovens apaixonados. Na imagem em questão (Figura 25), um grotesco com flores do espanhol Gabriel de la Corte (1648-1694), os ornamentos ocupam todo o espaço. Não há um elemento central a adornar, e o que então estaria no fundo ou na periferia, aqui está na frente e no centro da composição.

De la Corte tornou-se mais conhecido por suas naturezas mortas com vasos, cestas, arranjos florais e guirlandas - temas populares na pintura de sua época. Nunca esteve sob as graças de uma corte real ou dum mecenas, e vivendo em condições modestas, produzia e vendia imagens para sobreviver, tendo de atender às demandas populares por pintura puramente decorativa. O grotesco com flores parece um tanto abstrato se comparado a uma de suas naturezas mortas (figura 26), mas em ambos vê-se a mesma operação, o empilhamento de ornamentos de uma outra ordem. Retomando o modelo de Wornum - de uma oscilação, ao longo da história da arte, entre estilos simbólicos e estéticos - pode-se localizar

essas imagens num momento de proliferação ornamental desmedida, em que as formas ultrapassam suas função de signo ou complemento de beleza, tornam-se o próprio significado, a própria beleza – os meios tornam-se os fins. Wornum entendeu esse processo como indício de decadência cultural, sustentando que o bom ornamento “...é essencialmente um acessório ao, e não o substituto do, útil; é uma decoração ou adorno; não pode ter existência independente na prática. Não podemos olhar para nenhum ornamento sem instantaneamente associá-lo a algo a que ele serve, ou é destinado, a adornar; como um colar ou um bracelete. Mesmo uma estatueta não é um ornamento, a não ser que se o associe a uma prateleira ou outro objeto ou suporte a que ele possa servir de adorno. Se olharmos para ela como uma mera estatueta ou retrato, ela é

Figura 26 – Gabriel de la Corte – natureza-morta com flores, 1680 - óleo s/ tela, 83 x 62 cm - coleção particular.

puramente um trabalho de arte, não um ornamento; porque ela é então principal, em vez de ser um acessório, uma condição absoluta de todo ornamento.”48

Se o que define um determinado objeto como ornamento não é uma qualidade que lhe é própria, mas a forma como ele se relaciona com o todo em que está inserido, é porque não existe algo como uma qualidade ornamental imanente; se o que percebemos como ornamentalidade resulta de um conjunto de relações entre os diversos elementos de uma composição, então qualquer objeto artístico poderia ser reduzido a ornamento, contanto que adequadamente inserido num conjunto em que funcione como mero acessório. E pode também acontecer o contrário? Pode o simples deslocamento da periferia para o centro promover o humilde ornamento a objeto artístico? A natureza morta floral sugere que sim, e o grotesco com flores o prova e celebra; mas essa inversão nem sempre é vista com bons olhos. Para Wornum a diferença entre o bom e o mau ornamento passa justamente pelo cumprimento de sua função de acessório: o bom ornamento é que aquele que embeleza, significa ou orienta – por exemplo, numa sala com várias portas, o tapete vermelho indica qual é a principal - e o mau ornamento, aquele que descumpre essas funções ou mesmo as compromete, tornando-se um fim em si mesmo.

Figura 27 – Adaga de osso com o cabo esculpido em forma de rena.

Wornum observou que a hierarquia entre ornamento e objeto ornamentado se inverte em vários momentos da história da arte, e tal seria o caso da transição do Quattrocento para o Cinquecento: “Apesar de que no Quattrocento o simbolismo religioso ter sido excluído de maneira geral (...) dos detalhes ornamentais, o sentimento religioso não estava de forma alguma ausente da própria arte da época. (...) Há pouca decoração além do que é meramente auxiliar para um design religioso. Esse não era o caso no Cinquecento; as próprias figuras e temas são uma mera parte – geralmente secundária – do esquema ornamental...”49 Pode-se voltar mais no

tempo, para antes ainda do ornamento do império romano tardio: dentre os artefatos pré-

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WORNUM, Ralph Nicholson. Analysis of ornament – The Characteristics of Styles. Londres: Chapman and Hall, 1879. Pgs. 9-10.

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históricos encontrados por Edouard Lartet nas cavernas de Laugerie-Basse50, consta uma adaga

de osso cujo punhal foi esculpido na forma de uma rena (Figura 27). Ora, tal formato para o cabo de uma ferramenta não a torna exatamente mais fácil de manusear; sua funcionalidade foi sacrificada em favor da forma ornamental. Esse exemplo pode ser entendido como uma espécie de kitsch pré-histórico, por conta da subversão da funcionalidade em favor da forma ornamental – processo que então já não pode ser atribuído apenas ao contexto da revolução industrial, como fizeram muitos teóricos pessimistas do século XIX. As formas serviram sempre a seus próprios fins, e para isso não precisam de máquinas ou produção em série.

Figura 28 - John Currin - Heritage Hall, 2003. òleo sobre tela, 96,5 x 127 cm. Courtesy Gagosian Gallery

Tais questões acerca da função e lugar corretos do ornamento estão longe de esgotadas, e continuam aparecendo na pintura do século XX, desde as abordagens pictóricas mais abstratas até as mais figurativas. Em Heritage Hall (figura 28), do norte-americano John Currin (1962), vê-se uma coleção de objetos que lembra uma natureza morta - um jogo de mesa, em porcelana, em que algumas peças têm detalhes em dourado enquanto outras portam pequenas pinturas de paisagens

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– ver os pratos, xícaras e saleiros. Novamente a reprodução, em pintura, de ornamentos de uma outra ordem - complementos como elemento central, numa inversão que o artista promove propositalmente e não sem uma certa ironia: jogos de porcelana não raro não se destinam ao uso que aparentam ter, servindo mais como decoração para ambientes; a pintura sobre a porcelana, bem visível nos pratos, denuncia o caráter decorativo desses objetos; e por fim, a pintura dum jogo de porcelana pintado denuncia a denúncia, sobrepondo três camadas de inutilidade. Há então um lugar adequado para o ornamento, que não todos os lugares?

Para o Louis Sullivan (1856-1924), o bom ornamento, mais que mero acessório, é aquele que brota e se desenvolve organicamente a partir da semente do projeto arquitetônico – uma analogia que também se aplica às outras artes visuais, como a pintura, na medida em que o projeto arquitetônico também é uma composição visual. O mau ornamento, este sim secundário e dispensável, seria aquele que é aplicado de forma displicente, já nas etapas finais do projeto, apenas para tapar vãos ou forçar um efeito de beleza que não aparece na estrutura da composição. A relação entre forma e função torna-se então mais complexa do que a simples subserviência: em 1887, numa reunião da Associação de Arquitetos do Illinois, Sullivan afirmou não acreditar na subordinação dos detalhes ao conjunto, “na medida em que a palavra ´subordinação´ transmita uma idéia de casta ou grau, envolvendo a sugestão de uma força maior suprimindo uma menor; mas acredito sim na diferenciação entre detalhes e massa (...), porque essa palavra simboliza para mim uma idéia que lhe é congenial, aquela de um crescimento expansivo e rítmico, em uma construção, de um único impulso germinal ou idéia, que deve permear a massa e todos os seus detalhes com o mesmo espírito, a tal ponto que seria difícil determinar (...) qual é o mais importante, qual de fato subordina, detalhe ou massa, assim como seria difícil dizer de uma árvore (...) ‘qual é mais para nós, as folhas ou a árvore?’”51 Distingue-se então o todo das partes,

mas recusa-se a hierarquia entre eles na medida em que ambos brotem organicamente de uma mesma raiz: numa composição, seja ela uma pintura ou a fachada de um edifício, o ornamento tem de ser pensado desde o início, em relação com toda a estrutura, e não acrescentado a ela no final. Sullivan tornou-se conhecido por suas idéias acerca da organicidade das formas, freqüentemente associadas à noção de ornamento orgânico de John Ruskin. Mas as duas concepções são bem diferentes: para Ruskin o bom ornamento teria de ser inspirado em formas naturais, copiado ou estilizado, enquanto que para Sullivan, a organicidade está menos na

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inspiração das formas do que na maneira como elas se desenvolvem - gradualmente, num processo análogo ao das metamorfoses observadas na natureza.

A abordagem de Sullivan parece mais romântica, na medida em que permite uma analogia entre a evolução das formas na arte e na natureza, abrindo um campo para se pensar o ornamento em que as noções de forma e função já não são tão claras. Ainda que para Sullivan a noção de organicidade do ornamento seja aparentemente metafórica, pode-se também pensar essa relação de modo mais literal: admitindo-se que o ornamento possa brotar a partir de uma “idéia-semente” para então se proliferar organicamente, como uma planta, há também que se considerar a idéia de que as formas estão vivas, e que elas de algum modo se reproduzem e evoluem, seguindo uma lógica própria num processo análogo ao dos organismos vivos. Nesse sentido, Sullivan não foi único a entender os movimentos da arte em termos de processos orgânicos: em A Vida das Formas, publicado pela primeira vez em 1943, Henri Focillon (1881-1943) afirmou que “A vida é forma, e a forma é o modo de ser da vida. Os laços que unem as formas entre si na natureza nunca poderiam ser pura contingência, e aquilo a que chamamos vida natural define-se como uma relação necessária entre as formas, sem as quais não existiria. O mesmo acontece com a arte. As relações formais numa obra e entre as obras constituem uma ordem, uma metáfora do universo.”52 Pode-se argumentar que essa sugestão de processos elementares, comuns aos

universos da matéria orgânica e da imaginação humana, não faz mais que revelar as aspirações românticas e desejos de transcendência de seu autor; ou que a crença na forma como possuidora de um valor “...que lhe é muito próprio, um valor pessoal e particular que não se deve confundir com os atributos que se lhe conferem”53, fale mais do ideário modernista que das próprias formas.

Mas essa sugestão levanta também questões que ultrapassam os contextos de seus autores: por onde passam as fronteiras entre ciências naturais e humanas?

Até que ponto pode-se levar essa analogia entre arte e natureza, entre as metamorfoses do mundo material e do imaginário? Tal relação não é tão ultrajante quanto pode parecer num primeiro momento. Para Focillon, “Sempre seremos tentados a procurar para a forma outro sentido que não o dela própria (...). O signo significa, enquanto a forma se significa. E a partir do momento em que o signo adquire um valor formal relevante, este último age fortemente sobre o valor do signo como tal, podendo esvaziá-lo ou desviá-lo, conduzindo-o para uma nova vida.”54 52 FOCILLON, Henri. A vida das formas. Edições 70: Lisboa, 2001. Pg.12.

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Ibid, pg.14.

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Noutras palavras, a força de uma forma pode desviar ou mesmo anular sua função de signo, e é certo que isso se dá no âmbito da arte e, mais especificamente, do ornamento - como já visto por Riegl e Wornum, em suas teorias sobre a transição do simbólico para o estético. E que dizer das formas na natureza? Nesse sentido, os paleontógos Stephen Jay Gould (1941-2002) e Elisabeth Vrba, num artigo intitulado Exaptation - a missing term in the science of form55, cunharam o

termo exaptação, complemento e contraparte da noção darwiniana de adaptação, para denotar o desvio funcional dum traço hereditário ao longo da evolução de uma espécie. Se na adaptação as formas desenvolvem-se para desempenhar certas funções, geralmente ligadas à sobrevivência do organismo, na exaptação, formas já existentes encontram funções diferentes daquelas que desempenhavam originalmente. Tal é o caso da penas das aves, que surgiram como dispositivos reguladores de temperatura e só muito tempo depois é que se adaptaram para facilitar o vôo. A paleontologia conta com inúmero exemplos destes desvios funcionais, que afastam a idéia de evolução como progressão linear, e reconhecimento desse processo como exaptação favorece uma leitura não-teleológica das transformações na natureza, purgando o evolucionismo neo- darwinista de quaisquer resquícios de positivismo.

Essa incursão no campo da biologia não é sem propósito: a noção de exaptação, transposta para o campo da arte, serve também para descrever as transformações do ornamento - cujas formas ora são signos, ora complementos de beleza, ora a própria beleza. Se na natureza, como na arte, formas podem encontrar novas funções, que dizer da forma que já não tem função, chegando mesmo a comprometê-la? Na arte este seria o caso do ornamento excessivo, que já não significa nada, e tampouco embeleza – lembrando que um dos critérios utilizados para se definir o kitsch é justamente o comprometimento da função pela forma, como naquela adaga de osso pré- histórica em que o punhal foi esculpido em forma de rena. Essa situação também tem paralelos com a biologia: num ensaio56 que questiona a funcionalidade do mimetismo enquanto mecanismo

de defesa do organismo, o filósofo francês Roger Caillois (1913–1978) aponta que tal habilidade muitas vezes termina levando o animal à morte de formas inusitadas. Certas lagartas, por exemplo, de tão bem disfarçadas de folhas acabam devoradas por herbívoros ou podados por jardineiros, quando não roem umas às outras. Então, se o mimetismo a princípio tem fins defensivos, servindo à segurança do animal, ele também pode tornar-se um fim em si mesmo,

55 GOULD, Stephen Jay, and Elisabeth S. Vrba. Exaptation - a missing term in the science of form. Paleobiology

8, 1982. Pgs. 4–15.

56 CAILLOIS, Roger. Mimetismo e psicastenia legendária. Revista Che Voui, ano 1, nº, Cooperativa Cultural

servindo assim de armadilha fatal. Caillois relaciona esse desvio funcional à psicastenia legendária, um distúrbio psicológico em que o sujeito confunde-se com o espaço à sua volta. Ora, e se a subversão funcional observada na natureza tem relação com o universo interior do homem, servindo como metáfora para distúrbios psicológicos, porque não o teria também com a arte, que nasce da imaginação humana?

A analogia entre natureza e arte, então, não é descabida. Se na natureza forma e função nem sempre andam juntas, na arte não é diferente, e é surpreendente que Sullivan, mesmo vivendo no século XIX e imerso no positivismo de então, tenha abstraído da história da arte uma noção de funcionalidade enviesada semelhante à exaptação, em que “Funções nascem de funções, e por sua vez fazem nascer ou morrer outras funções. Formas emergem de formas, e outras emergem ou descendem destas. (...) Elas respondem, correspondem, atraem, repelem, convalescem, desaparecem, reaparecem (...) do caos ao caos, da morte à vida, da vida à morte, do repouso ao movimento, do movimento ao repouso (...). Tudo é forma, tudo é função – incessantemente desdobrando-se e recolhendo-se – e o coração do Homem se desdobra e se recolhe com eles...””57Pode-se então sugerir que as formas da arte estão tão vivas quanto aquelas

da natureza; e que se vivem, devem também poder reproduzir-se, proliferar-se ou exintiguir-se. Ao mesmo tempo, se a forma pode ser sua própria função, perde-se o sentido da distinção e hierarquia entre elas, como queriam Wornum e outros teóricos de sua época, e assim a leitura de Sullivan parece mais adequada para descrever a complexidade dessa relação.

Problematizando a autonomização do simulacro, o filósofo francês Jean Baudrillard afirmou que "Quando as coisas, o signos, as ações, são libertadas de sua idéia, de seu conceito, de sua essência, de seu valor, de sua referência, de sua origem e finalidade, entram então numa auto-reprodução ao infinito. As coisas continuam a funcionar ao passo que a idéia delas já desapareceu há muito. Continuam a funcionar numa indiferença total a seu próprio conteúdo. E o paradoxo é que elas funcionam melhor ainda."58 Tal raciocínio também permite identificar uma

espécie de morte não por desaparecimento, mas por proliferação, que é também análoga ao transbordamento ornamental: o esvaziamento do significado é a morte do símbolo, e o ornamento puramente estético, seu cadáver.

O que são, então, as formas que se apresentam no grotesco com flores de Gabriel de la Corte? Se não são mais acessórios, pode-se ainda chamá-los de ornamentos? Parece que tal

57SULLIVAN, Louis H. Kindergarten Chats and Other Writings, Nova York : Wittenborn Art Books, 1969. Pg. 45. 58 BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal. Campinas: Papirus, 1996.

empilhamento de motivos, criado nos últimos anos de vida do artista, é uma espécie de comentário ou abstração da operação que ele repetiu, inúmeras vezes, ao longo de sua própria trajetória como pintor; um arranjo floral é decoração para o ambiente, assim como um quadro o é para a parede, e os motivos espirais para a pintura. Essas formas já não são signos nem ou complementos de beleza – são a própria beleza, e se bastam; não servem para preencher um vazio – o vazio é que é criado para acomodá-las. Assim como as penas das aves, esses ornamentos foram criados como meios para atingir fins específicos, mas os meios tornaram-se os fins; assim como no mimetismo que destrói invés de preservar, os meios chegam mesmo a comprometer os fins. Exaptações do ornameto, as formas de Gabriel de la Corte apresentam-se como testemunhas silenciosas dum processo de dispêndio que é próprio da natureza, da exuberância orgânica que a proliferação ornamental, na arte, reflete...