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ATRAÇÃO & REPULSÃO – PROLIFERAÇÃO FATAL

“Não há melhor meio para se familiarizar com a morte

do que associá-la a uma idéia libertina.” - Sade

Figura 52 – H.R.Giger - Paisagem XX, 1973, acrílico sobre papel/madeira, 70x100cm.

Um padrão regular, composto por dois elementos simples, se espalha sobre uma superfície de modo a preenchê-la completamente (Figura 52). Se fosse maior a superfície, poderia repetir-se indefinidamente e em todas as direções, caracterizando assim um ornamento num sentido estritamente formal, como num papel de parede ou nos padrões utilizados pela indústria têxtil. Não se trata de um ornamento convencional: os motivos que o compõem não são flores, frutas ou formas geométricas, mas séries justapostas de pênis penetrando vaginas. Nada resta aqui da sutileza das naturezas mortas eróticas, em que a sexualidade é sugerida de forma quase subliminar; glandes, testículos e vulvas apresentam-se diretamente ao olhar, obscenos. Mas essa pornografia não apresenta aquela qualidade contagiosa que é própria da excitação sexual. Apesar do sexo ser aqui explícito, há algo mais, algo implícito, há sugestões de uma outra ordem: as vaginas se encontram entre nádegas enfileiradas, cujas coxas desaparecem nas costas de outras

nádegas; os pênis não têm corpos, flutuam sozinhos, e entre eles acumula-se um material escuro e nodoso, de aspecto desagradável. Parece que essa orgia está imóvel há algum tempo; essas ereções não pulsam mais, estão mortas. A imagem sugere a um só tempo volúpia e putrefação.

No prefácio para uma publicação que inclui o registro da obra e a autobiografia de Giger, o escritor e psicólogo norte-americano Timothy Leary (1920-1996) comparou o artista a Hieronimus Bosch e Pieter Bruegel, por sua capacidade de revelar como nossas realidades são construídas e destruídas: “A obra de Giger perturba-nos pela sua enorme dimensão evolutiva e parece-nos fantasmagórica. Revela-nos, com demasiada nitidez, de onde vimos e para onde vamos. Remonta às nossas memórias biológicas Paisagens ginecológicas. Postais ilustrados intra-uterinos, Giger vai ainda mais longe, penetra no núcleo das nossas células. Gostarias de conhecer o teu código do ácido desoxirribonucleico? Queres observar o teu ácido ribonucleico, como faz nascer células e tecidos em grande quantidade, e constrói, impiedosamente, o nosso edifício carnal? (...) Nestes quadros, vemo-nos a nós próprios como embriões rastejantes, como fetos e larvas... (...) Vemos as nossas cidades, como civilizações, como colméias, como colônias de formigas, povoadas por criaturas rastejantes: nós. Giger dá-nos coragem para saudarmos nosso eu insectóide.”87

Leary alude a um passado evolutivo distante, quando insetos primitivos organizar-se em sociedades pela primeira vez. Foram os insetos que criaram a tática da metamorfose, o domínio das várias fases do desenvolvimento do organismo, cada uma mais ágil e eficaz que a anterior, dividindo suas sociedades em castas muito antes que os humanos o fizessem. Para sustentar a relação entre a produção pictórica de Giger e as propriedades anatômicas e sociais dos insetos, Leary parte de um estudo88 do escritor e naturalista sul-africano Eugène Marais (1871-1936), que

trata das sociedades dos cupins africanos. Para Marais, a integração entre as centenas de milhares de indivíduos numa colônia é tão perfeita, que ela toda pode ser considerada como um único organismo. Pode-se sugerir então que Giger, remete, em última intância, mais a um estado de indiferenciação primitiva do que à realidade dos insetos.

Mas a relação ancestral do indivíduo com o social não é o único ponto de contato entre os universos de Giger e o dos insetos. Roger Caillois, num ensaio publicado pela primeira vez em 1934 na revista Minotaure, discorreu sobre certos rituais de acasalamento observados entre diversas espécies de insetos, e que envolvem o sacrifício aparentemente voluntário do macho

87 GIGER, H.R. H.R.Giger ARh+. Köln : Taschen, 2004. Pg. 4.

durante o coito. O melhor exemplo desse ritual é aquele bem conhecido do louva-deus, em que o macho se deixa devorar pela fêmea durante o ato sexual: “Os naturalistas distinguem no louva- deus a forma extrema da estreita conexão que parece unir a voluptuosidade sexual e a voluptuosidade nutritiva, conexão que em Dali se faz de uma maneira toda imediata e intuitiva. Sobre isso é necessário ao menos citar, depois de Leon Binet, os estudos de Bristowe e Locket sobre a Pisaura Mirabilis, cuja fêmea come durante o coito uma asa oferecida pelo macho; aquelas de Hancock e von Engelhardt sobre o L' Oecantus Niveus, que possui sobre o metatórax uma glândula cujo conteúdo e absorvido pela fêmea imediatamente após o acasalamento, particularidade dividida por uma barata Phyllodromia Germânica; aquelas de Stitz sobre a mosca-escorpião, que come durante o coito os glóbulos de saliva que lhe preparou o macho; assim sendo, a fêmea do cardiacephala myrmex se nutre nas mesmas circunstâncias de elementos regurgitados pelo seu macho, que freqüentemente lhe oferece de boca a boca; e aquela do dectique de frente branca, abrindo o ventre de seu companheiro, extraindo o liquido espermático, e o devorando.”89

A vida sexual dos insetos, então, aponta para um elemento de morte e destruição que integra o ato sexual. No caso específico do louva-deus, o canibalismo pode ser explicado pela necessidade, por parte da fêmea, de uma quantidade considerável de matéria albuminóide e protéica para a fabricação de seus ovos. Essas substâncias não poderiam ser encontradas em grande quantidade em nenhum outro lugar que não em sua própria espécie, e o macho então consentiria em deixar-se devorar, na medida em que esse sacrifício garanta a continuidade de seu sangue. Mas essa hipótese cai por terra, como observou Caillois, na medida em que a fêmea não devora o macho no momento em que mais necessita dessa nutrição; do contrário: arranca-lhe a cabeça antes de iniciar o coito, e devora-lhe o corpo durante o ato.

A necessidade de nutrição, então, não é suficiente para explicar o canibalismo sexual dos insetos. Outra abordagem se faz necessária, e Caillois, como em seu ensaio sobre a psicastenia legendária, sugeriu um caminho que permitisse a aproximação com a psicanálise, e para tal, aludiu aos estudos de vários naturalistas de sua época que registraram fatos perturbadores sobre a natureza do ato sexual. É digno de nota, por exemplo, o fato de que o louva-deus macho decapitado executa melhor, e por mais tempo, os movimentos espasmódicos do coito. Essa situação peculiar não exclusiva dos insetos: ao se remover cirurgicamente os centros nervosos

superiores das rãs, elas se colocam imediatamente na atitude do coito, coisa que elas não fazem normalmente senão na primavera, estação do acasalamento. Assim, Caillois sugeriu que a fêmea do louva-deus, ao decapitar o macho antes do acasalamento, tenha por objetivo, além do complemento nutricional, uma melhor e mais longa execução do coito: “...em última instância, seria o princípio do prazer que comandaria o assassinato de seu amante, do qual além disso ela começa a absorver o corpo, durante o ato mesmo do amor.”90

Se essa discussão parece distante do âmbito humano, convém lembrar com Caillois que “Nessas metamorfoses (...) em favor das quais o inseto se desindividualiza e retorna ao reino vegetal, completando por sua vez estas incríveis capacidades de automatismo e a atitude desenvolta da qual ele parece se valer em face da morte (...) o homem pode reconhecer a sua própria (morte) em sua atitude de rezar, ou no amor de fato, em seus costumes nupciais...”91 O fascínio exercido

pelo louva-deus, então, passa pelo reconhecimento de uma ambivalência fundamental em relação ao erotismo, muito bem expressa no apelido atribuído pelos

franceses ao orgasmo – a pequena morte. Tendo isso em mente, os mais terríveis atos de violência podem transfigurar-se em cópula, e vice-versa; ver a pintura da italiana Artemisia Gentileschi (1593–1652) que retrata Judite degolando Holofernes (Figura 53). Na expressão fria de Judite não se vê fúria, êxtase, horror ou quaisquer outras emoções turbulentas que se esperam de um vingador no momento em que executa sua vingança. Do contrário, parece impassível e concentrada, como se estivesse a abater um animal de grande porte. Holofernes, que pode estar nu sob os cobertores, parece surpreso - talvez dormisse quando foi atacado – e até tenta lutar, mas a assassina tem um cúmplice: uma mulher anônima ajuda a segurá-lo em sua cama enquanto Judite o degola. Se lida por um viés biográfico, essa imagem pode falar dos desejos de vingança

90 CAILLOIS, Roger. Le Mante Religieuse. Revista Minotaure, vol 5, 1934. Pg 25. 91 Ibid. Pg 26.

Figura 53 - Artemisia Gentileschi, Judite degolando

Holofernes, 1612-21. Óleo sobre tela, 199 x 162 cm. Galleria degli Uffizi, Florença.

da artista em relação ao pintor Agostino Tassi (1578-1644), que a estuprou. Mas ela não pode também remeter a uma violência muito mais fundamental? Como o erotismo repelente das paisagens de Giger, essa imagem de Gentileschi sugere aquela mesma ambivalência que Caillois reconheceu como fonte do fascínio exercido pelo ritual de acasalamento do louva-deus, que é a constatação de uma dimensão profundamente perturbadora do sexo.

A noção de ambivalência, no sentido em que é empregada aqui, aparece pela primeira vez em Totem e Tabu92, ensaio do psiquiatra austríaco Sigmund Freud (1856-1939) sobre as emoções

contraditórias que, por vezes, permeiam as relações familiares e sociais. Em linhas gerais, para Freud o horror ao incesto corresponderia a um forte desejo de cometê-lo, e daí depreende a existência de um mecanismo psíquico, a que se refere como ambivalência e que se aplicaria às situações mais variadas – do desejo oculto pela sogra ao medo de fantasmas. Caillois empregou o termo num sentido semelhante, e como Freud, também construiu seu argumento com base em uma extensa pesquisa antropológica. Ao examinar a relação do homem com o sagrado93 em

manifestações religiosas de culturas e épocas diferentes - das consideradas primitivas às do cristianismo do século XX – encontrou em todas elas os sinais de uma experiência essencialmente paradoxal, em que as mesmas forças sobrenaturais capazes operar milagres a nosso favor podem também nos amaldiçoar e destruir, e daí as regras e restrições criadas em torno de certos objetos de culto. Num contexto ocidental e cristão, tem-se um deus que é a um só tempo amoroso e vingador, e entende-se que a complicada liturgia do templo de Salomão, narrada em detalhes no Velho Testamento, não seria mera formalidade, mas uma medida de segurança necessária para a prevenção de maldições contagiosas.

Nesse sentido a ambivalência do erotismo implica, senão na equidade do desejo e do horror, numa experiência de atração e repulsão simultâneas. No nível das vísceras elas se equivalem e remetem a um passado distante, a estratégias de reprodução primitivas, cujos ecos ainda se fazem ouvir na consciência e imaginação humanas. Caillois, em seu ensaio sobre o louva-deus, puxou a ponta desse novelo sem, no entanto, desenrolá-lo completamente, mas como Leary ao tratar da pintura de Giger, encontrou nos insetos a imagem ideal do retorno do primitivo. Mas isso não equivale a dizer que a realidade dos insetos homofágicos esteja na origem da ambivalência do erotismo: o primitivo que nele retorna remonta a um passado ainda

92

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. In: Obras psicológicas completas: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

mais distante. É Bataille quem desenrola o novelo nessa direção: o erotismo, sendo uma forma de dispêndio, tem sempre um elemento de sacrifício e destruição voluntários, como aqueles do Cristo ou do louva-deus macho. Jogo de interdito e transgressão cujo tema, velado, é a reprodução, se por um lado é promessa de vida, por outro, liga-se ao aspecto luxuoso da morte através de um elo ancestral que remonta à vida unicelular.

Ao admitir-se que o sexo possa ser repelente por remeter à morte, o inverso também pode de ser verdadeiro, e a morte pode tornar-se atraente de um modo quase sexual. Assim, ao discorrer sobre o horror que o humano tende a experimentar diante de um cadáver, Bataille sugeriu que a morte tem sempre um duplo sentido, em que “de um lado o horror nos afasta, ligado ao apego que inspira a vida; do outro, um elemento solene, ao mesmo tempo assustador, nos fascina, introduzindo uma inquietação suprema.”94 Tal reação “...é a mais forte na espécie

humana, e o horror à morte não está somente ligado à destruição do ser, mas à putrefação que devolve a carne morta à fermentação geral da vida.”95 Para entender esse retorno à fermentação

geral, é preciso levar em conta as noções de continuidade e descontinuidade dos seres nos termos de Bataille. A descontinuidade, para este autor, seria condição da individualidade e característica de todos os seres vivos, na medida em que há entre eles um abismo aparentemente intransponível. Já a continuidade seria um estado de inconsciência apenas possível na morte, na natureza inorgânica e na esfera do sagrado.

Esse pensamento está na base de sua interpretação do sacrifício religioso, que pode também ser comparado à ação erótica: imolar um animal, ver findar sua existência descontínua, é devolvê-lo à continuidade divina que antecede a descontinuidade da vida. Daí a relação a relação contraditória do humano com o sagrado: “Os homens são em um mesmo tempo submetidos a dois movimentos: o terror, que intimida, e a atração, que comanda o respeito fascinado. O interdito e a transgressão respondem a esses dois movimentos contraditórios: o interdito intimida, mas a fascinação introduz a transgressão.”96 Assim, para Bataille a continuidade divina está ligada à transgressão da lei que funda a ordem dos seres descontínuos.

O ser descontínuo que é o humano se esforça para manter-se na descontinuidade, mas a morte, ou pelo menos sua contemplação, entrega-o à experiência da continuidade; a origem desse vínculo se encontra num passado distante que antecede o humano, o mamífero ou o inseto,

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BATAILLE, Georges. O Erotismo. Porto Alegre : L&PM, 1987. Pg. 42.

95 Ibid. Pg. 53. 96 Ibid. Pg. 64.

remontando à vida unicelular das amebas e bactérias, quando ainda não havia sexo. Quando, na reprodução assexuada, o organismo divide-se em dois, o original desaparece, deixando duas cópias idênticas: o momento da reprodução é o mesmo momento da morte. Com o desenvolvimento de formas de vida mais complexas, culminando nos seres multicelulares e sexuados, cria-se uma distância aparente entre estes dois momentos. Mas, talvez por conta de uma memória celular que opera por vias misteriosas, sentimos ainda, em relação ao sexo, um princípio da vertigem que se experimenta quando diante do abismo da morte. Assim, “A sexualidade e a morte são apenas os movimentos intensos de uma festa que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres, uma e outra tendo o sentido do desperdício ilimitado que a natureza executa contra o desejo de durar que é próprio de cada ser.”97 Não é essa

constatação, mais ou menos consciente, do vínculo indissociável entre sexo e morte, criação e destruição, a base da ambivalência do sagrado, como descrita por Caillois? Bataille sugeriu que sim, ao relacionar o erotismo ao sacrifício religioso por conta de sua capacidade de precipitar os seres descontínuos – temporariamente no primeiro caso, e definitivamente, no segundo – na continuidade divina, que é própria da morte.

A essa altura os genitais pútridos de Giger já não parecem tão estranhos quanto podem ter parecido num primeiro momento: falam daquela ambivalência fundamental que liga o sexo à morte. Resta então o caráter serial da imagem, sua composição por repetição: o padrão formado pelos genitais pode ser repetido indefinidamente e em todas as direções, de modo a cobrir superfícies como um papel de parede. Tendo em mente a natureza ambivalente do erotismo, capaz de remeter à morte, pode-se retomar o pensamento de Baudrillard, para quem “Nada mais (...) desaparece pelo fim ou pela morte mas por proliferação... (...) Já não há modo fatal de desaparecimento, mas sim um modo fractal de dispersão.”98 Não é essa idéia de morte por

proliferação análoga àquela de um retorno à fermentação geral da vida, de que falava Bataille? Também a autonomização do simulacro, processo que transforma meios em fins, é análogo àquele da proliferação cancerosa, que é “a perda da regra do jogo orgânico de um corpo, que faz com que determinado conjunto de células possa manifestar sua vitalidade incoercível e mortífera, desobedecer aos próprios comandos genéticos e proliferar ao infinito.”99

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BATAILLE, Georges. O Erotismo. Porto Alegre : L&PM, 1987. Pg. 58.

98 BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal. Campinas: Papirus, 1996. Pg. 10. 99 BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal. Campinas: Papirus, 1996. Pg. 38.

Ora, todas as ressalvas feitas em relação ao ornamento entre a segunda metade do século XIX e a primeira do XX dizem respeito à sua proliferação descontrolada, capaz de comprometer o efeito geral que pretende a composição; o ornamento também pode tornar-se um câncer. Assim, o ornamento erótico de Giger é tudo menos banal, e a voluptuosidade mórbida de seus genitais, dispostos como um padrão de modo a preencher completamente a superfície da imagem, remete novamente ao vazio da morte...