• Nenhum resultado encontrado

ANIMAL E HUMANO ARTIFÍCIOS DE SEPARAÇÃO

“Às vezes eletrizo-me ao ver o bicho. Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho. (...) Fico ao que parece com medo de encarar os instintos abafados que diante do bicho sou obrigada a assumir. (...) Não humanizo o bicho porque é ofensa – há de respeitar-lhe a natureza – eu é que me animalizo.” Clarice Lispector, Água Viva

Figura 29 - Audrey Flack, Wheel of Fortune, 1977-78, 244 x 244 cm.

Essa imagem tem todas as características formais de uma natureza morta: uma coleção de objetos cotidianos, dispostos de forma aparentemente acidental, cobre toda a superfície da composição. (Figura 29) No centro e ao fundo há uma ampulheta, ao lado de um crânio que, por sua vez, está colocado diante de um espelho, em que se lhe vê o reflexo; do alto pende um cacho

de frutas vermelhas, e entre o espelho e a ampulheta vê-se a carta da roda da fortuna, décimo arcano maior do tarô, próxima a uma vela vermelha, já queimada até a metade; há também um retrato, correntes, dados e um batom. Apesar da disposição dos objetos aparentar gratuidade, o significado que se lhes atribui não tem nada de aleatório; todos remetem, direta ou indiretamente, à passagem do tempo.

Trata-se de uma pintura da norte-americana Audrey Flack (New York, 1931) que, intitulada Wheel of Fortine, joga com os efeitos do hiper-realismo. A imagem é parte de uma série de composições semelhantes em que, entre coleções de objetos prosaicos, aparecem outros crânios, espelhos, velas acesas, flores, e frutas – signos que identificam a vanitas, estilo específico de natureza morta. Ao compor suas imagens com esses objetos, a artista se inscreve num gênero de pintura que remonta ao amanhecer da modernidade, particularmente ao século XVII e à ascensão barroca, e que tem uma genealogia particular que percorre seus próprios caminhos entre as dimensões estética e simbólica da arte.

Enquanto gênero independente, a natureza morta aparece na Europa a partir do século XVII ligada a circunstâncias científicas e econômicas. As ciências naturais como hoje as conhecemos então davam seus primeiros passos; em tempos de lentes de aumento e outros mecanismos óticos que ampliassem a capacidade do olho humano, a figuração documental tornou-se uma ferramenta científica importante, levando a uma maior valorização da pintura que procurasse representar a realidade tal como empiricamente observada. Ao mesmo tempo, na Holanda a pintura era usada pelos mais abastados para anunciar, ou ostentar, a produção agro- pastoril de suas propriedades; daí as naturezas mortas com pilhas de legumes ou carnes. O estabelecimento da natureza-morta enquanto gênero, então, acompanha tanto o da pintura naturalista e da ilustração científica quanto o da pintura de gênero dos artistas holandeses. Num primeiro momento os objetos escolhidos para compor as naturezas-mortas eram aqueles do cotidiano - mesas, comida, bebidas, louça, flores, frutas, instrumentos musicais, livros, ferramentas, cachimbo, tabaco, e assim por diante - objetos perfeitamente prosaicos, retirados do âmbito privado e doméstico, das vocações, dos pequenos afetos e da decoração.

Figura 30 - Natureza morta com fruteira de vidro e jarros – Pompéia 63-79 AC - 108 × 70 cm – Museu Arqueológico Nacional de Nápoles.

Apesar da história da arte ocidental atribuir o nascimento da natureza-morta à idade média, imagens de flores, frutas e vasos são produzidas desde a antiguidade, como atestam alguns dos afrescos de Pompéia. Num exemplar do Museu Arqueológico Nacional de Nápoles (Figura 30) vê-se uma travessa de vidro com frutas, uma urna, e um recipiente menor sobre um balcão de pedra. Ao lado da travessa, uma das frutas está partida, deixando ver seu interior – um detalhe recorrente nas naturezas-mortas medievais. Ainda que tais coleções possam parecer banais, seu silêncio é apenas aparente; algumas podem realmente não significar nada, mas há também aquelas em que significados são sugeridos através de objetos específicos, como crânios, frutas podres, velas apagadas e espelhos - signos da passagem do tempo e da vaidade humana. Para esse fim, se algumas frutas estiverem meio podres, tanto melhor. Esse gênero de pintura da antiguidade romana é chamado vita brevis, funcionando como lembrete da brevidade da vida.

Figura 31 - Philippe de Champaigne. Natureza morta com crânio, 1671. Óleo sobre madeira, 28 x 37 cm. Museu de Tessé, Le Mans.

Pode-se até questionar a intencionalidade dos significados atribuídos aos afrescos de Pompéia sob o rórulo de vita brevis - na medida em que o contexto em que foram produzidos é distante e, até certo ponto, inacessível - mas quando a pintura medieval tomou uma direção semelhante, o discurso é evidente. Na tradição das naturezas mortas, a vanitas é uma coleção de objetos aparentemente insignificantes, como um prato, um pão e um peixe, que ganha uma dimensão perturbadora com a introdução de frutas podres - ela é agora um lembrete da decadência inevitável de tudo que é material. Tal discurso nem sempre foi sutil; por vezes a dimensão simbólica da imagem pôde sobrepujar a estética. Numa vanitas (figura 31) do francês Philippe de Champaigne (1602 - 1674), a coleção foi reduzida a três objetos: uma flor, um crânio e uma ampulheta. Juntos, funcionam como uma sugestão quase literal dos efeitos da ação do tempo.

Para inscrever as naturezas mortas de Audrey Flack na tradição das vanitas, é preciso começar perguntando que tipo de admoestação moral ela contém. Como predominam objetos relacionados ao cuidado com a aparência, é tentador associá-los aos espelhos das vanitas medievais - mas esse caminho esgotaria a discussão rápido demais. As coleções de Flack têm alguns elementos que não aparecem nas naturezas mortas medievais: o luxo moderno da maquilagem. Ainda que persista aí a questão da vaidade, a maquilagem remete a questões ligeiramente diferentes.

Frascos de esmalte e perfume, bastões de batom e estojos de maquilagem fazem parte de um repertório que não se encontrava disponível na idade média, e que remete à questões próprias da modernidade. Complementos de beleza para o corpo, funcionam como ornamentos numa composição de carne. Como acessórios servem a fins específicos, como ocultar rugas, infecções, pintas e odores. Não se trata de camuflar apenas os indícios da passagem do tempo, mas também aqueles de nossa natureza animal, material e decadente. O poeta e teórico da arte francês Charles Baudelaire (1821-1867), num ensaio intitulado Elogio à Maquilagem, contrapôs tais artifícios à feiúra inerente a tudo que é natural: “Se (...) consentimos em recorrer simplesmente ao fato visível (...) veremos que a natureza não ensina nada, ou quase nada, isto é, ela obriga o homem a dormir, a beber, a comer e a se garantir, como pode, contra as hostilidades da atmosfera. Também é ela que leva o homem a matar seu semelhante, a comê-lo, a seqüestrá-lo, a torturá-lo; pois, logo que saímos da ordem das necessidades e das urgências para entrar na do luxo e dos prazeres, vemos que a natureza só pode aconselhar o crime. (...) Passem em revistam analisem tudo o que é natural, todas as ações e os desejos do puro homem natural, encontrarão apenas o detestável. Tudo o que é belo e nobre é o resultado da razão e do cálculo.”59

O artificial e o natural são contrapostos num jogo maniqueísta, sendo o primeiro o domínio do humano. Assim, os adornos corporais tornam-se “um dos sinais da nobreza primitiva da alma humana. As raças que nossa civilização, confusa e perversa, trata naturalmente de selvagens, com um orgulho e uma fatuidade completamente risíveis, compreendem, assim como a criança, a alta espiritualidade do adereço. O selvagem e a criancinha atestam, através de sua ingênua aspiração ao brilho, às plumas coloridas, aos tecidos reluzentes, à majestade superlativa das formas artificiais, seu desdém pelo céu, e assim provam, sem saber, a imaterialidade de sua alma.”60 O ornamento do corpo, então, é indício da atividade do espírito, e 59

CHIAMPI, Irlemar. Fundadores da modernidade. São Paulo : Ática, 1991. pg. 116.

portanto artifício de separação que cria uma distância aparente entre o animal e o humano. Vê-se que a maquilagem de Audrey Flack não pode ser reduzida às admoestações morais das vanitas medievais. Trata-se também dum artifício com que o humano quer transcender sua condição animal, destacar-se da natureza e tornar-se, ele mesmo, artificial.

Refletindo sobre a criação dessas fronteiras, o filósofo italiano Giorgio Agamben (Roma, 1942), em O homem e o Animal, sugeriu que a identidade humana, tradicionalmente pensada como uma conjunção de animalidade e razão, na prática, sempre se fez mais através da separação entre humanidade e animalidade.61

Assim, em vez de entender o humano como conjunção de corpo e alma, de um elemento natural e outro sobrenatural, seria preciso aprender a pensá-lo como resultado da desconexão desses dois elementos, e o ornamento do corpo – as jóias, a maquilagem e os perfumes – seria um dos meios através dos quais essa desconexão se faz.

O adereço como distintivo aparece na pintura de retratos de reis. Num guache do francês Henri de Gissey (1621-1673), Luís XIV é apresentado como o deus solar Apolo, mas ele não está fazendo nada extra-ordinário, e tampouco há qualquer coisa de sobre-humana em seu corpo; a expressão de seu caráter divino fica toda por conta de suas roupas, cobertas por um ornamento em forma de raio de sol, e especialmente de sua coroa de plumas. (figura 32) O historiador inglês Peter Burke (Stanmore, 1937), num estudo sobre a construção da imagem pública de Luís XIV, destaca o uso dos adereços reais – como perucas, saltos altos, mantos, e é claro, maquilagem – na constituição de uma imagem pública que inspirasse a dignidade que se espera de um monarca. Luís era “geralmente retratado vestindo armadura, romana ou medieval, ou o manto real ornamentado com flores-de-lis e debruado de

61 AGAMBEN, Giorgio. L´aperto. L´uomo e l´animale. Torino, Bollati Boringhieri, 2002. Trad. port. Selvino José

Assmann.

Figura 32 – Gissey, Henri. Louis XIV como Apolo, 1653. Lápis & guache, 167 x 260 mm.

arminho. Combina esses trajes arcaicos com uma peruca do final do século XVII. Não mão, traz um orbe, um cetro ou um bastão, todos símbolos de comando.”62 É pelo valor dos ornamentos

que se distingue o rei do plebeu, e não se trata apenas de seu efeito estético; mais que meros acessórios de beleza, conferem certas qualidades a seu portador.

Se então retomamos a natureza-morta de Audrey Flack, que espécie de admoestação moral encontramos? Certamente, não se trata apenas da vaidade humana ou da passagem do tempo. Tratando primeiro da imagem como um todo, Flack pensa a relação da pintura com a fotografia, mas constrói um desvio em que o hiperrealismo problematiza a ilusão: a beleza como artifício e o colorido como engano são questões que dão sentido à imagem, aludindo ao universo da publicidade e do consumo. Por outro lado, como sugeriu Baudelaire, se a maquiagem pode ser vista como expressão de espiritualidade e distintivo do humano, não se pode negar que ela é também artifício de beleza, e portanto ferramenta de sedução. Para Baudelaire, caberia à fútil maquiagem a missão de demarcar os limites do humano. Mas ainda que a usemos com esse propósito em mente, até que ponto ele é bem sucedido?

Lembramos, conforme Sullivan e Bataille, que o ornamento é uma forma de dispêndio, reflexo de uma exuberância natural em que os meios não cessam de tornar-se fins em si mesmos. Todavia, olhando os ornamentos do corpo por esse viés, não se pode dizer que sejam realmente exclusivos do humano; ver a cauda do pavão macho que, longe de ajudá-lo a sobreviver, dificulta-lhe o vôo e o torna presa fácil, e ainda assim parece ser irresistível para as fêmeas. É então como um ornamento em que a forma tornou-se a própria função, enquanto ferramenta de sedução. Apesar da evolução das formas vivas ser freqüentemente entendida como um processo teleológico, tais desvios funcionais já tinham sido observados por Charles Darwin (1809-1882) que, em sua Origem das Espécies, sugeriu a noção de seleção sexual63 em contraponto àquela da

seleção natural. Por mais bem adaptado que seja um organismo, suas preciosas adaptações são inúteis se não for capaz de seduzir um parceiro. Em muitas espécies as fêmeas preferem acasalar com machos que possuam características morfológicas exageradas. As características selecionadas pelo sexo oposto são os ornamentos da natureza: não necessariamente funcionais num sentido prático, surgem devido à preferência arbitrária por algum caráter morfológico, inicialmente aumentado por deriva genética. Assim, desenvolvem-se formas que não têm

62

BURKE, Peter. A fabricação do Rei – A construção da imagem pública de Luís XIV. Jorge Zahar : Rio de Janeiro. Pgs. 43-44.

nenhuma finalidade senão a de torná-los mais atraentes para o sexo oposto. Que dizer então da idéia de maquilagem como artifício de separação? Ainda que seja exclusiva do humano, em vez de separá-lo do animal, inscreve-o novamente entre eles; o ornamento que Flack nos apresenta, então, encerra em si a complexidade de uma solução que, a um só tempo, oculta e revela a natureza animal do humano...