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INTERDITO E TRANSGRESSÃO – (DES)VELAÇÃO

Figura 37 – Mercúrio em La storia di Amore e Psiche, de Raffaello Sanzio e seus alunos. Villa Farnesina, Roma.

Entre guirlandas de flores e frutas, Mercúrio flutua nu, abre os braços e sorri. Na mão direita traz clarim, com a esquerda aponta para o alto. Apresenta-se em seu traje habitual: asas no chapéu e nos pés, nada sobre o corpo senão uma capa, que em nada ajuda a esconder-lhe a nudez. Apesar do nu frontal, de início não parece haver sugestão sexual nessa imagem: a nudez de Mercúrio é tornada inofensiva por sua genitália diminuta e quase infantil.

Figura 38 - detalhe da moldura de Hermes em La storia di Amore e Psiche.

Um exame mais cuidadoso, porém, revela o contrário. Ao redor da figura mítica no centro da composição - o elemento discursivo da imagem - estendem-se três guirlandas, compostas de folhas, flores, legumes e frutas, funcionando como uma moldura extravagante - o ornamento, dimensão periférica e supostamente superficial da imagem. Ali, na direção em que Mercúrio aponta com a mão esquerda, vê-se o desenrolar de uma ação bem diferente: a abobrinha está prestes a penetrar o figo aberto.

Figura 39 - La storia di Amore e Psiche

A imagem em questão é uma das cenas de uma série de afrescos conhecida como La storia di Amore e Psiche, ou A História de Cupido e Psiquê (Figuras 37 a 39), executada por Raffaello Sanzio (1483-1520) e seus pupilos em 1517, na loggia da Villa Farnesina – um palácio projetado pelo arquiteto e pintor italiano Baldassare Peruzzi (1481-1537) e construído entre 1508 e 1511, em Roma. As guirlandas que separam e emolduram as cenas são obra de um dos alunos de Raffaello, o italiano Giovanni da Udine (1487-1564), especialista na criação de ornamentos grotescos em afresco e estuque. A sugestão de uma cópula frugal, discretamente inserida numa guirlanda, empresta a todo o conjunto uma qualidade a um só tempo bem-humorada e subversiva, colocando uma série de questões sobre a natureza do erotismo e sua relação com o ornamento.

A introdução dissimulada de elementos eróticos na pintura renascentista não foi uma excentricidade exclusiva do círculo de Raffaelo, apesar de ali aparecer pela primeira vez, nas molduras das guirlandas que então se encontravam nos lugares mais respeitáveis, como residências ou igrejas. O pintor norte-americano John Varriano, num artigo intitulado Fruits and

Vegetables as Sexual Metaphor in Late Renaissance Rome73, mostrou que a sugestão de genitais

em figos, pêssegos, melões e abóboras foi uma operação relativamente comum no período entre Raffaelo (1483-1520) e Caravaggio (1571-1610), e que isso se deu em razão de uma série de circunstâncias históricas. Na medida em que a cultura do renascimento tornava-se mais secular, pintores e poetas expandiam seus repertórios temáticos para incluir temas do cotidiano e do mundo natural. Nas artes visuais, a paisagem e natureza morta emergiam lentamente da representação narrativa - apesar do baixo status delegado a estes gêneros na hierarquia estética de então – e, como predominava a pintura histórica, muitos artistas justificavam seus esforços introduzindo alegorias em suas imagens. Assim, algumas naturezas mortas incorporavam comentários sociais, outras sugeriam lições de moral – caso das vanitas, ou memento mori – e outras ainda incluíam ironias e piadas sutis.

Mas ler essas imagens como meras tentativas de humor esgotaria-lhes a potência rápido demais. Considerando a fábula que serve de tema à série – a do casamento de Eros e Psiquê, donde nasce Voluptas, o prazer - parece natural que ela contenha algum elemento erótico; mas aqui ele foi disfarçado e relegado à periferia do ornamento. Mercúrio é quem conduz Psiquê ao Olimpo, onde os deuses aprovam seu casamento com Eros e lhe oferecem uma taça de ambrosia. Estariam Raffaelo e Giovanni sugerindo que essa ambrosia, o alimento dos deuses, é na verdade amrita - fluídos sexuais magicamente carregados, obtidos através de rituais orgiásticos que remontam ao culto infame de Dionísio – a substância com que então acreditava-se poder materializar objetos e espíritos, realizar transmutações alquímicas, entre outros prodígios? Só podemos especular. Ao mesmo tempo, é curioso como nus frontais aparecem em mais de uma cena, mas em todas os genitais apresentam-se infantilizados e adormecidos. Assim, se há um interdito em ação ele diz mais respeito à função sexual dos órgãos genitais do que à sua exposição. Considerando ainda a fama libertina dos nobres e artistas do renascimento italiano, em especial aqueles do círculo de Raffaelo, esse interdito torna-se ainda mais intrigante. Será realmente apenas uma brincadeira sutil?

O pintor, arquiteto e biógrafo italiano Giorgio Vasari (1511-1574), em Vidas dos mais eminentes pintores, escultores e arquitetos74, dedicou um capítulo a Giovanni da Udine e descreveu ali os afrescos da Villa Farnesina, reconhecendo a presença de um falo: “Entre as

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VARRIANO, John. Fruits and Vegetables as Sexual Metaphor in Late Renaissance Rome. Gastronomica: The Journal of Food and Culture, vol.5, no.4, pp.8–14. California: University of California, 2005.

74 VASARI, Giorgio. Lives of the most eminent painters, sculptors and architets. Tradução para o inglês de

figuras estão aquelas de um Mercúrio no ato do vôo, e a de um Priapus. Sobre a última há uma abobrinha envolta em suas gavinhas, com abóboras entre suas flores, e grandes cachos de figos, alguns rompendo de tão maduros, e também misturados com flores: todas estas fantasias expressas com tanta graça, que ninguém poderia imaginar nada mais perfeitamente realizado.”75

Ainda que rica em detalhes, a descrição não menciona a natureza da interação entre a abobrinha e o figo; não fica claro se o Priapus mencionado é aquele de Mercúrio ou a abobrinha. Ao final do capítulo,Vasari louva as qualidades morais de Giovanni: “Giovanni foi sempre, mas mais especificamente perto do fim de sua vida, um homem que temia a Deus, e era um bom cristão. Em sua juventude permitiu-se poucos prazeres...”76 A descrição de Vasari sugere, mas também

mantém oculto, o caráter erótico da imagem, e nesse sentido é tão dissimulada quanto a guirlanda de Giovanni.

Na Alegoria do Outono (figura 40) do italiano Niccolò Frangipane (1555-1600) um sátiro cutuca uma fruta aberta e agarra, com a outra mão, uma salsicha estrategicamente posicionada diante dos quadris dum jovem. O rapaz, adormecido e com um mamilo exposto, parece acariciar uma tigela próxima a um figo fendido. Pode-se entender essa imagem como alegoria dum sonho erótico, de modo que o sátiro seria em verdade súcubo. Mas que dizer da

representação gráfica da manipulação dos órgãos genitais? Manipulação esta que não se caracteriza como masturbação, visto que a comida é que é manuseada e não os genitais. A intenção sexual da imagem não é nada sutil, do contrário, é explícita. Porque então disfarçá-la com comida? Não parece tratar-se dum simples interdito moral em relação ao sexo; configura-se aqui um jogo mais complexo. Tanto a Alegoria do Outono de Frangipane quanto as guirlandas de Giovanni da Udine – bem como sua descrição por Vasari - tomam parte num mesmo jogo de

75

VASARI, Giorgio. Lives of the most eminent painters, sculptors and architets. Tradução para o inglês de Jonathan Foster. Londres : 1852, Henry G. Bohn., Pg. 26.

76 Ibid, Pg. 32.

Figura 40 - Niccolò Frangipane, Alegoria do Outono, Civici Musei e Gallerie di Storia e Arte di Udine

dissimulação que, situado num meio termo entre o velar e o desvelar, nunca faz mais do que sugerir. E se num primeiro momento tal jogo apareceu na periferia do ornamento, nas guirlandas e molduras de Giovanni da Udine, ele logo migrou das margens para o centro. As insinuações eróticas passaram do segundo para o primeiro plano, e por fim tornaram-se o próprio tema.

Figura 41 - Vincenzo Campi, Cristo na casa de Maria e Marta. Óleo sobre tela. Galeria Estense, Modena.

O grau de sutileza do jogo variava - talvez de acordo com a distância dos censores de igreja – e, em alguns casos, pode-se perguntar até que ponto o erotismo está mesmo na imagem, e não nos olhos de quem vê. Tal é o caso da produção pictórica do pintor italiano Vincenzo Campi (1536-1591), conhecido por retratar cenas aparentemente inocentes de mercados e cozinhas, em que pequenos detalhes parecem conspirar em favor de uma tensão sexual subjacente. Na cena de mercado intitulada Cristo na casa de Maria e Marta (figura 41), a feirante introduz sugestivamente o indicador numa posta de peixe, enquanto a cena bíblica que dá o nome à imagem acontece ao fundo, em segundo plano.

Figura 42 - Vincenzo Campi, cena de cozinha, 1580s. Óleo sobre tela. Pinacoteca di Brera, Milão.

Noutra cena de cozinha de Campi (figura 42) a tensão sexual é mais evidente: ver as expressões indubitavelmente maliciosas com que seus personagens olham uns para os outros. A mulher que prepara a ave, no canto inferior-direito, observa um cão e um gato que disputam algumas vísceras, e sorri misteriosamente, sem saber – será? - que também é observada; outra mulher, que lhe volta as costas e trabalha abaixada, olha para trás com uma expressão difícil de decifrar. A propósito, mulheres abaixadas com o traseiro voltado para o alto aparecem em várias das cenas produzidas por Campi. Ainda na extremidade direita da imagem, vê-se um jovem introduzindo um espeto num frango já depenado; no lado esquerdo destaca-se a idosa que, descansando o pilão sobre o colo, sorri com indisfarçável maldade. Estaria recordando os prazeres de sua juventude, ou planejando prazeres mais imediatos, talvez com o rapaz que enche uma bexiga? Até aqui ainda pode-se argumentar, como já foi mencionado, que como tais cenas não têm nada de explicitamente sexual e que nós é que projetamos nelas nossas fantasias ocultas. Mas o que dizer diante dos comedores de ricota? (Figura 43) Nessa imagem, Campi retratou três homens e uma mulher: dois provam uma ricota, talvez recém-preparado pela mulher, e o terceiro estende a mão na direção do queijo, sugerindo estar prestes a prová-lo também. Mas há algo estranho na

Figura 43 - Vincenzo Campi, Os comedores de ricota. Museu de Belas Artes de Lyon

forma como comem, abocanhando colheres cheias, mastigando com a boca aberta e deixando ver o queijo branco sobre a língua; além disso, todos olham para o observador com a mesma expressão maliciosa e enigmática encontrada em outras cenas do artista. Independente das possíveis conotações eróticas que a ricota possa ter possuído na Itália renascentista – portas nem sempre acessíveis – os gestos e expressões destes personagens basta para sugerir uma devassidão subliminar.

Figura 44 – Caravaggio - Natureza morta em balcão de pedra, 1603. Coleção particular.

Admitindo que a pintura renascentista de fato contenha metáforas sexuais em diferentes graus de sutileza, pode-se também lançar um novo olhar sobre as naturezas mortas. Segundo Varriano, esta natureza morta com frutas em balcão de pedra (figura 44) foi recentemente atribuída ao pintor italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610). Ainda que tal atribuição não seja universalmente aceita, a composição dramática de fato lembra aquelas dos retábulos deste artista que, em vida, já era considerado enigmático e um tanto satírico. Aqui se vêem melões, romãs, figos, pêssegos e outras frutas e legumes, e sabe-se que Caravaggio, um empirista por natureza, pintou não menos de uma dúzia de naturezas mortas, ricas em detalhes a ponto de ser possível identificar insetos parasitas e pragas. Independente de tal imagem ter sido,

ou não, produzida por Caravaggio, o fato é que a essa altura já não é possível lê-la como mero amontoado de frutas e legumes. Ver como a abobrinha pende languidamente sobre as abóboras, na direção dos figos e pêssegos – sugestão, talvez, de intumescência sexual e receptividade à penetração?

Figura 45 - DELLA PORTA, Giambattista. Phytognomica. Nápoles: H.Salvianum, 1588. Pg. 240

Figura 46 - DELLA PORTA, Giambattista.

Phytognomica. Nápoles: H.Salvianum, 1588. Pg. 211

Parece que, durante para a cultura pós-reformista de Roma, frutas e legumes eram especialmente adequados para metáforas eróticas. Ainda que a ortodoxia política e religiosa tenha feito do humor a única saída aceitável para o desejo transgressivo, a exploração do potencial humorístico de frutas e vegetais também teve influência da crença, então popular, na doutrina das assinaturas. Tal doutrina, que remonta a Aristóteles, afirma uma continuidade direta entre o corpo humano e a natureza, e fundamentava a medicina popular até meados do século XVIII. Implica na idéia de que as semelhanças entre formas do corpo humano e formas do mundo natural não são obras do acaso, mas sinais de uma relação misteriosa, ancestral e passível de exploração para fins mágicos ou medicinais. Essas noções aparecem numa publicação de 1588, do italiano Giambattista Della Porta (1535-1615), intitulada Phytognomica77 e repleta ilustrações semi-científicas comparando espécies botânicas com membros e órgãos humanos (figuras 45 e 46). Não só o corpo humano estaria representado na natureza, mas também animais e plantas uns

nos outros; assim não se trata de simples humanização da natureza, mas de uma noção mais sofisticada de inter-relações entre espécies aparentemente distintas, intuição pré-científica de que as formas naturais se encontram numa metamorfose perpétua e, para nós, imperceptível.

Figura 47 - Roy Lichtenstein, Bread in Bag. Óleo sobre tela, 2 painéis de 72 x 144 cm cada. 1961.

Juntos, humor e pseudociência sustentaram os jogos metafóricos envolvendo comida e sexo durante quase um século, do Alto Renascimento ao início do século XVII. Mas o jogo não se limita ao Renascimento ou aos legumes: ver Bread in Bag (Figura 47) do norte americano Roy Lichtenstein (1923-1997), em que mãos femininas introduzem um pão num saco de papel. Figuras femininas mais ou menos sexualizadas são um elemento importante na produção pictórica de Lichtenstein, identificado com a pop-art e a linguagem dos quadrinhos, mas Bread in Bag se destaca como única sugestão da mecânica dos órgãos sexuais em ação, remetendo diretamente às guirlandas de Giovanni da Udine. Aqui não se trata mais de vegetais, embora o jogo ainda se fundamente sobre comida.

Noutros casos a metáfora é vegetal mas não-comestível, como na pintura floral da norte americana Georgia O’Keeffe (1887-1986). Em Grey Line with Black, Blue, and Yellow (Figura 48), o que a princípio parecem pétalas sugerem detalhes anatômicos de uma vulva: lá estão o capuz clitoriano e os lábios. Flores são especialmente significativas para a história do ornamento, remetendo à arte egípcia, e de inegável conotação erótica uma vez que são, para as plantas, órgãos sexuais e artifícios de sedução.

Bataille, num ensaio intitulado A Linguagem das Flores78, sugere que o

significado que atribuímos a elas não deriva necessariamente de sua função: quando ofertamos flores à pessoa amada, são as pétalas, e não os órgãos úteis, que se tornam o signo do desejo. Daí pode-se depreender uma certa ambigüidade em toda a arte floral, visto que

“...mesmo as mais belas flores são maculadas em seus centros por órgãos sexuais cabeludos. Assim o interior de uma rosa não corresponde em nada à sua beleza exterior; se alguém arranca todas as pétalas da corola, tudo que resta é um tufo bastante sórdido. Outras flores, é verdade, apresentam estames muito bem desenvolvidos e inegavelmente elegantes (...) mas torna-se claro sob um olhar mais próximo que essa elegância é um tanto satânica: daí certos tipo de orquídeas gordas, plantas tão sombrias que se é tentado a atribuir a elas as mais perturbadoras perversões humanas.”79 Mesmo dum ponto de vista biológico, as flores não estão livres de uma certa dissimulação: suas pétalas - que evoluíram para os olhos poliédricos de insetos polinizadores e

78

BATAILLE, Georges. Visions of Excess – Selected Writings, 1927-1939. Tradução pra o inglês de Allan Stoekl. University of Minnesota Press : Minnesota, 1986. Pgs. 10-14.

79 Ibid. Pg. 12.

Figura 48 – Georgia O'Keeffe, Grey Line with Black,

certas aves, e não para os olhos humanos - funcionam como artíficios de sedução que operam pelo engano, valendo-se de cores e composições circulares como promessas de açúcar, e reafirmando assim a noção de que o ornamento, na natureza, serve sempre à seleção sexual, tal qual a cauda do pavão ou o seio feminino.

Retornando ao âmbito da história da arte, vê-se que esse jogo de dissimulação, muito bem representado nas guirlandas de Giovanni de Udine, sobrevive ao Renascimento e persiste até a pop-art, e ainda que tome outras formas, suas regras básicas parecem se manter. Uma leitura psicanalítica o veria como mecanismo de expressão de conteúdo recalcado, que revela escondendo, ou esconde mostrando - a mesma lógica que se aplica na interpretação dos sonhos proposta por Freud. Mas se o jogo prescinde de recalque – e esse parece ser o caso em Roy Lichenstein e Geórgia O´Keeffe – é porque deve haver nele algo mais do que uma simples válvula de escape. Não há mais inquisição ou censura, e ainda que um certo cerceamento moral persista ao longo de todo o século XX, este não é suficiente para tolher a representação gráfica e direta do sexo. Tanto é assim, que este século viu coexistir erotismo e pornografia - e não se trata aqui de tentar uma leitura cronológica do afrouxamento gradual das amarras morais ao longo dos últimos séculos de história; ver os afrescos de Pompéia, uma sociedade em que os interditos em relação ao sexo eram brandos - se comparados aos do ocidente cristão – a ponto de tolerar a criação de imagens pornográficas, mas que não obstante cultivava também uma tradição pictórica erótica, com direito a véus e sugestões sutis.

Ora, qual é então a natureza do jogo erótico, senão a do recalque? Para Bataille, o conhecimento do erotismo e da religião exigiriam uma experiência pessoal, direta e paradoxal, tanto do interdito quanto da transgressão. Mas “essa dupla experiência é rara. As imagens eróticas, ou religiosas, suscitam essencialmente em uns o comportamento do interdito, em outros, comportamentos contrários. Os primeiros são tradicionais. Os segundos são comuns, pelo menos sob a forma de uma pretensa volta à natureza, à qual se opunha o interdito.” 80

Assim, vemo-nos novamente às voltas com a questão dos limites do humano, fronteiras que o separam da natureza e que, para Bataille, são demarcados pelo interdito. Trazendo essa discussão para o âmbito do ornamento, não podemos deixar de mencionar a noção, delineada por Loos em 1904, de que o estado de civilização equivaleria ao afastamento do estado natural do humano, observável em crianças e nos povos ditos primitivos. O retorno à natureza seria assim um sinal de

degeneração: “Pode-se medir o grau de civilização de um país atentando à quantidade de rabiscos pintados nas paredes de suas latrinas. Para o menino, rabiscar é um fenômeno natural: sua primeira manifestação artística consiste em rabiscar símbolos eróticos nas paredes. Sem embargo, o que é natural em Papua e nos meninos, em um homem moderno resulta em degeneração.”81 Sabemos que Loos via no ornamento o emblema máximo dessa degeneração na

vida e arte modernas. Mas para Bataille, a transgressão difere da volta à natureza, “...ela suspende o interdito sem suprimi-lo. Aí esconde-se o suporte do erotismo e se encontra, ao mesmo tempo, o suporte das religiões.”82 O erótico e o sagrado, então, fundam-se sobre o mesmo

jogo em que o interdito existe apenas para ser transgredido.

Nas artes visuais, o ornamento parece ser um lugar privilegiado para a transgressão. É no âmbito da pintura ornamental que tal jogo floresce com mais facilidade, e não é por acaso que as imagens apresentadas aqui pertençam a escolas e estilos considerados decorativos ou banais. As guirlandas de Giovanni da Udine denunciam justamente a natureza paradoxal do jogo erótico: se transgredimos por desgostar do interdito, também interditamos pelo prazer de transgredir, tratando-se, em última instância, da mesma lógica de dispêndio que está na base da noção de sagrado - os meios tornaram-se fins em si mesmos. Por essa via, faz sentido o fato da sugestão erótica na História de Cupido e Psique encontrar-se justamente na guirlanda que serve de moldura a Mercúrio. Sendo quem conduz Psique ao Olimpo, onde esta consegue o perdão dos deuses e a permissão para se casar, ele torna-se também responsável pelo nascimento de Voluptas - este, por sua vez, não é o prazer da fricção dos órgãos genitais, mas um deleite mais sofisticado, aquele da transgressão dum interdito que, criado apenas para esse fim, toma no ornamento a