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SIMBÓLICO E ESTÉTICO – ENTRE O SENTIDO E OS SENTIDOS

Figura 18 – Beatriz Milhazes - O marinheiro, 1998, óleo sobre tela. 217x217cm.

Franjas, babados e cristas, flores, círculos e espirais, linhas paralelas, pontilhadas e outros padrões ornamentais amontoam-se sobre uma superfície (Figura 18). Normalmente reservados à periferia dos contornos, aqui os ornamentos não têm nada a que adornar: soltos no espaço, enrolam-se sobre si mesmos criando as formas circulares que predominam na composição. Se essa imagem conta uma estória - e o coração azul na parte superior pode ser sugestivo nesse

sentido - esta é ofuscada pela exuberância do ornamento. A imagem não precisa de uma estória, assim como o ornamento não precisa de um elemento central, e a oferta das formas por elas mesmas logo remete a essa dupla independência.

A imagem em questão é uma pintura da brasileira Beatriz Milhazes (Rio de Janeiro, 1960), conhecida por combinar motivos florais, psicodélicos, arabescos, símbolos pop e outros ornamentos, retirados de épocas e culturas diversas. Na produção da série de pinturas de que essa imagem faz parte, a artista começou construindo moldes das formas desejadas, donde então decalcou a tinta com que compôs a imagem. Esse processo de composição a partir de formas pré-existentes é geralmente entendido como

colagem, mas no caso de Milhazes o resultado final é tinta sobre tela, é difícil não reconhecê-lo como pintura. De caráter essencialmente abstrato e ornamental, a regularidade sensual da imagem só é interrompida pela presença do coração, insinuando um princípio narrativo que o observador, se quiser, pode desenrolar como um novelo. Ver como esse coração é composto de frios tons de azul, e possui sua própria moldura de gotas negras, que pendem como lágrimas; soma-se a isso o título atribuído à imagem – o marinheiro – e pode-se facilmente imaginar o luto da amante dum marinheiro que, certa vez, foi para o mar e não voltou. Mas não é sem um certo esforço da imaginação que o observador extrai uma narrativa da imagem, na medida em que a maior parte de seus ornamentos não têm significado aparente. Parece que a sutil sugestão literária expressa no coração é que funciona como uma espécie de enfeite para o caráter predominantemente decorativo da composição.

Assim, por mais contemporânea que seja a pintura de Milhazes, ela remete a uma discussão específica sobre o ornamento, que remonta ao século XIX, e de que se ocuparam os historiadores da arte de então. Nas tipologias e genealogias do ornamento que esses autores elaboraram, além das diferenças formais entre os estilos, a questão do sentido dos motivos também serviu para demarcar categorias. Essa discussão foi influenciada pela egiptomania que marcou a Europa e os Estados Unidos durante a segunda metade do século XIX, voltando a atenção dos teóricos para o ornamento egípcio - que era essencialmente simbólico, contrastando

fortemente com a profusão fitomórfica e decorativa do art nouveau de então. O lótus egípcio ocupou um lugar central no debate, ainda que o que esteja em questão não seja a persistência de um ou outro motivo em particular, mas um processo mais genérico, que é o da oscilação entre o caráter simbólico e estético do ornamento: para Riegl, “Qualquer símbolo religioso pode se tornar um motivo pura ou predominantemente decorativo ao longo do tempo, se tem potencial artístico. Quanto um motivo é executado, por suas associações religiosas, numa grande variedade de materiais, o estereótipo criado pode conquistar vida própria.”23

Um dos mitos egípcios sobre a origem do mundo conta que, num tempo em que o universo ainda não existia, um botão de lótus flutuava sozinho na escuridão, e entediado em meio ao vazio infinito em que se encontrava, pediu ao deus-Sol andrógino, Rá, que criasse um espaço onde ele pudesse existir; tendo sido prontamente atendido, o agradecido lótus passou a abrigar o deus-Sol em suas pétalas todas as noites. Essa estória – uma entre muitas outras semelhantes - sugere o significado espiritual que o lótus tinha para os antigos egípcios, e explica, ao menos em parte, a grande quantidade de objetos, residências e templos decorados com motivos inspirados nessa flor. Como regra, os elementos do ornamento egípcio tinham um significado específico, e raramente eram escolhidos apenas por conta do efeito de beleza; esse estilo de decoração, executado em templos, tumbas e palácios, valia-se unicamente de símbolos religiosos, como flores de lótus, cruzes e escaravelhos. Mas o lótus, que no Egito era uma promessa de ressurreição, nos países vizinhos logo tornou-se mera decoração. As culturas que adotaram os símbolos egípcios posteriormente não entendiam mais seu significado religioso, a julgar pela forma aparentemente arbitrária com que os aplicavam; o que outrora se encontrava apenas em templos e tumbas logo começou a aparecer em pratos, vasos, cadeiras e toda sorte de objetos cotidianos.

As transformações dos motivos inspirados no lótus egípcio servem de exemplo ótimo do processo a que Riegl se refere, e que seria inevitável na medida em que um símbolo é reproduzido com freqüência, em vários materiais e ao longo de um período suficiente de tempo. Se esse símbolo tiver em sua origem um sentido religioso, tanto melhor: isso facilitaria a criação de um estereótipo que pode, então, tornar-se familiar a ponto de enraizar-se. De fato, muitos dos objetos cotidianos - roupas, acessórios, ânforas e outras utilidades domésticas – dos antigos fenícios e gregos também eram decorados com motivos inspirados em símbolos sagrados

egípcios24. Ao examinar o ornamento assírio, Riegl concluiu que eles também teriam se

apropriado do lótus egípcio, mantendo seu sentido religioso, mas desenvolvendo-o à sua maneira, de modo a resolver melhor certas questões técnicas - como a da continuidade do motivo quando ele tem de dobrar-se perpendicularmente, para acompanhar um friso ou parede.25 Entre os

fenícios o lótus também era um motivo popular, mas já com um sentido completamente diferente; como eram mercadores e navegadores, transportavam e comercializavam objetos de culto, artísticos e decorativos de todos os países circundantes, isso quando não vendiam suas próprias imitações fraudulentas: nessas falsificações, qualquer significado espiritual que porventura restasse da arte egípcia já evaporara completamente.26 Mais adiante, vê-se que o lótus persistiu

entre os povos helênicos: ao rever os motivos florais na arte de Micenas, Riegl argumenta que foram quase inteiramente baseados na palmeta egípcia.27 De forma semelhante, ao examinar o

padrão ornamental na borda de um ânfora de Melos, identifica o mesmo esquema de espirais e lótus criado pelos egípcios.28 Enfim, o ornamento inspirados no lótus egípcio tornou-se tão

popular que sobreviveu no ornamento floral de todas as culturas que sucederam o Egito, não só na antiguidade mas também na idade média, persistindo até a era moderna.29

Essa questão foi examinada de modo mais sistemático pelo crítico e galerista inglês

Ralph Wornum (1812–1877), que sugeriu uma tipologia do ornamento em que pode-se

distinguir, ao longo da história da arte, duas grandes categorias: o ornamento simbólico - aquele que requer o conhecimento prévio de seu significado – e o ornamento estético - aquele que apela diretamente aos sentidos, valendo-se apenas dos princípios de ritmo, simetria da forma e harmonia da cor. Como Riegl, Wornum sugeriu uma hierarquia entre em que o estético paira sempre acima do simbólico, antecipando em algumas décadas o desejo modernista por linguagens puras, e compara as artes visuais à música - um campo das artes em que os princípios de harmonia, ritmo e melodia, são bem definidos e indiscutíveis, na medida em que “Muitos homens de muitas gerações devotaram suas vidas inteiras ao desenvolvimento desses princípios, e eles são conhecidos. No ornamento eles não são conhecidos (...) apesar de muitos designers da antiguidade e da idade média certamente terem tido uma percepção deles.”30 A distinção entre

simbólico e estético aplica-se também à música, resultando numa hierarquia semelhante: ao

24

RIEGL, Alois. Problems of Style. Princeton University Press, New Jersey, 1993. Pg.50. 25 Ibid, pg.86. 26 Ibid, pgs. 96-97. 27 Ibid, pg. 109. 28 Ibid, pg. 115. 29 Ibid, pg. 63.

primeiro correspondem às cantigas e canções, produzindo seus efeitos com ajuda da poesia, e ao segundo à música instrumental, onde ritmos, harmonias e melodias é que fazem o trabalho.

Para Wornum a trajetória do lótus egípcio na antiguidade é apenas um exemplo, dentre muitos outros disponíveis na história da arte, dum processo de oscilação entre as dimensões simbólica e estética do ornamento: inicialmente simbólico, o lótus foi gradualmente esvaziado de seu significado religioso e transformado em pura visualidade. Partindo da noção de que as artes são mais desenvolvidas na medida em que se libertam da dimensão simbólica, apelando mais sobre os sentidos do que sobre a cognição, Wornum identificou o mesmo processo noutros momentos da história da arte. Cada oscilação do simbólico para o estético teria três

etapas distintas: um momento inicial em que os motivos são escolhidos por conta de seu simbolismo; um segundo momento, em que as qualidades estéticas sobrepõem-se ao significado; e um terceiro e último estágio, o momento de decadência em que o ornamento se prolifera sem nenhum critério, degenerando em algo próximo ao kitsch. Segundo Wornum, esse processo trifásico pode ser observado na antiguidade - nos estilos egípcio, grego e romano - e na idade média - nos estilos bizantino, sarraceno e gótico.31

Ao se aplicar essa tipologia ao ornamento da antiguidade, tem-se no lótus egípcio o primeiro momento, aquele do ornamento simbólico, enquanto o segundo momento, o do puramente estético, é muito bem representado pelo ornamento grego. Na Grécia clássica encontra-se pela primeira vez a introdução habitual de formas por elas mesmas, “um grande passo para a arte” segundo Wornum. Ver por exemplo o anthemion grego (Figura 20), que deriva da palmeta egípcia que, por sua vez, deriva do lótus - como Riegl já havia demonstrado em Stilfragen. O gosto grego teria progredido até o tempo de Alexandre, quando atingiu seu ponto máximo e adentrou um período de declínio, em que a riqueza e abundância do ornamento suplantaram gradualmente sua qualidade; por fim, a conquista da Ásia introduziu o gosto por exibições ornamentais, que terminaram em pura ostentação, resultando na aniquilação do gosto e

30

WORNUM, Ralph N. Analysis of ornament – The Characteristics of Styles. Londres : Chapman and Hall, 1879. Pg.27.

31 Ibid, pg.31.

da própria arte grega sob o exemplo luxuoso dos imperadores romanos. Inicia aí o terceiro momento do modelo trifásico, representado na antiguidade pelo ornamento romano, e marcado por um processo de proliferação desmedida: “Primeiro, a quantidade suplantou de forma geral a qualidade; e segundo, essa quantidade foi aplicada na maioria dos casos sem nenhuma propriedade ou gosto. Isso é ilustrado pela maior parte das grandes obras do período; e não há melhor exemplo que os arcos triunfais, que são trabalhos exclusivamente ornamentais.”32 Como

exemplo desse período de excessos, Wornum apresenta reproduções da arte decorativa de Pompéia.E eis que os próprios romanos reconheciam a decadência ornamental de seu tempo: o escritor, arquiteto e engenheiro romano Marcus Vitruvius Pollio (aprox. 80AC - 15DC), em seus Dez Livros sobre Arquitetura, já lamentava a tolice e absurdo dos trabalhos em estuque de então: “O que os antigos realizaram através da arte, nós tentamos atingir com cores... (...) Quem dentre os antigos usava o vermelho senão esporadicamente, como uma droga? Mas hoje paredes inteiras são cobertas com ele.”33 Vitruvius segue enumerando os vários tipos de pintura de parede

em uso por seus contemporâneos: primeiro, imitaram mármores coloridos; depois dividiram-nos em painéis, e os enriqueceram com molduras ornamentais e cornijas; então a decoração arquitetônica foi acrescentada, e finalmente foram introduzidas as cenas trágicas, cômicas e satíricas, além das paisagens.

Assim, Egito, Grécia e Roma compreendem o primeiro movimento do simbólico para o estético na arte ornamental da antiguidade. A segunda oscilação identificada por Wornum acontece ao longo da idade média, iniciando logo após o declínio do império romano, e inclui os estilos bizantino, sarraceno e gótico. As especificidades culturais e históricas que marcam esses estilos diferem dos anteriores em vários sentidos, mas de forma geral, verifica-se um processo semelhante de gênese simbólica, esvaziamento e proliferação desmedida. Num primeiro momento, tem-se o

32 WORNUM, Ralph N. Analysis of ornament – The Characteristics of Styles. Londres : Chapman and Hall, 1879.

Pg.85.

33 VITRUVIUS, Marcus. The ten books on Architecture - traduzido para o inglês por Morris Hicky Morgan.

Londres: Oxford University Press, 1914. Pg. 213. Figura 21 – Arte bizantina e simbolismo religioso. Ver a vesica piscis em torno da figura do Cristo, e os quatro animais, representando os evangelistas, 40

puramente simbólico no ornamento bizantino, que tem de fato algumas semelhanças com aquele da antiguidade egípcia: limitava-se a símbolos religiosos com fins solenes, como exortações de fé e piedade, e nunca eram aplicados como simples decoração. Seus símbolos mais importantes incluem o monograma de Cristo, a cruz, a serpente, o peixe e a auréola, ou vesica piscis34 (Figura

21); sucedendo o lótus como o motivo floral mais popular, o lírio ou flor-de-lis foi transformado em emblema de pureza. Nesse estilo o simbolismo está sempre presente, embora às vezes possa ser muito sutil, e Wornum elegeu como mais belos justamente aqueles exemplos em que o simbolismo é não-obtrusivo, ou mesmo totalmente disfarçado, como no caso dos capitéis: “...um exame revela que as formas aparentemente florais são combinações dos tipos convencionais derivados dos símbolos; como vesicas, círculos, lírios, e muitos outros. O próprio traçado é às vezes composto de serpentes; e serpentes não são um ornamento incomum para um capitel. A serpente figura amplamente na arte bizantina, como o instrumento da queda, e um tipo de redenção.”35 Algumas das principais igrejas bizantinas e romanescas são desenvolvimentos do

símbolo dos cinco círculos ou glórias: eles são colocados em forma de cruz, e então sobrepujadas por domos correspondendo em tamanho e situação aos círculos representados no pavimento abaixo. A catedral de São Marcos, em Veneza, é um exemplo conspícuo dessa arquitetura simbólica.

A título de contraparte estética para o simbolismo bizantino Wornum apresentou a arte islâmica, cujo estilo chamou de sarraceno - uma classificação um tanto problemática visto que os sarracenos, por definição, foram um povo pré-islâmico e nômade que habitava os desertos entre a Síria e a Arábia; aqui entende-se que por sarraceno Wornum referia-se ao ornamento islâmico em geral, de inspiração essencialmente geométrica. Proibida de significar senão através de textos, a arte islâmica explora a complexidade dos padrões e o entrelaçamento das formas, solução que Wornum comemorou: “...o esforço de ingenuidade que elas impeliram deram origem a um estilo ornamental simples, mais bonito que talvez qualquer um que o tenha precedido, pois não havia divisão da mente artística entre significado e efeito.”36 Por significado e efeito, entenda-se as

dimensões simbólica e estética da arte.

34

WORNUM, Ralph N. Analysis of ornament – The Characteristics of Styles. Londres : Chapman and Hall, 1879. Pg. 91.

35

Ibid, Pg.98.

36 WORNUM, Ralph N. Analysis of ornament – The Characteristics of Styles. Londres : Chapman and Hall, 1879.

Como terceiro momento dos estilos medievais, aquele em que o ornamento degenera, Wornum apontou o gótico, período em que os critérios de aplicação de ornamento se afrouxaram, e os motivos se proliferaram livremente. Aqui, a denominação gótico também é complicada, um tanto abrangente demais já que é atribuída a estilos ligeiramente diferentes, em vários países da Europa; mas de forma geral pode-se dizer que ele combina o simbolismo cristão bizantino com a profusão ornamental oriental. Seus motivos mais populares são vesicas, trevos, lírios e todos os símbolos considerados sagrados pelos primeiros cristãos – mas o simbolismo aqui teria retornado em lugares inadequados; a sagrada cruz vesica, por exemplo, foi contraída e usada para preencher vãos em arcos e frisos, dando origem a um motivo conhecido na arquitetura como dente-de- cachorro. O mesmo se verifica com todos os outros símbolos cristãos, num processo de fato muito semelhante à banalização do lótus nas culturas antigas que sucederam o Egito.

O modelo trifásico de Wornum, então, parece encontrar respaldo na história da arte. E apesar de atribuir ao estilo estético um lugar sempre superior ao simbólico na hierarquia do ornamento, Wornum curiosamente sugeriu que o estopim dessa evolução seja uma forma de inocência: “...não podemos deixar de admirar a ingenuidade com que o decorador egípcio, por um mero arranjo simétrico, converteu até os hieróglifos incompreensíveis em ornamentos agradáveis.”37 Sabe-se que houve um momento em que os próprios egípcios, não compreendendo

mais o significado dos hieróglifos, começaram a reproduzi-los apenas por conta de seu efeito decorativo, e a sugestão de que a ignorância tenha desencadeado um processo de refinamento, que resulta sempre numa arte supostamente superior, é no mínimo intrigante. Essa idéia persistiu no século seguinte, permeando os mitos modernistas sobre a pureza das linguagens artísticas: em 1917, o pintor Amédée Ozenfant (1886–1966) e o arquiteto e escritor Charles-Édouard Jeanneret-Gris (1887–1965) - também conhecido como Le Corbusier – publicaram um ensaio, intitulado Depois do Cubismo, em que comentam a produção de pintores como Ingres, Corbet, Cézanne, Matisse e outros precursores do cubismo. Nesse texto, Ozenfant e Jeanneret sugeriram que “O que se destaca com mais clareza na obra desses grandes precursores é a sujeição do tema à plástica pura: essa é a característica da grande arte. Todos provaram exaustivamente a quase indiferença do tema como anedota; isso quer dizer que a condição primordial da grande arte plástica é não a imitação, mas a qualidade dos efeitos da matéria.”38 Os cubistas

37

WORNUM, Ralph N. Analysis of ornament – The Characteristics of Styles. Londres : Chapman and Hall, 1879. Pg.38.

simplesmente pintaram quadros compostos como tapetes, com elementos tomados da natureza e dissociados, por suas qualidades plásticas; tratava-se de uma operação bem conhecida, e até tradicional, na história da arte: “...os micenenses, os orientais e os negros fizeram uso constante disso. Essas idéias e essas práticas, como se vê, não são novas. O cubismo não fez mais que recolocar em posição de honra na pintura um sistema bastante antigo, o mais antigo de todos, a estética ornamental; confirmou que se podem fazer painéis não-narrativos e aferrou-se a esse sistema.”39

A apologia ornamental de Ozenfant e Jeanneret serve de exemplo ótimo da tendência, por parte de artistas e teóricos da primeira metade do século XX, a tomar o ornamento como exemplo e desafio para a pintura modernista. Para que a arte se libertasse da representação, era preciso que reconhecesse sua natureza ornamental, tornando-a cada vez mais consciente e explícita. Tais eram os ideais que levaram toda uma geração de artistas a perseguir uma espécie de pureza, ou autonomia, das artes - em que pintura, música, dança, literatura e teatro não deveriam imiscuir-se, mas permanecer circunscritas em seus próprios territórios; acreditava-se que a promiscuidade entre eles resultaria numa prole degenerada de arte inferior. Daí a pintura não-figurativa, ou abstrata, por não procurar exercer um efeito literário, ser considerada superior a retratos ou cenas que insistiam em contar estórias. A arte figurativa seria demasiado dependente da literatura, e daí a preocupação de teóricos como Clement Greenberg (1909-1994) em banir a narratividade das artes visuais.

O esvaziamento do significado, estimulado durante o modernismo, noutros momentos da história da arte aconteceu naturalmente, como demonstraram Riegl e Wornum, ao tratar do ornamento floral na antiguidade e idade média. Há, portanto, uma continuidade na discussão levantada pelos teóricos do ornamento do século XIX e a apologia ornamental modernista. Parece inevitável então indagar-se sobre a continuidade dessas mesmas questões na pintura contemporânea, e nesse sentido pode-se retornar à Beatriz Milhazes: quanto há, em sua pintura, da apologia ornamental modernista?

Ainda que esse ciclo identificado por Wornum em pelo menos dois momentos da história da arte - esvaziamento do significado do símbolo, seguido da proliferação indiscriminada de suas cascas vazias - pareça adequado para os exemplos que ele apresentou, ele certamente não se

aplica a todos os casos. Cabe aqui o mesmo questionamento feito anteriormente em relação à