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SAGRADO E PROFANO HIEROFANIAS

Figura 33 – Jan van Eyck, Adoração do cordeiro místico – Retábulo da catedral de São Bavo, Bélgica. 1432. ólelo sobre madeira, 350 x 461 cm.

No retábulo do altar de Ghent, na catedral belga de Saint-Bavon, constam doze painéis de madeira, medindo mais de três metros de altura. Tem as laterais articuladas e pintadas nos dois lados, de modo que pode ser aberto ou fechado como uma janela, exibindo assim imagens diferentes. Quando fechado mostra uma cena da anunciação de Cristo na parte superior, e quatro santos abaixo. Quando aberto (figura 33) ilustra uma cena da adoração do cordeiro, sob uma trindade formada pela Virgem, o Cristo e São João Batista. Dos dois lados, assistem exércitos, nobres e artistas. Trata-se do retábulo de Ghent, ou Adoração do Cordeiro Místico, obra do flamengo Jan van Eyck (1390-1441), conhecido por uma pintura naturalista de cores vivas e detalhes precisos.

Olhando-se mais de perto o painel central, vê-se um Cristo (Figura 34) que não se apresenta com seus trapos habituais, mas como o mais opulento dos reis. Veste uma túnica vermelho-sangue, adornada com pérolas e pedras preciosas, e presa ao peito por um medalhão adornado com pérolas gigantes, esmeraldas, berilo azul e rubis; e ostenta uma coroa composta por três tiaras douradas, cravejadas com as mesmas pedras. Não se vê muito do espaço a seu redor, mas pode-se reconhecer, no trono onde se recosta a repetição dum motivo dourado, em que uma ave de rapina alimenta seus filhotes em meio a uma profusão de parreiras e flores de lis. Acima, arcos também dourados e de aparência sólida emolduram-lhe a cabeça, como uma versão material da auréola dos santos.

Ainda mais exuberante que os acessórios do próprio Cristo é a coroa que está no chão, a seus pés. (figura 35) Compreende uma única tiara, cravejada com pérolas gigantes, rubis, topázios e turmalinas negras, e adornada com formas espirais e vegetais, em ouro. Dentre os ornamentos do corpo, os mais luxuosos e inacessíveis são as jóias com pedras e metais preciosos. Vimos, como apontou Peter Burke em relação à imagem e adereços de Luís XIV, que o ornamento pode funcionar como artifício de separação. Na medida em que se atribui o poder dos monarcas a desígnios divinos, o ouro e as jóias sempre foram um distintivo compartilhado por reis e deuses, a começar pelos primeiros faraós. O esplendor inacessível de seus

Figura 34 – Jan van Eyck, Adoração do cordeiro místico (detalhe).

Figura 35 – Jan van Eyck, Adoração do cordeiro místico (detalhe)

adereços indica suas qualidades sobre-naturais, que os eleva para acima do mero humano e os aproxima da dimensão do sagrado. Como se constrói essa relação?

Tal questão pede um olhar sobre a história do luxo. Num ensaio intitulado O Luxo Eterno, o filósofo francês Gilles Lipovetsky (1944), partindo de achados arqueológicos do paleolítico e de alguma antropologia cultural, sugeriu a existência de um luxo anterior à fabricação de bens de valor elevado, e mesmo à acumulação de recursos materiais: “Não há dúvida de que os pequenos grupos de caçadores-coletores do paleolítico tenham tido um nível de vida objetivamente medíocre. Tanto suas habitações como suas vestimentas são rústicas, e seus utensílios, pouco numerosos. Mas, se não fabricam bens de grande valor, isso não os impede, por ocasião das festas, de enfeitar-se e admirar a beleza de seus ornamentos. Além disso – e sobretudo – de viver em uma espécie de abundância material, de comer bastante nas festas, de gozar de tempo livre e de uma alimentação suficiente obtida sem grande esforço. Exibindo uma atitude de despreocupação deliberada com o amanhã, eles festejam e consomem de uma só vez tudo o que têm em mãos, em lugar de constituir estoques alimentares. Nada de esplendores materiais, mas a ausência de previdência...”64 Lipovetsky chama a atenção para os estudos de Marcel Mauss sobre

a prática do potlatch - uma cerimônia, praticada entre tribos índigenas da América do Norte e Melanésia, que consiste em dar presentes caros aos líderes de tribos rivais, como uma espécie de desafio. O desafiado tem de retribuir com um presente de valor igual ou superior, para escapar à humilhação.

Assim, o luxo primeiro estaria relacionado a um sentido de desperdício, experiência que acompanharia as primeiras manifestações de religiosidade; os adereços primitivos, antes de sinalizar as posições de seus portadores numa determinada hierarquia, derivariam do universo anímico dos amuletos e objetos de poder: são os ídolos, amuletos e talismãs. Noção semelhante de uma relação primordial entre luxo, espiritualidade e desperdício consta nos estudos sobre o sagrado de Roger Caillois, para quem as festas seriam, em última instância, rituais religiosos de destruição: “Nas civilizações ditas primitivas (...) a festa dura várias semanas, vários meses, entrecortados por períodos de repouso de quatro ou cinco dias. Muitas vezes são necessários vários anos para reunir a quantidade de víveres e de riquezas que aí serão não só consumidos ou despendidos com ostentação mas ainda destruídos e esbanjados pura e simplesmente, pois os esbanjamento e a destruição, formas do excesso, inserem-se por direito na essência da festa.”65 64 LIPOVETSKY, Gilles. O luxo eterno. São Paulo : Cia das Letras, 2005. Pg. 22.

Para Caillois, o desperdício e destruição voluntários de algo - ou alguém - seriam elementos necessários ao ritual religioso mais antigo, o sacro ofício.

Assim, é justamente o sacrifício de Cristo que lhe confere o caráter redentor; o sangue dos imolados e as pequenas fortunas gastas em jóias operam pela mesma lógica de dispêndio – assim também com o esforço dos pagadores de promessas, o cansaço e contusões dos atletas, ou o tempo despendido por artesãos e artistas no acabamento de pequenos detalhes, que não significam nada e a que ninguém prestará muita atenção. O ornamento, como uma face do luxo, além de desnecessário é também custoso, exigindo um investimento maior de tempo, técnica e recursos por parte de quem o produz. Num estudo sobre a religião, Bataille sugere que “O princípio do sacrifício é o da destruição, mas ainda que ele ás vezes vá tão longe a ponto de destruir completamente (como em um holocausto), a destruição que o sacrifício quer promover não é aniquilação. (...) O sacrifício destrói os laços reais de subordinação de um objeto; ele retira a vítima do mundo da utilidade e a restaura naquele do capricho ininteligível.”66

Novamente, estamos às voltas com a noção de um artifício de separação: no sacrifício, a coisa sacrificada é separada do mundo profano. Segundo o historiador e romancista romeno Mircea Eliade (1907-1986), “Para o homem religioso, o espaço não ê homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras. (...) Há, portanto, um espaço sagrado, e por conseqüência forte, significativo, e há outros espaços não sagrados, e por conseqüência sem estrutura nem consistência, em suma, amorfos.”67 Fica

implícita uma idéia de oposição entre espaços sagrados e profanos. Pode-se atribuir a opulência do Cristo no retábulo de Ghent aos sistemas político e religiosos medievais, em que a autoridade sobre-humana do monarca era atribuída a desígnios divinos pelos hierofantes de então, os sacerdotes cristãos. Mas a relação entre o luxo e o sagrado não é meramente contextual, conforme inúmeras imagens distante de Eyck no tempo e no espaço, e em que o luxo também aparece em relação direta com o sagrado.

66 BATAILLE, Georges. Theory of religion. Zone Books : New York, 1989. Pg. 43. 67 ELIADE, Mircea. O Homem e o Sagrado. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Pg. 17.

A Macarena dos Milagres de Audrey Flack (figura 36) exibe uma profusão ornamental que em nada perde para aquela do Cristo de Eyck: o azul e os babados que normalmente acompanham as santas latinas são aqui ofuscados pelos detalhes em dourado, e a coroa ricamente adornada, de tão grande, não cabe nos limites da imagem. A julgar pelo modo como a luz é refletida no rosto de Macarena, bem como a posição de suas mãos, parece se tratar de sua estátua, e não da própria; assim, se Eyck retratou o sagrado, Flack retratou o retrato do sagrado, num jogo de transbordamento que é característico de sua pintura.

De todo modo, Macarena não está fazendo nada de extraordinário: é uma mulher que segura um rosário e chora. Pode-se

entender que o caráter miraculoso da imagem se deve ao fato dela ser uma estátua que verte lágrimas, mas não fica claro que se essas lágrimas são de fato uma manifestação do divino, ou se fazem parte da estátua. A natureza divina de Macarena, então, está expressa menos em suas lágrimas do que nos adereços de luxo com que se apresenta; assim é o ornamento, e apenas ele, que opera a separação entre sagrado e profano. Para Eliade, “Quando o sagrado se manifesta por uma hierofania qualquer, não só há ruptura na homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta, que se opõe à não realidade da imensa extensão envolvente. A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo.”68 A ruptura que a

hierofania – uma revelação do sagrado - provoca na homogeneidade do espaço é o que separa o espaços profanos do sagrados.

Se sacrifício é uma das formas pelas quais o sagrado se manifesta, desperdícios voluntários como o luxo ou o ornamento são hierofanias possíveis. Deixando de lado, por

68 ELIADE, Mircea. O Homem e o Sagrado. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Pg. 17.

Figura 36 - Audrey Flack, Macarena of Miracles. Óleo sobre tela, 1971, 116 x 167 cm.

enquanto, a natureza ambígua dessa noção de sagrado, até que ponto se mantém essa realidade absoluta, separada de nós pelo luxo inacessível das jóias?

Nesse sentido, sobre o estado atual do luxo, Lipovetsky sugeriu que “Com a dinâmica do enriquecimento dos comerciantes e dos banqueiros, o luxo deixa de ser privilégio exclusivo de um estado baseado no nascimento, adquire um estatuto autônomo, emancipado que está do vínculo com o sagrado e da ordem hierárquica hereditária.“69 Se o luxo nasce na esfera do

sagrado, como expressão de uma necessidade de dispêndio, ele escorrega gradualmente, ao longo dos milênios, para a dimensão do puramente material. Tal processo teria se acelerado a partir da segunda metade do século XIX, quando surgiram na Europa as primeiras magazines e galerias com suas vitrines e promoções. É o período do art nouveau, da exploração de materiais como ferro e vidro, e de avanços tecnológicos na área gráfica. Nesse contexto se insere também a popularização do plástico, capaz de imitar materiais nobres. Os pessimistas de então temiam que a produção em massa homogeneizasse a cultura, mas aconteceu o contrário: a especificidade das demandas diversificou a produção, de modo que não há mais um luxo, mas vários, e os velhos luxos de exceção coexistem com luxos intermediários. Essa coexistência coloca um problema para a relação entre sagrado e profano – as fronteiras entre eles ficam menos claras. Se uma jóia tem algo de transcendente, que dizer do falso luxo das bijuterias? Se o luxo é expressão da experiência do sagrado, e se perde o caráter de exceção, tornando-se acessível a todos, é o mundo que se sacraliza, ou o sagrado que se torna mundano? As duas ordens imiscuíram-se e não podem mais ser separadas.

Ora, houve algum momento em que essa contaminação não ocorresse? O luxo de Cristo, do retábulo de Ghent, já sugeria o caráter ambivalente do sagrado. Ao sacralizar-se um objeto ele se torna outra coisa, ainda que permaneça o mesmo - um cordeiro imolado morre durante o processo, mas permanece cordeiro, um rei coberto de jóias ainda é um homem, e uma pedra sagrada permanece pedra. De um ponto de vista profano ou utilitário, nada distingue essas coisas de suas contrapartes sagradas. Assim, as jóias e adereços de luxo, com que Eyck nos apresenta seu Cristo, revelam-se não como artifícios de separação, mas como faces dum paradoxo atemporal que se apresenta em toda hierofania...

3. SORVER

“De mim no mundo quero te dizer da força que me guia e me traz o próprio mundo, da sensualidade vital de estruturas nítidas, e das curvas, que são organicamente ligadas a outras formas curvas. Meu grafismo e minhas circunvoluções são potentes e a liberdade que sopra no verão tem a fatalidade em si mesma. O erotismo próprio do que é vivo está espalhado no ar...” – Clarice Lispector, Água Viva

Adolf Loos, em Ornemento e Crime, afirmou que “O impulso de ornamentar o rosto e tudo o que estiver ao alcance é a origem das artes plásticas, é o balbuciar da pintura: toda arte é erótica.”70 Décadas antes, William Morris, num ensaio sobre as artes menores71, sugeriu que

“Dar prazer às pessoas na utilização das coisas que forçosamente têm que utilizar é um grande serviço da decoração; dar prazer às pessoas naquilo que forçosamente têm de fazer é a sua outra função.” Dar prazer, confortar, distrair o olhar e o pensamento do inelutável que, para Morris, era o trabalho. Com esses dois exemplos abre-se um campo para pensar o ornamento em relação com o universo do erotismo, e para esse fim, o presente capítulo sugere duas abordagens, ancoradas nas idéias dos autores discutidos até aqui.

O primeiro caminho parte de discussões específicas do âmbito da história das artes visuais. Pode-se sugerir, como fizeram Riegl e Wornum, que o ornamento ideal é aquele que cujo significado se perde em favor da pura visualidade, constituindo uma dimensão da arte que nada significa – ou seja, que não tem de ser decodificado pelo pensamento, e que se apresenta como um capricho ou deleite cuja apreciação é uma experiência sensorial e, portanto, sensual. Assim o ornamento seria para os olhos o que é a carícia para a pele, ou um sabor agradável para as papilas. Claro que o ornamento nem sempre é agradável, podendo também poluir uma composição, perturbar ou mesmo repelir o olhar. Mas esse fato em nada afasta o ornamento do erotismo, na medida em que nem toda prática erótica é necessariamente prazerosa - o mesmo pode ser dito dos sabores, sons e odores que apreciamos: ver as pimentas, a distorção proposital do som das guitarras, ou o cheiro da gasolina. Essa discussão tem de consideras certas ambigüidades inerentes à natureza do deleite.

Uma segunda abordagem parte da analogia com a natureza e das ciências naturais – mais especificamente, do âmbito da biologia e da noção de seleção sexual, de Charles Darwin. Para tal, pode-se evocar a autoridade de Focillon, Ruskin e Sullivan, cujas idéias sobre o caráter orgânico

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LOOS, Adolf. Ornamento Y Delito y otros escritos, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1972.

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das formas na arte já foram postas em discussão, e nos escritos de Bataille, para quem o erotismo é uma forma de dispêndio presente não só nas fantasias humanas, mas na própria natureza:

“Os seres só morrem para voltarem a nascer, como os falos que saem dos corpos para entrar outra vez dentro deles.

(...)

Do movimento do mar, coito uniforme da terra com a lua, procede o coito polimorfo e orgânico da terra com o sol.

A primeira forma do amor solar é a nuvem levantada acima do elemento líquido.

Às vezes a nuvem erótica faz-se tempestade e cai denovo na terra, transformada em chuva, enquanto o raio rompe as camadas do ar.

(...)

O mar está continuamente a masturbar-se.

Os elementos sólidos contidos e agitados dentro de uma água que se anima de movimento erótico, brotam sob a forma de peixes voadores.”72

O caminho de Bataille é escorregadio, mas muito mais tentador: a relação do ornamento com o erotismo parte da própria natureza. Viu-se que os adornos naturais são produto da seleção sexual, noção que apareceu na Origem das Espécies de Darwin – recebendo pouca atenção por parte dos naturalistas ao longo de todo o século XIX, talvez por conta do viés excessivamente positivista e/ou teleológico com que se queria, então, entender a evolução. A seleção sexual explica de forma satisfatória a difusão de características morfológicas pouco funcionais – no que diz respeito à sobrevivência - ou mesmo anti-funcionais, como a cauda do pavão: um estorvo a que, por alguma razão, as fêmeas do pavão não resistem.

Pode-se também inferir sua ação no próprio corpo humano: ver a forma e volume do seio feminino, constituído de um acúmulo de tecido adiposo que, aparentemente, nada tem a ver com a lactação. Fêmeas de outros primatas só apresentam inchaço nas mamas no período após a gestação. É possível então que o seio feminino seja uma espécie de ornamento, esculpido pela seleção sexual como ferramenta de sedução. E ainda que o seio seja eficaz para esse fim, pode tornar-se um estorvo em situações de confronto; daí a mastectomia praticada pelas amazonas,

72 BATAILLE, Georges. O coito é a paródia do crime. In: KRONHAUSEN, Phillys e Eberhard. Ex-Libris Eróticos. Portugal, Fenda, 1985.

muito mais preocupadas com sua eficácia marcial do que com os meandros da sedução. O mesmo pode ser dito do pênis do macho humano: outros primatas apresentam órgãos sexuais bem menores, o que não compromete em nada sua funcionalidade reprodutiva, num sentido estritamente mecânico.

A situação do ornamento na arte não é muito diferente. Quando aplicado sobre um objeto funcional, como uma ferramenta, não tem nenhuma relação com a função exercida, podendo mesmo comprometê-la. Isto que não quer dizer que ele seja um capricho aleatório e inútil; ele apenas serve a outros fins. Se na natureza o ornamento pode comprometer a sobrevivência do organismo em favor do poder de sedução, na arte, arquitetura ou design, ele pode também comprometer a funcionalidade da composição ou objeto em que é aplicado, em favor de um efeito de beleza. É com base nesses autores e premissas, que o presente capítulo propõe uma leitura do ornamento erótico, nas artes visuais, como expressão de um processo de dispêndio que remete a natureza orgânica.