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NATURALIA E ARTIFICIALIA – CONTAMINAÇÃO

Figura 49 – H.R.Giger - Paisagem XXX, 1975, acrílico sobre papel/madeira, 70x100cm.

Um emaranhado de formas tubulares distribui-se sobre uma superfície retangular, preenchendo-a completamente, como uma textura ou papel de parede (Figura 49). Há nessas formas algo de inquietante: ainda que suas cores e aparência externa lembrem as de uma máquina complexa, o modo como estes tanques e tubos conectam-se uns aos outros remetem ao orgânico. Não se vê aqui a organização simétrica esperada de uma estrutura artificial, mas o entrelaçamento caótico encontrado na natureza em vegetais, no interior dos corpos de animais, ou mesmo no empilhamento aleatório de formas inorgânicas, como pedras ou sedimentos. Essa indefinição não é a única fonte de inquietação da imagem: um segundo olhar revela um caráter antropomórfico sutil: as formas arredondadas, que inicialmente se parecem com tanques ou reservatórios, lembram vagamente cabeças humanas. A estrutura maior, horizontal e levemente curva próxima ao centro bifurca-se verticalmente, tal qual um torso em que um dos braços está estendido; logo abaixo vê-se uma forma cilíndrica terminar numa ponta arredondada, sugerindo pênis e glande;

aqui e ali, tubos enlaçam e penetram outras estruturas. Por fim, uma terceira camada de inquietação advém de uma impressão geral de atividade sexual, em que o caos aparente das estruturas maquínicas equivale à convulsão extática de membros entrelaçados numa orgia biomecânica.

A imagem em questão é uma pintura do suíço Hans Ruedi Giger (1940), ironicamente intitulada Paisagem XXX. Entre 1960 e 1980, Giger produziu algumas dezenas de imagens semelhantes em que um amálgama de formas sugere ao mesmo tempo artifício, organicidade e erotismo, e a ironia está justamente em nomeá-las paisagens como se fossem realmente meras representações de lugares, reais ou imaginários. Nada poderia estar mais longe da verdade: tais imagens, que podem ser consideradas ornamentais por conta de suas características formais, condensam questões nada prosaicas acerca da natureza humana.

Algumas de suas paisagens são mais fluídas e orgânicas, outras mais mecânicas; numas se reconhece de imediato a figura humana ou partes de sua anatomia, noutras nem tanto; também a sugestão erótica varia em sutileza. Mas todas parecem sugerir uma certa indefinição em relação ao natural e ao artificial, ao mesmo tempo em que flertam com o erotismo. A Paisagem XXX é uma espécie de meio termo ou ponto de equilíbrio entre essas instâncias, servindo de exemplo ótimo de questões que o artista coloca ao longo de toda a sua trajetória. “Numa época em que a clássica frase dos surrealistas, ‘belo como o encontro de um guarda-chuva com uma máquina de costura sobre uma mesa de autópsia’ se pode tornar realidade”, escreveu Giger ao comentar suas paisagens biomecânicas, “também os chamados biomecanóides conhecem um tempo de prosperidade.”83 Com essa palavra, quis indicar o casamento entre tecnologia e organismos

vivos, já previsto em 1968, quando os apresentou pela primeira vez numa série de serigrafias. “A pesquisa genética ainda nos há de ensinar o temor. O clone constitui já um pesadelo”84,

complementou. A angústia de Giger é compatível com o seu tempo, que viu a descoberta do DNA e chegou à compreensão de os seres vivos são como máquinas celibatárias e auto- replicantes.

83 GIGER, H.R. H.R.Giger ARh+. Köln : Taschen, 2004. Pg. 48. 84 Ibid. Pg. 48.

Giger não está sozinho, e nem foi pioneiro na exploração da dimensão maquínica do sexo: décadas antes da descoberta do DNA, o pintor e poeta francês Francis Picabia (1879- 1953) já flertava com questões semelhantes. Em I see again in memory my dear Udnie (Figura 50), pintura de sua fase cubista, vê-se no primeiro plano um amontoado de formas que pode ser dividido em dois grupos principais: num tem-se objetos angulosos e cinzentos, como as peças de uma máquina, e noutro objetos arredondados, orgânicos e em cores quentes, como as partes de um corpo humano. Os tubos e dobras remetem à detalhes anatômicos: ver a forma amarela que pende da parte superior, como um seio, ou a vulva laranja logo abaixo. Contemporâneos de Picabia, como Marcel Duchamp e Appollinaire, também exploraram o erotismo maquínico em suas produções pictóricas. No contexto destes artistas, a idéia de máquina reveste-se de uma série de conotações especiais: a revolução industrial então não se encontrava muito distante no tempo - a difusão das máquinas pela Europa e a substituição do trabalho humano pelo maquínico ocorriam há pouco mais de um século - ao mesmo tempo em Freud relacionava máquinas complexas a órgãos genitais em seu método de interpretação dos sonhos. A idéia de máquina tornou-se uma espécie de promessa de êxtase masturbatório - talvez num contraponto aos horrores da guerra mecanizada que a Europa então experimentava – e suas operações repetitivas tornaram-se análogas aos movimentos pélvicos do ato sexual.

Metáforas maquínicas na arte antecedem Giger, Picabia e Duchamp, e mesmo a revolução industrial do ocidente: no século XVII, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) já deitava as bases para uma visão mecanicista do mundo em que os organismos vivos e o próprio universo seriam comparáveis a um relógio85. Influenciado pelos avanços técnicos da relojoaria holandesa,

Descartes acreditava que a natureza funcionaria mecanicamente, de acordo com leis bem

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DESCARTES, René. O Discurso do Método. Coleção Universidade, Ediouro, 1986. Figura 50 – Francis Picabia, I see again in memory my

dear Udnie, 1914. Óleo sobre tela, 250.2 x 198.8 cm.

definidas e previsíveis, e em sua tentativa de construir uma ciência natural completa, estendeu essa concepção de mundo aos reinos biológicos: plantas e animais seriam nada mais que simples máquinas, e o corpo humano não seria exceção - com a diferença de ser habitado por uma alma ou espírito imaterial, ligado ao corpo-máquina pela glândula pituitária, mas independente desta. Em última instância, trata-se do dualismo platônico sob uma nova roupagem, e é daí que vem o paradigma cartesiano nas ciências naturais, que orientaria a observação e produção científicas pelos três séculos que se seguiram.

De todo modo, o erotismo maquínico na arte ganha uma nova dimensão se expresso justamente no ornamento, que traz consigo suas próprias questões - entre elas, a da capacidade de repetição e expansão em todas as direções, como nos padrões têxteis, naqueles que cobrem papéis de parede, ou em algumas das paisagens biomecanóides de Giger. Por mais que seja tentador associar a relação homem-máquina com o pensamento cartesiano, encerrando assim a discussão, tal conclusão não faz jus à complexidade de questões que antecedem Descartes e que, provavelmente, acompanham o humano desde que este se reconheceu como tal pela primeira vez: que é o humano?

Num retrato produzido entre 1590 e

1591, a figura humana é sugerida numa composição de frutas e legumes (Figura 51): peito e testa são abóboras, o nariz é uma pêra, uvas e espigas compõem a cabeleira; amendoins servem de bigodes e vagens, de sobrancelhas. No pescoço o gogó é uma batata, e sobre os ombros de repolho, repousa uma faixa de flores; do que seria a orelha direita pende um figo maduro e da esquerda, um par de azeitonas. O curioso rosto parece sorrir, como se zombasse do observador.

O retratado é Rodolfo II da Germânia (1552-1612) - Rei da Hungria entre 1572 e 1607, Rei da Boêmia entre 1575 e 1607 e Imperador do Sacro Império Romano entre 1576 e 1611 - e o

Figura 51 - Giuseppe Arcimboldo. Vertumnus, 1590- 1591. Óleo s/ madeira. Skoklosters Slott, Balsta, Suécia.

retratista, o italiano Giuseppe Arcimboldo (1527-1593) - conhecido pela forma bem humorada, e por vezes grotesca, com que compunha seus retratos. Arcimboldo tornou-se célebre por conta das pinturas de cabeças compostas, onde elementos da natureza – galhos, frutas, verduras, flores, e animais – e também objetos cotidianos – livros, mata-borrões, jóias, entre outros - compõem fisionomias humanas. De algum lugar entre o retrato e a natureza morta, tais cabeças provocam ao mesmo tempo estranhamento e curiosidade, riso e repulsa.

Na imagem em questão não se vê nem sugestão de máquina; mas que está em questão aqui é uma noção mais geral que a de máquina, e que lhe serve de fundamento: a noção de artifício, termo de origem latina – artificium – que denota um processo engenhoso, através do qual produz-se algo que não se encontra imediatamente disponível na natureza. Por consenso, contrapõe-se o artificial ao natural, e ainda que em Vertumnus os elementos que compõem o retrato sejam naturais, o resultado da composição não é; as figuras humanas produzidas por Arcimboldo são tão artificiais quanto àquelas de Picabia e Giger. Assim, a questão não pode ser reduzida a circunstâncias contextuais como as de pesquisas genéticas, da revolução industrial ou do cientificismo mecanicista; não se trata da relação do humano com suas máquinas, mas de seu lugar entre os domínios do natural e do artificial. É a política de identidade definitiva: que é o humano?

Tal questão era recorrente no meio em que viveu Arcimboldo. Nascido em Milão, ao completar trinta e cinco anos mudou-se para Praga - atual República Tcheca, então capital do reino da Boêmia – para trabalhar como artista nas cortes de Fernando I e seus sucessores, Maximiliano II e seu filho Rodolfo II. Praga era então um dos maiores centros culturais da Europa, de intensa e diversa atividade científica, e seus governantes eram vistos como simpatizantes do exótico e do inusitado. A corte, ainda que oficialmente católica, tinha total independência em relação à Igreja Romana e aceitava muito bem a diversidade cultural e religiosa: ali conviviam judeus, cristãos e ocultistas. O jovem Rodolfo II, quando assumiu o controle do reino, deu continuidade a vários projetos excêntricos de seu antecessor, Maximiliano, e dentre este projetos, destaca-se a Câmara de Arte e Prodígios, um núcleo do museu de Praga focado em achados exóticos. Tal câmara, que aumentou consideravelmente seu acervo com a participação de Arcimboldo86, era em verdade uma imensa coleção de curiosidades que, como um

buraco negro, sugava tudo que parecesse raro ou precioso sem jamais abrir mão de nada. Dividia-

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BLOM, Philipp. Ter e manter – uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro : Record, 2003.

se em duas alas principais: naturalia, composta de tesouros naturais, como chifres de unicórnio e ossadas de animais fantásticos, e artificialia, que abrigava os prodígios feitos por mãos humanas, como pedras preciosas, artefatos e badulaques exóticos. Além da coleção, a câmara também continha registros de pessoas com anomalias físicas, desde anões até gigantes, além de animais, frutas, legumes de diversas espécies e provindos de todos os continentes. Na seção de artificialia, constavam quatro cabeças feitas de frutas e outros materiais, uma possível inspiração para as cabeças compostas de Arcimboldo, e um autômato que encenava um episódio do décimo livro das Metamorfoses, de Ovídio - no qual o caçador Ciparisso é transformado em árvore após alvejar um veado. As idéias de metamorfose e transmutação estavam muito presentes na cultura medieval de Praga; acreditava-se que naturalia e artificialia fossem dois lados da mesma moeda.

Naturalia e artificialia, as duas seções da Câmara de Arte e Prodígios de Praga, apontam para duas fronteiras possíveis entre humano e inumano. Naturalia, de um lado, é o reino de coisas inumanas de onde emerge o humano, e na outra extremidade, Artificialia, se encontram as coisas feitas pelo humano, mas que compõem um universo também inumano. Essas fronteiras não são fixas e nem estão bem definidas, e essa divisão na coleção de Rodolfo II reflete uma cisão semelhante no pensamento humano, que é a da oposição entre o natural e o artificial. Tal forma de dividir o mundo e delimitar o humano, porém, implica numa dificuldade: a constatação de que o humano não é a única criatura artificiosa. Uma teia de aranha é natural ou artificial? E que dizer das represas construídas por castores, ou das casas do João-de-Barro? Dir-se-á que só os construtos humanos são artificiais porque são frutos da inteligência, enquanto os construtos animais são frutos de seus instintos. Mas não pode a inteligência, também, ser um instinto – o instinto humano por excelência?

Retornando então às paisagens biomecanóides de Giger, parece que estas revelam justamente a fragilidade das fronteiras que imaginamos entre os domínios do natural e do artificial. Se esses ornamentos, enquanto padrões passíveis de repetição e expansão ilimitadas, remetem à proliferação dos corpos através dos movimentos mecânicos do ato sexual, indo um pouco mais fundo, essa repetição também é análoga àquela dos nucleotídeos no ácido desoxirribonucléico: na base da complexidade da vida orgânica, que é o domínio do natural, encontra-se a simplicidade elementar, e portanto maquínica, das moléculas auto-replicantes do DNA, artifício primeiro do acaso...