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4. AS AÇÕES COLETIVAS

4.6. Tutela jurisdicional coletiva

4.6.1. Ações coletivas mais comuns

4.6.1.1. Ação civil pública

A Ação Civil Pública foi introduzida no Brasil por meio da Lei 7.347/85, que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a outros bens de natureza difusa ou coletiva, e dá outras providências.

Inicialmente, o artigo 1º da LACP tinha a seguinte redação:

“Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I – ao meio ambiente; II – ao consumidor; III - a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”.

Com a promulgação da Constituição de 1988, os contornos da Ação Civil Pública sofreram sensíveis mudanças. É que em seu artigo 129, que trata sobre a função institucional do Ministério Público, o inciso III amplia o rol de bens tutelados pela indigitada lei, ao dispor que cabe ao Ministério Público:

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros

Para dirimir quaisquer dúvidas a respeito do espectro abrangido pela LACP, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), por força de seu artigo 110, acrescentou um novo e importante inciso, o IV, ao artigo 1º da LACP, com seguinte redação: “a qualquer outro interesse difuso ou coletivo”.

Portanto, por meio da ação civil pública pode-se tutelar quaisquer interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Releva notar que a expressão direitos individuais homogêneos surgiu com o Código de Defesa do Consumidor, que é posterior à Constituição Federal.

O inciso III do artigo 1º foi alterado pela Lei nº10.257, de 10/07/2001, DOU 11/07/2001, com vigência a partir de 90 dias após a publicação, passando a ter a seguinte redação: “III - à ordem urbanística;”. Contudo, essa alteração foi revogada pela Medida Provisória 2.180-35/2001.

O inciso V foi introduzido pela Lei 8.884/94 e tinha a seguinte redação: “por infração da ordem econômica”, mas por força da Medida Provisória nº 2.180-35, acrescentou-se ao citado dispositivo a expressão “e da

economia popular”. Assim, passou a ter a seguinte redação: “por infração da

ordem econômica e da economia popular”.

A indigitada Medida Provisória acrescentou um parágrafo único no artigo 1º da LACP com a seguinte redação:

“Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados”.

A restrição da aplicabilidade da Ação Civil Pública é inconstitucional, pois contraria o espírito do legislador que concedeu a ela dignidade constitucional como instrumento apto a tutelar quaisquer interesses

difusos e coletivos. Se o legislador constituinte não fez nenhuma restrição, não poderia o legislador infraconstitucional fazê-lo, mormente quando o ato normativo é de autoria da Presidência da República em causa própria.187

A natureza da ação civil pública “é de direito processual

constitucional, e a ela se aplicam regras e princípios de interpretação constitucional, em conjugação com os princípios e regras processuais com ela compatíveis, como, entre outros, o princípio da aplicabilidade imediata, quanto à eficácia no tempo, das normas processuais.”188

O objeto da lei de ação civil pública, em sua redação original, poderia ser o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer ou a condenação em dinheiro.

Todavia, com a entrada em vigência do Código de Defesa do Consumidor, esse rol foi extremamente ampliado, pela citada interação entre os dois diplomas legislativos. É que o artigo 83 do CDC dispõe que quaisquer ações poderão ser ajuizadas para a tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Atualmente, portanto, a restrição do pedido da ação civil pública deixou de existir, podendo ser formulados quaisquer pedidos, sejam eles condenatórios (fazer ou não fazer), constitutivo, cautelar, executivo ou mandamental.

Na verdade, em se tratando de tutela de interesses difusos e coletivos, o ideal seria que o responsável fosse condenado a repor o bem ou interesse lesado no seu estado anterior, mas nem sempre isso é possível. Daí a

187MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 125-129. 188ALMEIDA, Gregório Assagra de. op. cit., p. 343.

importância da condenação em dinheiro, como fator de desestímulo a pessoas físicas e jurídicas agressores dos citados interesses e direitos em potencial.189

A legitimidade para a propositura da ação civil pública está expressa no artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor e no artigo 5º da Lei de Ação Civil Pública. São legitimados o Ministério Público, a União, Estados, Municípios, Distrito Federal, autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista, entidades e órgãos da administração pública, ainda que sem personalidade jurídica, destinados à tutela dos direitos protegidos pelo CDC ou pela LACP ou por associação que esteja constituída a mais de um ano e inclua entre suas finalidades institucionais a proteção ao consumidor, meio ambiente, à livre concorrência, à ordem econômica, patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

A legitimação processual nas ações coletivas é do tipo concorrente disjuntiva. Trata-se de matéria pacífica na doutrina. Isto significa que cada um dos legitimados, independentemente de autorização do outro, pode propor as ações coletivas. A legitimidade de um não exclui a do outro e tampouco impede que se reúnam em litisconsórcio.

Nas ações coletivas em que estejam envolvidos direitos essencialmente coletivos (difusos e coletivos, assim entendidos como discriminados no artigo 81, I e II do CDC), a legitimidade dos entes para propositura, segundo uma parte da doutrina, é do tipo ordinária. Isto porque

189No ponto, Rodolfo de Camargo Mancuso leciona: “Infelizmente nessa classe de bens e interesses nem sempre isso é possível: o consumidor já terá utilizado o bem adquirido; a erosão já terá deteriorado a paisagem; o manancial já terá secado porque foram cortadas as matas ciliares; o derradeiro exemplar da espécie já terá sido aniquilado, etc. Quando a reparação específica não seja possível, a solução será o correspondente sucedâneo pecuniário, a ser canalizado para o “fundo” a que se refere o artigo 13 da Lei 7.347/85; é que tais bens e interesses, sendo difusos, o produto da condenação não pode ser titularizado, subjetivado (ao menos lege lata)”. Nesse sentido, aduz Ada Pellegrini Grinover: “A Lei 7347/85, tutela exclusivamente os bens coletivos indivisivelmente considerados. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública em defesa do meio

quando o legitimado vai a juízo está na defesa de seus próprios interesses institucionais e também porque “ação e pedido são coletivos”190

José dos Santos Carvalho Filho, todavia, não faz nenhuma distinção no tocante à natureza da legitimidade se os direitos envolvidos forem difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Para o autor, a legitimidade do Ministério Público e das associações é do tipo extraordinária, sob o argumento de que os legitimados atuam em nome próprio na defesa dos interesses alheios.191

Nelson Nery, comungando da doutrina alemã sobre o tema, entende que, em se tratando de ações coletivas onde se discutam direitos difusos e coletivos é de legitimação autônoma para conduzir o processo.192

Com efeito, a posição adotada por Nelson Nery parece ser a mais adequada para o caso de direitos difusos e coletivos. De fato a legitimidade não é ordinária, pois o legitimado não está defendendo direito próprio. Tampouco a legitimidade é extraordinária, porque impossível identificar os titulares do direito material. A doutrina alemã do Prozessführungsbefugnis – aplicadas às situações em que os efeitos da sentença não atingem os legitimados ad

processum, traduzida como o direito de conduzir o processo, veio de encontro à nova realidade processual aplicada às demandas coletivas.

Já nos casos dos direitos formalmente coletivos, onde se tutelam direitos individuais homogêneos, a hipótese é de legitimação extraordinária, ocorrendo verdadeira substituição processual. Isto porque, o artigo 91 do CDC assevera expressamente:

“Os legitimados de que trata o art. 81 poderão propor, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil de

190CUNHA, Gisele Heloísa. Aspectos da legitimidade para agir no Código de Defesa do Consumidor. 1997. p. 121. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1997.

191CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 136. 192NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. op. cit., p. 1339.

responsabilidade pelos danos individualmente sofridos, de acordo com o disposto nos artigos seguintes”.

Assim, o legislador está autorizando os legitimados a ingressar com ação judicial para, em nome próprio, defender interesse ou direito alheio. Trata- se, evidentemente, de legitimação extraordinária e ocorre substituição processual.

O prazo de um ano de fundação da associação, que é requisito legal para as associações poderem demandar em juízo, começa a contar a partir da inscrição dos seus estatutos no registro Civil das Pessoas Jurídicas, consoante a regra do artigo 45 do CC. Esse requisito temporal, segundo Kazuo Watanabe, tem a finalidade de coibir abusos que poderiam ocorrer principalmente por razões políticas.193

Todavia, esse requisito pode ser dispensado pelo juiz, consoante determinação do parágrafo primeiro do artigo 82 do CDC “quando haja

manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou relevância do bem jurídico a ser protegido”194.

O artigo 1º da LACP dispõe que o ajuizamento da ação civil pública se dá sem prejuízo da ação popular, prevista no artigo 5º, LXXIII, da CF. Natural que assim o fosse. É que a ação popular não se presta somente a anular atos lesivos ao patrimônio público ou de entidade em que o Estado participe, mas também a evitar ou reparar lesões à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico cultural.

Assim, em algumas situações, tem a mesma utilidade que a ação civil pública, porém tem um campo de aplicabilidade mais restrita. Enquanto a

193WATANABE, Kazuo et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do

anteprojeto, cit., p. 739-740.

ação popular tem seu objeto expressamente previsto pela Constituição Federal, a lei de ação civil pública pode tutelar quaisquer direitos difusos e coletivos em sentido amplo. Diferencia-se, também, em relação à legitimidade, que no caso da ação popular cabe exclusivamente ao cidadão, ao passo que para o ajuizamento da ação civil pública é previsto um rol maior de legitimados no artigo 82 do CDC e 5º da LACP.

Quanto à competência, o artigo 2º da LACP dispõe que as ações serão propostas no foro do local do dano e que o juiz terá competência funcional para processar e julgar a causa. Esse artigo deve ser interpretado em compasso com o artigo 93, I, do CDC, que dispõe: “ressalvada a competência da Justiça

Federal, é competente para a causa a justiça local: I - no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local”.

O legislador estabeleceu dois critérios para a fixação da competência nas ações civis públicas o primeiro, o da territorialidade, o local do fato, que é caso de competência relativa e o segundo, de aspecto funcional, que é caso de competência absoluta. Em havendo conjugação de critérios, deve prevalecer o absoluto, ou seja, o critério funcional.195

Patricia Miranda Pizzol ensina que a interpretação dada aos dois artigos deve ser no sentido de que a ação coletiva deva ser promovida na Justiça Estadual do local do dano e em havendo interesse ou intervenção da União, a competência seja deslocada para a Justiça Federal, conforme artigo 109 da Constituição Federal. Também sustenta que a competência é territorial funcional, sendo absoluta e improrrogável.196

Questão de relevo que se coloca é a hipótese de não haver vara da Justiça Federal na Comarca onde ocorreu o dano. Seria competente a Justiça

195ALMEIDA, Gregório Assagra de. op. cit., p. 345.

Estadual ou os autos deveriam ser encaminhados para a seção judiciária mais próxima?

Pela competência da Justiça Estadual foi editada a Súmula nº 183 do STJ, que dizia: “Compete ao Juiz Estadual, nas comarcas que não sejam

sede de vara da Justiça Federal, processar e julgar ação civil pública, ainda que a União figure no processo”.

Todavia essa Súmula foi cancelada, por força do julgamento do EDCComp 27676, rel. Min. José Delgado, j. 8-11-2.000, pelo fato do Supremo Tribunal Federal entender que a matéria referente à competência da Justiça Federal é constitucional e que o artigo 2º da LACP não continha expressamente a exceção que se enquadrasse na permissão legal de transferência de competência da Justiça Federal para a Justiça Estadual (art. 109, § 3º, da CF). 197

Prevalece hoje o entendimento nos Tribunais Superiores no sentido de que, havendo interesse da União, entidade autárquica ou empresa pública federal, na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes, a competência será da Justiça Federal da respectiva seção judiciária onde ocorreu ou deva ocorrer o dano (art. 109, I, da CF). 198

Patricia Miranda Pizzol discorda desse posicionamento que vem prevalecendo nas Cortes Superiores, com o qual concordamos, pelos seguintes motivos: 1) a Constituição Federal, em seu artigo 109, § 3º, permite a delegação, por lei infraconstitucional, de competência da Justiça Federal para a Justiça Estadual e foi exatamente isso o que fez o artigo 2º da LACP; 2) o argumento utilizado de que a LACP não faz menção expressa à Justiça Estadual não se sustenta, porque o artigo 93 do CDC, ao assim dispor “ressalvada a

competência da justiça federal, é competente para a causa a justiça local”,

197ALMEIDA, Gregório Assagra de. op. cit., p. 346. 198Id., loc. cit.

evidentemente quis dizer, por justiça local, justiça estadual; 3) a competência territorial funcional é absoluta e isso se deve pelo fato do juiz do local do dano ter melhores condições de julgar a lide.199

Outra questão que deve ser enfrentada é a relativa à competência nas hipóteses de danos regionais ou nacionais. O artigo 93, II, do CDC, dispõe que a competência, em casos de danos de âmbito nacional ou regional seria da capital do Estado ou do Distrito Federal. A dúvida reside no fato de saber se se trata de competências concorrentes ou se havendo dano de âmbito regional seria a capital do estado a competente e em caso de dano nacional, o Distrito Federal.

Hugo Nigro Mazzili sustenta que se os danos atingirem mais de um foro, mas não estenderem ao território estadual ou nacional, a competência será resolvida pela prevenção. Se os danos se estenderem ao território estadual ou nacional, aí sim seriam resolvidos analogicamente pelo artigo 93, II, do CDC, 200 mas da seguinte forma: “Nos termos dessa disciplina, portanto, e ressalvada a

competência da Justiça Federal, os danos de âmbito nacional ou regional em matéria de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos serão apurados perante a Justiça estadual, em ação proposta no foro do local do dano; se os danos forem regionais, no foro da Capital do Estado; se nacionais, no foro do Distrito Federal, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil nos casos de competência concorrente.”201

Entendemos que a hipótese do artigo 93, II, é de foros concorrentes. Havendo dano regional ou nacional, tanto o foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal são competentes para a causa, inexistindo preferência entre eles, independentemente do dano ser regional ou nacional.202

199PIZZOL, Patricia Miranda. A competência no processo civil, cit., p. 577. 200MAZZILLI, Hugo Nigro. op. cit., p. 211-212.

201Id. Ibid.

Vale lembrar que o parágrafo único do artigo 2º da Lei de Ação Civil Pública, acrescentado por força do artigo 6º da Medida Provisória nº 2.180-35, tem a seguinte redação: “A propositura da ação prevenirá a

jurisdição do juízo para todas as ações posteriores intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto”.203

Releva notar que o magistrado poderá fixar uma multa diária em caso do descumprimento da determinação judicial, independentemente de pedido do autor, consoante dispõe o artigo 11 da LACP e o art. 84, §§ 2º e 4º do CDC. Pode também se valer de medidas de apoio ou sub-rogação, conforme art. 84 , § 5º, do CDC.