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Brevíssimas notícias sobre o processo e a coisa julgada no direito romano

3. A COISA JULGADA

3.1. Brevíssimas notícias sobre o processo e a coisa julgada no direito romano

Busca-se, nas próximas páginas, fazer um resgate da coisa julgada no direito romano tão somente como subsídio para compreendermos melhor seu conceito e evolução até nossos dias.

A História da Roma antiga abrange muitos séculos. Vai, aproximadamente, desde o segundo século antes de Cristo até o fim do Império, o que corresponde a cerca de 700 anos. 103

Os estudiosos tradicionalmente dividem a história do direito de Roma em três períodos: arcaico, clássico e tardio (pós-clássico). O direito arcaico compreende o período entre a fundação da cidade (753 a .c.), até cerca do segundo século antes de Cristo. O período Clássico abrange a República tardia e vai até o Principado, até pouco depois da dinastia dos Severos. O Período Tardio compreende o período que vai do século III a.c. até o fim do Império.104

O processo civil romano desenvolveu-se da seguinte forma: no período arcaico foram utilizados os processos segundo as ações da lei (legis

actiones); no período clássico, o processo formular (per formulas), introduzido

103LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 42.

pela Lex Aebutia (149-126 ac) e confirmado pela Lex Iulia (1 ac); no período tardio a cognitio extra ordinem.105.106

O direito arcaico era cheio de fórmulas que precisavam ser pronunciadas pelas pessoas certas, nos locais certos. Tanto nos processos, quanto nos negócios, os atos só eram válidos quando se utilizava a forma correta. O típico exemplo é a promessa. Ao dizer eu prometo, criava-se a promessa107

O direito arcaico108 só era aplicado aos cidadãos romanos, excluindo-se assim, os escravos e os estrangeiros. Por se aplicado somente aos cidadãos, tornou-se conhecido como ius civilis.

Pode-se dizer que a regra que vedava a propositura de dois processos, em Roma, parece remontar ao período anterior à lei das doze tábuas, redigidas por volta de 450 a.c. e, portanto, ainda inserida no período arcaico.109

105LOPES, José Reinaldo de Lima. op. cit.

106Cruz e Tucci e Luís Carlos de Azevedo, todavia, entendem que não há uma delimitação temporal precisa que nos informe quando os três sistemas processuais tiveram exatamente vigência em Roma. Não se sabe quando um terminou e onde outro começou precisamente. TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luís Carlos de.

Lições de história do processo civil romano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. p. 40.

107“Alguns ‘negócios’ ou ‘obrigações’ em direito romano dependiam de tais formalidades: o nexum (estabelecia a relação de dívida: o devedor vendia-se ao credor, pronunciando certas palavras), a sponsio (fórmula de promessa que dispensava testemunhas), mancipium (forma de troca). Nisto o direito era positivo e abstrato (Gernet, 1982:110-112; Villey, 1987). No campo do que hoje se chamaria processo o mesmo continuava verdade. Os procedimentos eram típicos (formais). Conheciam-se cinco ações: 1) per sacramentum, 2) per iudicis arbitrive postulationem, 3) per condictionem, 4) per manus iniectionem, 5) per pignores capionem (Tucci e Azevedo\|, 1996:51-72)”. LOPES, José Reinaldo de Lima. op. cit., p. 47.

108Otávio Luiz Rodrigues Júnior ensina que “As ações da lei (legis actiones) traduzem a etapa mais primitiva do processo civil romano, ainda eivado de princípios ultraformalistas do direito quiritário, cujas brumas alimentavam-se do incenso aos pais-fundadores (patrícios) da República Latina. Nesse sistema, as partes compareciam ao pretor e declinavam antigas orações, hauridas dos tempos em que o Direito era monopólio dos sacerdotes de Júpiter e o Lácio ainda era sujeito aos etruscos, cabendo ao magistrado verificar sua compatibilidade com os preceitos normativos e, após uma aligeirada tentativa de conciliação, remeter o caso ao judes para sua solução”. RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Coisa julgada e Constituição: os efeitos da lei nova, da mudança de interpretação dos tribunais e das emendas constitucionais sobre a coisa julgada. Nomos: revista do Curso de Mestrado de Direito da UFC, Fortaleza, v. 16/18, n. 4/6, p. 87, jan./dez. 1997-1999.

109Isso é o que nos informa Celso Bastos, in verbis:“A regra bis de eadem re ne sit actio já constituía, no período clássico, vetus proverbium, de tão remota consagração que Quintiliano não alcançava o seu verdadeiro e original significado. Acredita-se que a vedação tenha sido objeto de uma lei anterior às doze tábuas, mantida consuetudinariamente e que a interpretatio iuris civilis relacionou à litis contestatio, como salienta Cogliolo, para quem a regra significava: ‘Sobre uma e mesma relação jurídica não pode ocorrer duas vezes a ação da lei, um processo”. NEVES, Celso. Contribuição ao estudo da coisa julgada civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1970. p. 10.

As ações da lei (legis actiones)110, processo utilizado durante o período arcaico, e o processo formular (per formulas) são conhecidos como a fase privada do direito romano, onde a participação do Estado era mínima. São conhecidos como ordo judiciorum privatorum e possuiam duas fases distintas: a primeira chamada in iure e a segunda apud iudicem.

Nas legis actiones, a primeira fase, in iure, ocorria perante um funcionário público conhecido como pretor.

Para que o procedimento tivesse início, era necessária a citação do réu. Não existia, nessa época, revelia e nem representação processual. As partes, em pessoa, deveriam comparecer. Cabia ao interessado levar o réu até o pretor e ali deduzir sua pretensão, o que limitava sensivelmente o acesso à justiça. 111

O pretor analisava a pretensão e decidia se ela poderia transformar- se num conflito judicial. Em caso positivo, as partes firmavam um compromisso perante testemunhas, concordando em submeter o julgamento a um particular.

Fixados os contornos da controvérsia era escolhido pelas partes um cidadão romano (iudex). O critério utilizado para a escolha do juiz eram os conhecimentos que este tinha em relação à matéria controvertida.

A primeira fase do processo terminava com a litis contestatio, que era um contrato judicial assinado pelas partes, onde expressavam concordância com a solução a ser dada pelo judex. Um dos efeitos da litis contestatio era exatamente a de proibir que o caso fosse levado novamente ao magistrado.

110“observa-se, no preâmbulo da exposição de Gaio (I., 4.11), que as ações da lei eram de uso freqüente entre os antigos – Qui in usu veteres habuerunt – e, foram assim designadas porque se originaram de um texto legal (da lei das XII tábuas ou de outro) ou porque as situações jurídicas por elas tuteladas se fundavam em uma lei, cujas palavras deveriam ser cuidadosamente repetidas no formulário da actio”. TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luís Carlos de. op. cit., p. 51.

Tinha início, então, a segunda fase do processo: o juiz determinaria a produção de provas e julgaria o caso.112

Nas legis actiones, se um direito já apreciado pelo pretor fosse submetido pela segunda vez ao seu crivo, ele o repelia de ofício, negando uma segunda legis actio. Todavia, com o crescimento do surgimento das demandas, essa tarefa de apurar a identidade dos litígios tornou-se muito difícil e passou a ser feita pelo juiz privado, o iudex. Para tanto, dependia do exercício de uma ação, a sponsio praeiudicialis. Trata-se de um elo evolutivo entre o sistema das

legis actiones e o formular 113

Releva notar que no sistema das legis actiones vigorava o princípio do pact sunt servanda. Caso o vencido não cumprisse o estabelecido pelo juiz, cabia ao vencedor utilizar-se do manis injectio, que poderia resultar na venda ou no esquartejamento do devedor.114

O processo formular115 (período clássico) deu uma roupagem mais moderna ao processo romano, pois era um processo menos formalista, mais ágil e escrito. Esta última característica do processo formular amenizou muito o rigor oral das legis actiones. Neste tipo de procedimento, quem não pronunciasse a palavra corretamente e no momento certo, perdia o processo.116

O autor deveria comunicar, antes mesmo da citação, que processaria o réu. Era um ato extrajudicial que poderia ser escrito. As partes deveriam, então, comparecer diante do pretor. Nesta ocasião, o demandante apresentava novamente sua pretensão (editio actionis), mostrando a fórmula que

112TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luís Carlos de. op. cit., p. 58. 113NEVES, Celso. op. cit., p. 13.

114TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luís Carlos de. op. cit., p. 61.

115Id. Ibid., p 73. Cruz e Tucci. Informa que o nome fórmula é um diminutivo de forma, palavra grega que significa modelo. Id. Ibid., p. 73.

entendia ser a mais adequada, com vistas à concessão, pelo pretor, da respectiva ação (dare actionem, iudicium dat).

O pretor, se verificasse a ausência de algum pressuposto processual ou material, não concedia a ação. Deferido o pedido de ação, passava-se a palavra ao réu, que poderia estar acompanhado de advogado. Após, deveria apresentar defesa. Em não havendo nenhum motivo que justificasse a extinção do processo (a confissão ou a coisa julgada, por exemplo) passava-se à redação da fórmula, pelo magistrado e com a colaboração dos litigantes, para que o juiz julgasse o processo.

No procedimento apud iudicem, o juiz, após se inteirar da pretensão, determinava a produção de provas e julgava o processo, segundo sua livre convicção, nos limites da fórmula, ao contrário do procedimento das ações da lei, no qual ficava vinculado ao resultado das provas.117

Foi a partir desse período do processo romano que o réu poderia alegar a coisa julgada por meio de da exceptio rei in judicium deducta, a exceção de coisa julgada trazida a juízo.118

A coisa julgada, até então, dada a inexistência de um sistema recursal organizado, ocorria com a prolação da decisão pelo pretor, na hipótese de indeferir o prosseguimento do processo, ou pela decisão do juiz (iudex), condenando ou absolvendo o réu.

No período da cognição extraordinária (tardio), os imperadores e seus juristas tiveram grande destaque. Houve a valorização dos juristas, a centralização dos poderes em um único órgão e o surgimento do recurso de apelação.119

117TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luís Carlos de. op. cit., p. 124-128. 118RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. op. cit., p. 88.

Os julgamentos passaram a ser feitos ou pelo príncipe ou por algum delegado por ele nomeado. Quando não ocorria a substituição do juiz propriamente dita, o príncipe intervinha respondendo alguma questão ou opinando. É claro que sua influência política alterou o procedimento dos feitos.120

Na época do processo da extraordinaria cognitio, foi abolida a prestação da justiça pelos particulares, passando a ser tarefa exclusivamente estatal. Assim, desaparece a figura do iudex, normalmente exercida por um cidadão romano, e o processo passa a ter o procedimento inteiramente regulado pelo Estado, numa fase só.121

A citação, antes de caráter privado, vai progressivamente sendo substituída pela oficial. Caso o réu não comparecesse em juízo, poderia tornar-se contumaz.

Também é nesse período que surge a possibilidade de citação por edital, o que ocorria quando o réu não fosse conhecido ou não se soubesse onde poderia ser encontrado.

Uma vez iniciado o processo, realizada a citação, o demandante fazia a exposição diretamente ao magistrado, que a apreciava livremente nos limites do pedido (e não mais nos limites da fórmula).

A litis constestatio tinha como efeito interromper a prescrição e possibilitar a transferência de uma actio relativa a direito intransmissível.122

120LOPES, José Reinaldo de Lima. op. cit.

121Sobre o período, assinala Celso Neves: “no processo da extraordinária cognitio a sententia iudicis corresponde ao exercício da iurisdictio entregue às magistraturas que detêm a função jurisdicional do Estado. Esse modo de ser, inteiramente novo, assinala a eliminação dos resíduos da concepção arbitral e privada do antigo processo das ações da lei que permaneceram no processo formular, marcando a última etapa da transição privada ao processo público. A sententia passa a ser ato de aplicação da lei aos casos concretos: omnem, quae de libello scripta recintantu, dici volumus ataque esse sententiam”. NEVES, Celso. op. cit., p. 27.

A sentença, para ser válida, deveria ser motivada, escrita e lida na presença dos litigantes. A sentença também poderia ser utilizada para vedar a possibilidade do demandante propor uma nova demanda sobre o mesmo objeto, vale dizer, a exceptio rei iudicatae. 123

Nesta época surge, ainda, o sistema recursal, com o nascimento da apelação. Assim, a coisa julgada passou não mais a ocorrer simultaneamente com a decisão proferida no processo. Era uma conseqüência do esgotamento das vias recursais ou mesmo a perda de prazo para fazê-lo.

A justificação da adoção pelos romanos do instituto da coisa julgada está ligada a questões de ordem prática. O processo só teria um resultado útil se houvesse segurança jurídica das decisões nele proferidas.