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A garantia constitucional do acesso à justiça e a coisa julgada

8. A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA NAS AÇÕES COLETIVAS

8.1. A garantia constitucional do acesso à justiça e a coisa julgada

O direito de ação358 é garantia constitucional atribuída a todos os jurisdicionados. Trata-se do alicerce de um Estado Democrático de Direito. Sem ele, não é possível que o Estado preste a jurisdição, até porque pelo princípio da inércia359, consagrado no artigo 2º do Código de Processo Civil360, o Poder Judiciário só pode manifestar-se quando provocado. Não existe jurisdição contenciosa sem que um autor proponha um pedido em face de um réu, com base no ordenamento jurídico em vigência.

Ao lado do direito de ação é necessário garantir aos jurisdicionados o acesso à justiça361, garantia constitucional estampada no inciso XXXV do

358NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000. p. 96: “O direito à tutela jurisdicional não se confunde com o direito de petição, este último garantido pelo artigo 5º, XXXVI, a), da CF, conforme experiência haurida do Estado Liberal. O direito de petição é conferido para que se possa reclamar, junto aos poderes públicos, em defesa dos direitos contra ilegalidade ou abuso de poder”.

359CINTRA, Antonio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit., p. 128 “Outra característica da jurisdição decorre do fato de que os órgãos jurisdicionais são, por sua própria índole, inertes (nemo judex sine actore; ne procedat judex ex officio). O exercício espontâneo da atividade jurisdicional acabaria sendo contraproducente, pois, a finalidade que informa toda a atividade jurídica do Estado é a pacificação social e isso viria em muitos casos a fomentar conflitos e discórdias, lançando desavenças onde elas não existiam antes. Há outros métodos reconhecidos pelo Estado para a solução dos conflitos (conciliação endo ou extraprocessual, autocomposição e, excepcionalissimamente, autotutela – sobre os meios alternativos para a eliminação de conflitos) e o melhor é deixar que o Estado só intervenha, mediante o exercício da jurisdição, quando tais métodos não tiverem surtido efeito.

360‘Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais.

361CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 9: “Nos Estados Liberais ”burgueses” dos séculos XXXVIII e XIX, os procedimentos adotados para a solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante. Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. A teoria era a de que, embora o acesso à justiça pudesse ser um “direito natural”, os direitos naturais não necessitavam de uma ação do Estado para a sua proteção. Esses direitos eram considerados anteriormente ao Estado. Sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por outros. O Estado, portanto, permanecia passivo, com relação a problemas tais como a aptidão de uma pessoa para

artigo 5º da Constituição Federal362. Assim, aquele que se sentir lesado ou na ameaça de sofrer uma lesão deve invocar a proteção jurisdicional do Estado, por meio de um instrumento apto – o processo.

Ressalte-se que por acesso à justiça363 não devemos entender apenas o acesso formal, mas sim o acesso efetivo para que os conflitos sociais sejam pacificados.364

O acesso efetivo à justiça assume papel muito maior nas demandas coletivas em razão do alcance das decisões nela proferidas, que se dá, conforme dito, nos termos do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor, podendo inclusive ser erga omnes.

Como é sabido, nas demandas coletivas busca-se o atendimento de interesses supra-individuais. Por meio delas são tutelados os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

reconhecer seus direitos e defendê-los adequadamente, na prática”. (...) “Afastar a pobreza no sentido legal não era preocupação do Estado. A justiça, como outros bens, no sistema do laissez faire, só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram considerados os únicos responsáveis por sua sorte. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade apenas formal, mas não efetiva”.

362PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Acesso do consumidor à justiça e a advocacia pública. Revista de

Direito do Consumidor, São Paulo, v. 30, p. 54, abr./jun. 1999, leciona: “Interessante notar que a perspectiva do acesso à justiça sofreu sensíveis modificações com a mudança do perfil do Estado. No período da hegemonia do liberalismo clássico exigia-se do Estado sobretudo uma atitude passiva, de não intervenção nas relações sociais. A própria noção de jurisdição estava contaminada por tal visão, sendo concedida como atividade eminentemente repressiva, que ocorria somente após a violação ao ordenamento jurídico, sendo mitigada a função preventiva. Prevalecia o entendimento de que a atuação do Estado-juiz, antes da ocorrência da lesão a algum direito, feria a liberdade individual, que deveria ser resguardada a todo custo dos poderes de intervenção estatal. Neste quadro, bastava ao Estado, no campo da aparência, prever genericamente o direito dos indivíduos acionarem o Poder Judiciário, sem preocupar-se se, na realidade, todos tinham a efetiva possibilidade de fazê-lo. Entretanto, com a crescente complexidade social a esfera de atribuições do Estado foi aumentada, notando-se que a sociedade passou a exigir do Estado não apenas uma posição passiva – ou seja, de abstenção de intervenção na esfera privada, mas também a de prestador de políticas públicas”.

363“No Brasil, a jurisdição ainda encontra, na prática, muitas vezes, obstáculos a seu exercício, como se fora um luxo, mais que um direito básico que é. A assim permanecer, contudo, não teremos como fugir da infeliz constatação de que todos os direitos, inclusive aqueles fundamentais, arrolados e assegurados constitucionalmente, não passarão, dia após dia, de requinte legal posto fora do alcance e gozo de todos os cidadãos”. Carmem Lúcia Antunes Rocha. op. cit., p. 33.

364Nesse sentido: “Acesso à justiça não se identifica, pois, com a mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo. (...) para que haja o efetivo acesso à justiça é indispensável que o maior número possível de pessoas seja admitido a demandar e a defender-se adequadamente (inclusive em processo criminal), sendo também condenáveis as restrições quanto a determinadas causas (pequeno valor, interesses difusos); mas para a integralidade do acesso à justiça, é preciso isso e muito mais”. CINTRA, Antonio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit., p. 33.

O Poder Judiciário desempenha um papel importantíssimo na pacificação das lides e na solução das controvérsias que surgem no dia-a-dia dos jurisdicionados. Bem por isso, eventuais decisões finais desfavoráveis (de mérito ou não) proferidas em ações coletivas, quando o direito é latente, repercutem negativamente junto à população e ao próprio Judiciário.

É certo que a coisa julgada formada não impede o ajuizamento de ações individuais, pois o parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor dispõe que os efeitos da coisa julgada não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. Ainda assim, não se pode negar o desgaste que decisões coletivas inequivocamente injustas, em descompasso com o ordenamento jurídico vigente, notadamente a Constituição Federal, trazem à sociedade.

Ora, as ações coletivas só podem ser promovidas pelos legitimados legais do artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor e 5º da Lei de Ação Civil Pública. O Homem médio imagina que uma ação movida por um desses legitimados tenha sido muito bem conduzida e se o Judiciário lhes deu decisão final desfavorável, realmente pode inexistir o direito pleiteado na ação.

Isso, sem sombra de dúvida, funciona como um desestímulo à contratação de um advogado para pleitear o mesmo pedido, até porque sabe-se que uma demanda judicial implica dispêndio de tempo e custas.

Com efeito, o curso de uma ação judicial de conhecimento pode levar até mais de dez anos. Imagine, depois do trânsito em julgado de uma decisão coletiva cujo pedido tenha sido julgado improcedente, ter o indivíduo que propor sua ação de conhecimento e trilhar toda a marcha processual novamente, sujeito a perder o processo e ter que arcar com os honorários advocatícios do advogado da parte contrária (artigo 20 do CPC).

Para ilustrar a situação, é cabível a citação do seguinte exemplo: em 1994, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor moveu ação de repetição do indébito em nome de seus associados em face da Eletropaulo - Eletricidade de São Paulo S.A., da CESP - Companhia Energética de São Paulo e da Fazenda Pública do Estado de São Paulo, pleiteando as diferenças pagas a maior a título de ICMS sobre energia elétrica, excedentes da alíquota de 18% desde a vigência da Lei 6.374/89, devendo ser o “quantum” apurado na fase de liquidação. O feito recebeu o nº 531/94 e foi processado na 9ª Vara Cível do Foro Central.

O pedido foi julgado procedente em primeira instância, mas o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, deu provimento ao recurso, na apelação 039.662-5/9-00, e julgou o processo extinto, sem julgamento de mérito, sob o argumento de o consumidor final de energia elétrica não é contribuinte de ICMS. Nessa esteira de raciocínio, os consumidores não teriam interesse processual e, portanto, o IDEC não poderia estar em juízo representando-os.

O IDEC interpôs recurso especial, alegando violação do artigo 166 do CTN e divergência jurisprudencial. O RESP recebeu nº 279.491, mas não teve melhor sorte que a decisão do Egrégio Tribunal Paulista. É que os Julgadores da Segunda Turma do STJ, tendo por Presidente o Ministro Franciulli Netto e Relator o Ministro Francisco Peçanha Martins, comungaram do entendimento no sentido de o IDEC não teria legitimidade para propor ação em nome de seus associados, consumidores de energia elétrica, porque eles não são sujeitos da relação tributária.

A associação civil novamente recorreu, por meio de embargos de divergência em RESP, que recebeu o número 279.491, alegando divergência jurisprudencial da Primeira Turma e apontou, entre outros, o acórdão 183.087/SP.

Em 27 de abril de 2.005, houve decisão final desfavorável. Até agosto de 2005, o acórdão ainda não havia sido publicado. Caso os Srs. Ministros sustentem que o consumidor final de energia elétrica é parte ilegítima para questionar o ICMS na Justiça porque não é sujeito da relação tributária, ainda que a decisão não alcance o direito individual de ação, certamente ela desestimula que o homem médio contrate um advogado e procure a justiça.

Mesmo assim, é certo que chegarão ao Judiciário inúmeras demandas individuais questionando-se a mesma coisa, contribuindo para a morosidade dos processos e desperdício de dinheiro público utilizado na manutenção de toda a estrutura do Poder Judiciário, como pagamento de pessoal, materiais utilizados no Cartório, carros do Tribunal que conduzem os processos de uma instância à outra etc...

Também é fato que existem muitas decisões teratológicas, absurdas e injustas por estarem em descompasso com os princípios mais basilares da Constituição Federal.

Admitir que essas decisões sejam acobertadas eternamente pelo manto da coisa julgada, perpetuando grotestas injustiças em detrimento do homem, da sociedade e da nação seria um absurdo. Bem por isso, deve-se procurar um meio de relativização da coisa julgada nas ações coletivas em casos excepcionais.